Os primeiros dias da 29ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP-29, que vai até 22 de novembro em Baku, no Azerbaijão, tornaram visível o efeito da pressão de setores poderosos do agronegócio para diminuir a ambição do Plano Clima do Brasil. Este documento, que vem sendo elaborado pelo governo Lula desde 2023, será um guia para que o país implemente a sua nova meta de redução das emissões dos gases que causam o aumento da temperatura da Terra. Um dos objetivos do agro é esvaziar a promessa do presidente Lula de alcançar o “desmatamento zero”, que incluiria tanto o ilegal como aquele que, ao menos em teoria, é autorizado pelo Código Florestal.
Em 13 de novembro, em Baku, o documento que detalha a nova Contribuição Nacionalmente Determinada brasileira – a NDC na sigla em inglês, como a meta de corte de emissões é chamada – foi entregue a Simon Stiell, o secretário-executivo da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima. Ele abre espaço para que o desmatamento “legal” continue acontecendo e, na avaliação de especialistas, não é compatível com zerar a destruição dos biomas do país – o que foi contestado pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Ao comentar o documento, no entanto, ela reconheceu indiretamente o conflito: “O compromisso do governo brasileiro é de desmatamento zero, e esse processo será combinado em duas frentes: o combate que fazemos e a tolerância zero com o desmatamento ilegal e a disputa para que o modelo de desenvolvimento brasileiro não incorpore a destruição de suas florestas”, disse ela, repetindo minutos depois: “É a disputa por um novo modelo de desenvolvimento que mantenha a floresta em pé”.
META ‘AMBICIOSA’: ALCKMIN ENTREGA NDC BRASILEIRA A SIMON STIELL, DA CONVENÇÃO DO CLIMA, MAS AMBIENTALISTAS COBRAM METAS SETORIAIS. FOTO: CADU GOMES/VICE-PRESIDÊNCIA
O Plano Clima, que só será finalizado por volta de julho de 2025, pretende traçar um roteiro para que o Brasil chegue a 2050 com neutralidade de emissões, isto é, sem em tese emitir mais gases de efeito estufa do que a Natureza é capaz de absorver.
A agropecuária está no centro do documento por dois motivos. Em primeiro lugar, o plano vai estabelecer quando e como o país pretende acabar ou reduzir de modo significativo o desmatamento que hoje é chamado de “legal”. Além disso, ele indicará as mudanças que a agricultura e a pecuária precisarão fazer para reduzir suas emissões. Elas correspondem atualmente a 28% do total da poluição da atmosfera gerada no Brasil, proporção que é só menor do que os 46% provocados pela destruição dos biomas nativos – que acontece, justamente, para a ampliação das áreas de plantações e, sobretudo, dos pastos, na chamada “expansão da fronteira agropecuária”. Algumas modalidades de atividades agropecuárias também contribuem para a remoção do gás carbônico da atmosfera, o principal dos gases de efeito estufa, mas para que isso ganhe uma dimensão significativa o financiamento e as práticas do setor precisam mudar mais rápido e de maneira generalizada.
Embora o Plano Clima não esteja finalizado, os cálculos que definiram a nova meta brasileira foram feitos durante sua elaboração. Com a entrega oficial da NDC, o Brasil se antecipou ao prazo estabelecido pelo Acordo de Paris sobre a mudança do clima, que determina o dia 10 de fevereiro como data final para que todos os países apresentem sua meta de redução de emissões até 2035 – as atuais cobrem o período até 2030. O tema atravessa as negociações em Baku e terá repercussões na COP-30, que o Brasil sediará em Belém. O alcance das novas metas – e obviamente seu cumprimento – determinarão se o aumento da temperatura do planeta ainda poderá ser contido em até 2 graus Celsius ou, idealmente, em 1,5 grau, em relação ao período anterior à Revolução Industrial. Nos meses de janeiro a setembro de 2024, segundo a Organização Meteorológica Mundial, a temperatura média ficou 1,54 grau Celsius acima do período pré-industrial, provocando secas e chuvas catastróficas, o que já deu uma ideia do que pode acontecer se essa tendência se firmar nos próximos anos.
Em 2023, na COP-28, em Dubai, o governo brasileiro levantou a bandeira da “Missão 1,5”, propondo um compromisso maior com esse limite de aumento da temperatura. No acordo final de Dubai, os países prometeram se esforçar por tal objetivo. Eles também se comprometeram a “intensificar seus esforços a fim de parar e reverter o desmatamento e a degradação florestal até 2030”. Como anfitrião da COP-30, o Brasil prometeu apresentar uma nova meta climática forte, para dar um exemplo aos demais países.
Os números da nova meta brasileira foram divulgados sem detalhamento por uma nota do Palácio do Planalto na noite de sexta-feira, 8 de novembro, quando os representantes brasileiros já estavam de malas prontas para vir para Baku. Pela primeira vez, o Brasil apresentou não um objetivo fechado de emissões líquidas para 2035, mas uma banda, com um mínimo e um máximo de corte de emissões a ser atingido. As emissões líquidas – indicador considerado no Acordo de Paris – reduzem do total o carbono absorvido pela Natureza, por exemplo, por áreas florestais protegidas ou florestas em regeneração.
TERRA INDÍGENA ITUNA/ITATÁ: META CLIMÁTICA ENTREGUE À ONU ABRE ESPAÇO PARA O DESMATAMENTO ‘LEGAL’ CONTINUAR ATÉ 2035. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA
Se cortar o máximo, o Brasil chegaria a 2035 emitindo 850 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente – medida que leva em conta todos os gases de efeito estufa, incluindo o metano liberado na digestão dos bois. Se ficar no corte mínimo, esse número subiria para 1,05 bilhão de toneladas. Proporcionalmente, isso significaria uma redução entre um piso de 59% e um teto de 67%, em comparação com as emissões de 2005, que foram de 2,56 bilhões de toneladas.
Tanto a ministra Marina como o vice-presidente Geraldo Alckmin, que representou o presidente Lula na abertura da conferência de Baku, insistiram em que a meta é “altamente ambiciosa”. “O fato de ser apresentada numa banda não significa que o foco não seja em 67%”, afirmou Marina: “Mais do que um número, temos aqui um novo paradigma para o desenvolvimento econômico e social do nosso país”. Os ambientalistas em geral frisaram que atingir a meta máxima é essencial. Ana Toni, secretária do Clima do Ministério do Meio Ambiente, disse que a decisão de adotar uma banda reflete as incertezas do cenário internacional, os reflexos disso nos investimentos no país e as mudanças tecnológicas em curso. “O Brasil quer atingir a meta alta, só que há incertezas, e o governo não é irresponsável para não levar as incertezas em conta”, disse. O documento detalhado entregue à ONU – de 44 páginas na versão em inglês, e de 64 em português – afirma que a Contribuição Nacionalmente Determinada, a NDC brasileira, “vai muito além do que se poderia esperar de um país em desenvolvimento, com base na responsabilidade histórica do país no aumento da temperatura global”.
Uma expressão, várias interpretações
Em setembro de 2023, antes da COP-28, o governo Lula havia entregado à ONU sua meta revisada para a redução de emissões até 2030. No documento, disse que “optou por ir ainda além das leis e políticas existentes e comprometer-se a alcançar o desmatamento zero até 2030”. Na época, essa linguagem foi entendida como um compromisso com o fim do desmatamento ilegal e do “legal” – ou “zero-zero”. Lula tem falado em “desmatamento zero” sem qualificativos. Num encontro com a sociedade civil na COP-28, por exemplo, ele disse: “Quando a gente assumiu o compromisso de que a gente vai chegar ao desmatamento zero em 2030 é porque é uma questão de fé, é uma questão política, é uma questão de compromisso”.
LULA COM SOCIEDADE CIVIL NA COP DE DUBAI: PROMESSA REPETIDA DE DESMATAMENTO ZERO É ATACADA POR ENTIDADES DO AGRONEGÓCIO. FOTO: RICARDO STUCKERT/PRESIDÊNCIA
Beto Mesquita, integrante do Grupo Estratégico da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que reúne mais de 400 empresas e organizações do setor, disse que as falas de Lula não deixaram dúvidas: “Nosso entendimento é que o compromisso do atual governo é zerar o desmatamento até 2030. Ponto. Não é o desmatamento ilegal, é o desmatamento”, afirmou. “Um ponto de discussão, que a gente nem tem dado muita relevância a ele, é se esse zero é absoluto ou líquido, ou seja, se teremos algum desmatamento residual, mas compensado por avanços nas ações de regeneração e de recuperação da vegetação nativa”, completou Mesquita, que é diretor de Florestas e Políticas Públicas da organização BVRio.
O documento entregue em Baku diz que o Brasil “continuará a responder positivamente” ao compromisso firmado em Dubai com o fim do desmatamento, mas faz uma distinção entre os dois tipos de destruição da Natureza: “As políticas relacionadas ao Plano Clima preveem esforços coordenados e contínuos para alcançar o desmatamento zero, por meio da eliminação do desmatamento ilegal e da compensação pela supressão legal da vegetação nativa”, afirma o texto. “Isso exigirá não apenas reforço e aprofundamento de medidas de comando e controle existentes, mas também da instituição de incentivos econômicos positivos pela manutenção de florestas em propriedades rurais privadas.”
Para o Observatório do Clima, ao propor uma meta de desmatamento zero que está baseada na compensação a fazendeiros, o governo está dizendo que a promessa de Lula de acabar com a destruição dos biomas do país até 2030 não será cumprida. Marina, porém, insistiu mais uma vez: “Nosso objetivo é o desmatamento zero, como anunciou o presidente Lula na COP do Egito [em 2022], quando ele ainda não havia assumido. Mas também foi um compromisso de campanha que ele fez questão de reiterar quando fez o discurso da sua vitória”. Para as autoridades que defendiam uma meta ambiciosa, o fato de Lula ter batido o martelo agora evitou um final pior, diante da divisão que se instalou no governo durante a discussão do Plano Clima.
Antes da COP, o biólogo Bruno Brasil, diretor de Produção Sustentável e Irrigação do Ministério da Agricultura e Pecuária, disse a SUMAÚMA: “A meta que o Brasil tem estabelecida hoje é, até o final desta década, zerar o desmatamento ilegal”. No entendimento dele, “essa é a interpretação do governo”. Bruno Brasil, que acompanha a elaboração do Plano Clima pela pasta do ministro Carlos Fávaro, do PSD do Mato Grosso, afirmou que o documento em discussão trabalha com diferentes cenários de redução do desmatamento autorizado pelo Código Florestal, a partir de 2030. “O que está à mesa é que o Brasil pode criar políticas públicas de incentivo econômico para a redução do desmatamento legal, ou seja, para recompensar produtores que tenham excedente de Reserva Legal e se dispõem a não suprimir essa vegetação”, disse.
Pessoas que acompanham a elaboração do Plano Clima viram cenários que preveem a redução do desmatamento “legal” já a partir de 2025, com quedas sucessivas até 2035. Num dos cenários, o desmatamento restante na Floresta Amazônica e no Cerrado – cerca de um terço do atual – seria compensado com restauração da vegetação nativa. O Observatório do Clima afirma que havia três cenários para 2035: um que previa o fim de todo o tipo de desmatamento, outro que reduziria o desmatamento “legal” em apenas 25% e o terceiro em que somente o desmatamento ilegal estaria zerado. Pelas contas do Observatório, a primeira opção não estaria contemplada na Contribuição Nacionalmente Determinada, a NDC, apresentada. É o que também avalia o cientista Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU, o IPCC.
MARINA NA COP DE BAKU: A MINISTRA ADMITIU UMA ‘DISPUTA’ SOBRE PROPOSTA DE UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO QUE MANTENHA A FLORESTA EM PÉ. FOTO: FERNANDO DONASCI/MMA
As cartas do agro e a farra das autorizações para desmatar
O Plano Clima está sendo formulado pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, formado por mais de 20 ministérios e coordenado pela Casa Civil, do ministro Rui Costa, que costuma se alinhar com Carlos Fávaro, o colega da Agricultura e Pecuária. O Ministério do Meio Ambiente ocupa a secretaria-executiva dos trabalhos. O plano terá uma estratégia de adaptação às mudanças climáticas, que já está em consulta pública, e outra de “mitigação” – a palavra técnica para a redução de emissões. É na estratégia de mitigação que as divergências se concentram.
Essa estratégia incluirá os objetivos de redução de emissões para sete setores, incluindo a agropecuária, a energia, a indústria e as florestas. Caberá aos ministérios responsáveis por essas áreas fazer o plano, agora dentro da meta oficial entregue pelo governo à ONU – no caso, as florestas ficam com a pasta do Meio Ambiente. A pressão de entidades do agronegócio contra o “desmatamento zero-zero” ficou mais barulhenta a partir de setembro, quando 13 dirigentes mandaram uma carta a Ana Toni, a secretária do Clima. Representantes de entidades como a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes e a Indústria Brasileira de Árvores, eles afirmaram que o foco do Plano Clima “precisa ser no ilegal”: “Antes de equacionar o desmatamento ilegal, fica impossível condenar a supressão vegetal devidamente autorizada pela lei nacional”, disseram.
Em outra carta, mais detalhada, em outubro, representantes de 10 entidades, agora incluindo a Associação Brasileira do Agronegócio, propuseram que o governo invertesse o processo e que cada setor econômico apresentasse suas metas de redução de emissões. O texto alegou que havia o risco de o Plano Clima “jogar pesos desproporcionais em certos setores”. Referindo-se ao cenário de desmatamento “legal” zero, a carta afirmou que “não são conhecidos os detalhes, premissas e ações que fundamentam esses dados”. Reivindicou também que fossem consideradas nas projeções das emissões brasileiras as remoções de carbono das florestas plantadas – as que abastecem as indústrias de papel, embalagem e móveis. No entanto, essas florestas, cultivadas para serem derrubadas, representam remoções pequenas na contabilidade geral.
Algumas das entidades que assinaram essas cartas pertencem à Coalizão Brasil Clima, mas Beto Mesquita disse que a emergência climática não deixa tempo ao país para escolher que tipo de desmatamento combater primeiro. Ele lembra que existem milhões de hectares de pastagens degradadas – números mencionados por autoridades vão de 40 milhões a 50 milhões – que poderiam ser aproveitadas para a agricultura. “Não estamos precisando abrir tanta área”, afirmou Mesquita.
O governo não pretende mudar o Código Florestal, até porque, com o Congresso atual, isso poderia resultar numa lei pior. Mesquita, porém, sugere que o primeiro passo para diminuir o desmatamento legal seja acabar com o que chama de “farra” das Autorizações de Supressão de Vegetação, as ASVs. Essas autorizações, previstas no Código Florestal, são concedidas pelos governos dos estados, sem precondições nem monitoramento. “O que a gente vê hoje, especialmente no Cerrado, é uma espécie de ‘pediu, levou’”, afirmou ele. “A turma do agro gosta de dizer que tem esse direito [de desmatar], mas não é isso que o Código Florestal diz. Você pode ter esse direito, mas, para acessá-lo, você tem que cumprir um conjunto de requisitos. Se você jogar uma lupa em grande parte desse desmatamento autorizado, vai descobrir de pequenas irregularidades a grandes ilegalidades.”
No documento entregue à ONU, o governo diz estar implementando ações “para aumentar transparência e integração” dos dados das Autorizações de Supressão de Vegetação, para “diferenciar desmatamento legal do ilegal” e “planejar estratégias de controle efetivas”.
Hora de deixar a floresta em paz
Na origem desse cabo de guerra está o fato de que, desde que o Acordo de Paris foi aprovado, em 2015, o esforço de reduzir as emissões brasileiras depende do combate ao desmatamento ilegal, em especial na Floresta Amazônica – sendo que até isso foi interrompido nos quatro anos do extremista de direita Jair Bolsonaro. A poluição de outros setores, como a agropecuária e os transportes que ainda usam majoritariamente combustíveis fósseis, não passa por nenhum controle. Mas eles terão que contribuir muito mais para que o Brasil cumpra a promessa de chegar em 2050 neutro em carbono.
Por exemplo, só o metano liberado em 2023 na digestão dos bois equivaleu a 405 milhões de toneladas de gás carbônico, o que é mais do que a emissão total da Itália e representa 64% das emissões da agropecuária. No ano passado, o rebanho de bois e vacas bateu o recorde de 238,6 milhões, mais do que a população de pessoas humanas brasileiras.
Em agosto, o Observatório do Clima apresentou sua proposta para uma meta de redução de emissões até 2035, prevendo zerar praticamente todo o desmatamento, ilegal e “legal”, em 2030. Caso esse cenário fosse alcançado, as atividades diretas da agricultura e da pecuária – como a criação de bois ou o cultivo de soja – passariam a ser responsáveis pela maior fatia das emissões de gases de efeito estufa do país. Mas, em contrapartida, o setor poderia contribuir maciçamente para remover gás carbônico da atmosfera com a adoção de novas tecnologias e práticas.
BOI EM TERRA INVADIDA: AGRO CONTESTA A PROPOSTA DO PLANO CLIMA DE REDUZIR REBANHO, RESPONSÁVEL POR AO MENOS 64% DAS EMISSÕES DO SETOR. FOTOS: LELA BELTRÃO E DIEGO BAVARELLI/SUMAÚMA
Isso inclui a restauração e a conversão de pastagens degradadas em plantações, a implantação de sistemas integrados de lavoura, pecuária e floresta, a substituição de fertilizantes sintéticos por métodos biológicos de aumento da fertilidade da terra e a disseminação do sistema de plantio direto. Nesse último, os caules e as raízes de plantas como a soja e o milho não são arrancados, nem a terra é revolvida antes da colocação de novas sementes, diminuindo a liberação do carbono armazenado no solo. O Observatório argumenta que sua proposta é vantajosa para o agro, porque essas remoções passariam a ser contabilizadas oficialmente, o que não acontece hoje.
O documento entregue à ONU afirma que o país “seguirá demonstrando que é possível expandir de forma sustentável a produção agropecuária, garantindo segurança alimentar e segurança energética, por meio da produção sustentável de biocombustíveis”. Segundo o documento, para isso o governo se baseará em “transformações fundamentais”, entre elas a conversão de pastagens degradadas em áreas de cultivo e o aumento dos sistemas que integram pecuária, lavoura e florestas.
O incentivo à agricultura de baixo carbono está previsto no Plano ABC+ do Ministério da Agricultura e Pecuária, que foi implementado a partir do primeiro Plano Clima, de 2009. Um dos problemas, porém, é que a linha de financiamento do Plano ABC+ ainda é pequena. Entre 2024 e 2025 corresponde a apenas 1,9% do Plano Safra, o programa governamental que subsidia a agropecuária com juros mais baixos e que chega, nesse período, ao valor total de 400,59 bilhões de reais.
A engenheira florestal Renata Potenza, do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, o Imaflora, coordenou o trabalho sobre a agropecuária na meta climática proposta pelo Observatório do Clima. Ela defende a ideia de que todo o Plano Safra seja voltado para a agricultura de baixo carbono, excetuadas algumas linhas de crédito como a que vai para a compra de máquinas. “A gente vai ter que mexer na questão dos incentivos, dos subsídios, para que realmente o setor possa começar a se mobilizar e fazer essa mudança”, afirma Potenza. Além disso, diz ela, a implementação do Plano ABC+ precisa ser mais bem monitorada, para que o dinheiro de fato vá para práticas compatíveis com o equilíbrio ambiental: “Hoje isso é um grande gargalo”.
Bruno Brasil, do Ministério da Agricultura e Pecuária, disse que o cenário pós-2030 traz “excelentes oportunidades” para o agro, entre elas o aumento da produção de biocombustíveis e a possibilidade de receber pagamentos por serviços ambientais. Ele explicou que a pasta está “procurando incentivar” práticas sustentáveis em cultivos usados nos biocombustíveis, como os de milho e cana-de-açúcar, por exemplo com o uso de fertilizantes biológicos. Bruno Brasil citou outras iniciativas em andamento, como o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas, que prevê recuperar 17 milhões de hectares.
Renata Potenza, no entanto, gostaria de ver mais ênfase no financiamento de sistemas integrados e agroflorestais, que são “menos impactantes” para o meio ambiente. Isso significa que as áreas de pastagem regeneradas precisam ser usadas para plantar alimentos, e não para novas criações de bois. Beto Mesquita ressalta que o crédito agrícola dos bancos privados também precisa incentivar as boas práticas ambientais. Ele menciona outro instrumento do Código Florestal cuja implementação está atrasada, que é a análise do CAR, o Cadastro Ambiental Rural. O CAR é declarado pelos próprios fazendeiros, mas cabe aos estados conferir se o que eles informam sobre o cumprimento do código é verdadeiro. Os ruralistas não cobram, por desinteresse ou malícia. Só neste ano o Plano Safra passou a oferecer vantagens para quem tem o seu CAR analisado.
O agronegócio tem interesse em que as remoções de gases de efeito estufa de suas atividades passem a fazer parte do inventário oficial de emissões brasileiras, que é feito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Um grupo técnico foi criado para aprimorar essa contabilidade. Só que entidades do agro vêm reclamando da modelagem usada no Plano Clima para projetar os cenários de emissões e remoções de cada setor. A modelagem, feita em computador com o uso de um programa chamado Blues, foi realizada pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, a Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para o governo, ele representa o melhor da ciência brasileira nessa especialidade.
PLANTAÇÃO DE SOJA NO PARÁ: ENTIDADES DO AGRO TAMBÉM RESISTEM A REDUZIR ÁREA DE MONOCULTURAS E ADOTAR SISTEMAS DIVERSIFICADOS. FOTO: MICHAEL DANTAS/SUMAÚMA
Mas o problema fundamental é que a carta enviada por entidades do agro em outubro também rejeita propostas de descarbonização feitas no Plano Clima, entre elas a redução do rebanho bovino e do uso de fertilizantes que liberam um gás poluente chamado óxido nitroso. Os signatários tampouco gostam da ideia de reduzir as áreas de monocultura e aumentar as de sistemas integrados. “Sistemas de monocultura são a base preponderante para a produção nacional de grãos, florestas plantadas, fruticultura e oleaginosa perene em função de fatores econômicos que exigem escala”, alegam.
Um assunto que cresce nas COPs
Esse tipo de discussão não é exclusivo do Brasil. No ano passado, o balanço técnico do Acordo de Paris já recomendou a “intensificação da agricultura sustentável”, o que significa não aumentar o uso de terras, parar o desmatamento e liberar áreas para o reflorestamento e a restauração de ecossistemas. Neste ano, um relatório do Painel de Recursos da ONU sugeriu a redução do consumo de carnes vermelhas e ultraprocessadas. Outro documento da Comissão Econômica dos Sistemas Alimentares, formada por acadêmicos de diferentes países, calculou que os custos ocultos para a saúde, a biodiversidade e o clima do sistema agroalimentar baseado em monoculturas, fertilizantes sintéticos e criações concentradas de animais são maiores do que o seu valor econômico.
Pouco antes da COP de Baku, a Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, divulgou um estudo na mesma linha, que mede os impactos ambientais, sociais e de saúde dos sistemas alimentares atuais. Em 11 de novembro, dia em que a COP começou, o escritório da FAO em Brasília publicou um informe mostrando que, anualmente, esses custos no Brasil são de 427 bilhões de dólares, grande parte deles por causa dos danos ao meio ambiente.
Esse tema tem sido tratado lateralmente nas conferências do clima, sem entrar na agenda principal. Porém, é possível que isso mude, como aconteceu com os combustíveis fósseis, que globalmente são os maiores responsáveis pela mudança do clima, mas passaram décadas fora das decisões com valor de lei internacional. Só em 2023, na COP de Dubai, os países prometeram “transitar para longe dos combustíveis fósseis”. O texto da meta brasileira para 2035 diz que o país “responderá ao chamado” de Dubai nesse ponto, e promete reduzir o uso dos combustíveis fósseis nos transportes e na indústria, fazendo sua substituição por eletrificação e “biocombustíveis avançados”. Na nova Contribuição Nacionalmente Determinada, porém, o Brasil não cita a redução da produção dos fósseis. Diz que “acolheria o lançamento dos trabalhos internacionais para a definição de cronogramas […] inclusive para a transição dos combustíveis fósseis nos sistemas de energia, de maneira justa, ordeira e equitativa”. O tema do cronograma está na pauta em Baku, sem grande perspectiva de avanço – o Azerbaijão é dependente da exportação de petróleo e os Estados Unidos, o maior produtor mundial, acabaram de eleger Donald Trump, um negacionista das mudanças climáticas.
Existe um grupo de trabalho da Convenção do Clima, conhecido como grupo de Sharm el-Sheikh, que trata da agricultura do ponto de vista da adaptação à mudança climática, mas não do seu papel nas emissões de gases de efeito estufa. Neste ano, a COP deve aprovar que o grupo crie um portal no qual serão registrados avanços em políticas nacionais para a agropecuária de baixo carbono. O Azerbaijão, país anfitrião, e a FAO lançaram uma iniciativa chamada Harmoniya, para “facilitar e apoiar a transformação dos sistemas alimentares”. A iniciativa pretende conciliar as diferentes declarações sobre o tema que já foram aprovadas nas COPs climáticas, incluindo uma sobre “agricultura sustentável” que o Brasil assinou no ano passado. Essas declarações são documentos políticos em que grupos de países expressam suas intenções, mas não têm valor de lei internacional.
O tema principal da COP-29 está diretamente ligado ao grau de ambição das metas de redução de emissões que os países deverão apresentar até fevereiro. Trata-se da Meta Coletiva Quantificada de Financiamento Climático, conhecida pela sigla em inglês NCQG. É o dinheiro que, em tese, os países materialmente ricos e poluidores históricos deveriam repassar aos demais para seus esforços de diminuir as emissões – quanto mais financiamento, mais ambiciosas as metas podem ser. O novo objetivo de financiamento teria que partir de um patamar de 1 trilhão de dólares por ano agora e chegar a 1,3 trilhão em 2035, 13 vezes mais do que os 100 bilhões de dólares prometidos na conferência do clima de 2009. Os 100 bilhões só teriam se materializado uma vez, em 2022 – ainda assim, numa soma que inclui empréstimos e investimentos privados.
Os Estados Unidos e a Europa já vinham tentando ampliar a base de doadores, quer dizer, dividir o ônus com outros grandes poluidores atuais, sobretudo o maior deles, a China. A negociação ficou mais difícil com a eleição de Trump, que prometeu voltar a tirar seu país do Acordo de Paris. Trump só tomará posse em janeiro, mas pode desfazer tudo o que a equipe enviada por Joe Biden negociar em Baku. Há indicações de que os europeus pretendem adiar uma decisão sobre a nova meta de financiamento para a COP de Belém, o que seria péssimo para o Brasil. Para um diplomata brasileiro, a COP de Baku acontece no “momento geopolítico mais desafiador” desde o período anterior à Segunda Guerra Mundial – com as guerras da Rússia na Ucrânia, de Israel em Gaza e o conflito interno no Sudão, além da crescente hostilidade dos Estados Unidos à China, compartilhada por parte dos países europeus.
O World Resources Institute, uma organização internacional, fez um cálculo da proporção que cada país deveria assumir globalmente no financiamento climático, baseado em suas emissões históricas e em seu nível de renda. Por esse cálculo, os Estados Unidos teriam que pagar 42% da conta, seguidos da China e da Alemanha, com 6% cada um. Embora seu orçamento militar chegue a quase 1 trilhão de dólares, essa dívida ecológica o governo estadunidense dificilmente vai pagar. No Brasil, o agronegócio faz barulho para não saldar a dele.
TRUMP NA CASA BRANCA: BIDEN RECEBE SEU SUCESSOR NEGACIONISTA, QUE PROMETEU TIRAR OS ESTADOS UNIDOS DO ACORDO DE PARIS. FOTO: ALEX WONG/GETTY IMAGES VIA AFP
Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Jonathan Watts
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
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