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Lausminda de Jesus, em 2013, no rio de sua vida, durante a luta contra o projeto de construir mega-hidrelétricas no Tapajós

Era outubro de 2005, e o Rio Tapajós corria, rápido, por sobre seus pedrais. Da embarcação, Dona Lausminda de Jesus nos aponta uma Seringueira retorcida, ri e, com ar matreiro e constrangido, diz: “Tão vendo aquela Seringueira ali? Pois então, fomos eu e o Juarez que entortamos ela”. Ele fora seu primeiro namorado, mais de 60 anos antes, e a Seringueira nascida às margens daquele rio, acomodação para seus primeiros beijos e abraços.

Dona Lausminda morreu, aos 84 anos, na madrugada do dia 3 de maio, em Itaituba. Mãe, avó, bisavó, trisavó, comadre e vizinha querida de muitos no beiradão do Tapajós. Nasceu na floresta. Passou a infância e juventude cortando seringa. Da floresta, conhece tudo passível de ser conhecido. Era também parteira e puxadeira (um misto de massoterapeuta e benzedeira). Dona Lausminda também era muito procurada por ser grande conhecedora de poderosas rezas, muito eficientes para a cura de peito aberto, espinhela caída, cobreiros, rendiduras e muitos outros males. As rezas eram sempre acompanhadas de uma infinidade de remédios que coletava da exuberante floresta, que começava a poucos passos da porta da sua cozinha.

Dona Lausminda era uma importante referência e liderança de Montanha e Mangabal, um território tradicionalmente ocupado, que se estende por cerca de 60 quilômetros da margem esquerda do Alto Tapajós, entre Itaituba e Jacareacanga, ambos no Pará.

Montanha e Mangabal, o território onde vivia Dona Lausminda em meados dos anos 2000, ganhou notoriedade por ter sido palco de uma icônica luta de uma comunidade tradicional contra um dos maiores e mais sofisticados casos de grilagem de toda a Amazônia. De um lado, um grileiro paranaense se dizia proprietário da assustadora dimensão de 1,138 milhão de hectares (sim, maior do que o Líbano). Do outro lado, 101 famílias Ribeirinhas, ou Beiradeiras, como se autodenominam, não tinham sequer a sua existência oficialmente reconhecida.

Na luta pelo seu território, a comunidade havia que provar a antiguidade da sua ocupação. O Ministério Público Federal se envolveu na batalha, defendendo os direitos territoriais daquela comunidade tradicional, mas o direito positivo exigia materialidades da ocupação. A história daquela gente naquela terra era longa e cheia. Cada palmo do grande território tradicionalmente ocupado era uma construção social.

A memória daquele grupo se ancorava naquele lugar, repleto de referências plantadas naquelas margens do Tapajós, como a Seringueira da Dona Lausminda e mais uma infinidade de outros marcos carregados de referências para cada Beiradeiro e para todo o grupo.

A vilinha da comunidade tradicional de Montanha e Mangabal, no Rio Tapajós, assentamento de Beiradeiros que vivem na região há mais de 100 anos

Mas isso não bastava. Havia que apresentar documentos. E aí a história de Lausminda de Jesus fez diferença. Por meio das suas lembranças de família, transmitidas oralmente, de geração a geração, foi possível chegar a um curioso documento, o Título de Posse do seringal Aqui-Perto, emitido em 11 de maio de 1892, em favor do seringalista major Januário dos Santos Rocha.

Como explicou o sociólogo Octávio Ianni, “na Amazônia a terra era farta e livre, ao mesmo tempo em que escasseava a mão de obra. O seringueiro não podia ser um trabalhador livre, um assalariado. Se fosse, um trabalhador livre, de posse de seu salário, logo estaria em condições de seguir adiante”. Por conta disso, no final do século 19, era comum que os seringalistas, ao documentar suas terras, averbassem nos livros cartoriais as famílias de seringueiros que lá moravam, como se fossem parte do patrimônio.

Foi assim que o documento de um seringal às margens do Tapajós elencou, em meio a suas benfeitorias, na categoria “agregados”, cinco mulheres com o sobrenome Jesus. Uma delas viria a ser a avó materna de Dona Lausminda.

Na dialética da expropriação e resistência da Amazônia, o mesmo processo que, nos anos 2000, negava a existência da população remanescente de seringueiros em Mangabal, em 1892 registrara a existência dessa gente na medida em que os relacionava como certa “benfeitoria” incorporada à terra. O processo de conversão da família Jesus em coisas, no século 19, foi acionado pelos seus descendentes, mais de cem anos depois, para resistir à expropriação, registrando sua antiguidade na terra.

A luta da comunidade foi árdua. Reunir materialidades como o título de posse do seringal onde vivia e trabalhava a família de Dona Lausminda, certidões, batistérios, fotografias, menções em relatos de viajantes do século 19 foi uma das frentes – à qual se somou o esforço dos Beiradeiros e das Beiradeiras em comunicar um universo de dimensões materiais e simbólicas, em documentar os palmos de seu território avivado pelo conhecimento, trabalho e afeto de gerações – como a Seringueira entortada de Dona Lausminda.

Isso lhes valeu uma vitória histórica em 2006. A Justiça brasileira proibiu a posse de qualquer um que não pertencesse às 101 famílias dos Beiradeiros naquele território. Era a primeira vez que isso ocorria para uma comunidade Ribeirinha que não fosse Indígena ou Quilombola.

A comunidade queria a criação de uma reserva extrativista como forma de materialização em efetivo e consolidado de seu direito territorial. Em 2008, quando Montanha e Mangabal pleiteava seu reconhecimento como reserva extrativista, uma delegação de Beiradeiros se deslocou, por dias a fio, para Brasília para pressionar. Com seus 68 anos, encarando canoa, voadeira, carroceria de caminhonete, garupa de moto e avião, depois de quatro dias de viagem, Dona Lausminda marcou sua presença e levou seu recado ao prédio do Congresso Nacional.

Na capital do país, ao lado de seus vizinhos e parentes em luta, Dona Lausminda descobriu que os planos do governo para construção de uma barragem no Tapajós interpunham-se entre o direito previsto e o direito materializado ao território. Anos de resistência se seguiriam até que o território dos Beiradeiros do Alto Tapajós fosse reconhecido como Projeto de Assentamento Agroextrativista Montanha-Mangabal, em 2013.

A luta contra a hidrelétrica contou com uma aliança inesperada com o povo Indígena Munduruku, com quem os Beiradeiros, até duas gerações antes, estavam em guerra pelo território. A resistência desses grupos impediu o licenciamento do projeto e foi importante fator para que, em 2016, o projeto fosse arquivado.

Essa luta foi o tema da minha dissertação de mestrado (de onde vêm diversos trechos deste texto), com o título A Beiradeira e o Grilador. Dona Lausminda é a Beiradeira. Se hoje posso me dizer pesquisador, devo muito disso a ela.


Maurício Torres é cientista social, professor e pesquisador. Trabalha na Universidade Federal do Pará (UFPA) e estuda conflitos territoriais, na defesa dos direitos de camponeses e povos tradicionais.


Texto: Maurício Torres
Fotos: Lilo Clareto
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de edição: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum

Em 2013, as crianças Beiradeiras de Montanha e Mangabal se banhavam no Rio Tapajós indiferentes à crescente contaminação por mercúrio do garimpo ilegal

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