Pouco se divulga que a floresta boreal é o maior ecossistema terrestre do planeta e que ocupa quase um terço da área florestal total da Terra. Também não se pensa no Canadá com frequência como uma potência petrolífera, embora seja o quarto maior produtor mundial de petróleo. Apesar disso, compreender esses fatores é essencial para entender por que, em 2016, na província canadense de Alberta, ocorreu o incêndio mais devastador já registrado em tempos recentes. Esse fogo queimou por quinze meses, elevando o conceito de fogo a uma nova dimensão. Pela primeira vez na história um incêndio recebeu o nome de algo vivo: A Besta.
John Vaillant (Cambridge, 1962) escreveu um livro impressionante sobre esse evento: Fire Weather: a True Story from a Hotter World (Capitán Swing, 2023, tradução para o espanhol de David Muñoz Mateos. Sem tradução para o português). Se em O Tigre (Intrínseca, 2016, tradução de Lucas Peterson) Vaillant explorou de forma singular o mundo interior de um felino, agora ele mergulha nas entranhas de um incêndio. Especificamente, o autor analisa como e por que as chamas devastaram Fort McMurray, a capital petrolífera canadense: uma cidade construída com materiais ultrainflamáveis fabricados pela própria indústria petrolífera, ignorando lições supostamente aprendidas após os grandes incêndios dos séculos 19 e 20.
O escritor americano-canadense faz uma radiografia do novo fogo, cuja composição química lhe permite descrever o comportamento surpreendente. “O fogo”, diz ele, “não é um elemento nem uma reação; é um caçador.” Agulhas em chamas, brasas voadoras e bolas incandescentes se unem a motores e tanques que explodem e às estruturas voláteis e aos telhados feitos com petróleo e às rodas de até 4 metros usadas pelos gigantescos caminhões nas minas de betume, produzindo temperaturas assombrosas que causam tornados de fogo nunca antes vistos, que fazem as chamas se propagarem de forma imprevisível e até retrocederem pelo caminho de onde vieram.
O mais notável é que essa criatura é um novo produto da ganância desmedida da humanidade. “O fogo, junto ao cérebro, aos polegares oponíveis e à fala, é o nosso superpoder”, afirma Vaillant.
John Vaillant escreveu ‘Fire Weather’ (‘El Tiempo del Fuego’), que explora as causas e os efeitos do fenômeno que chamou de fogo do século 21. Foto: Ulf Andersen/ Aurimages e divulgação
LITERNATURA – Quando você decidiu escrever um livro sobre o fogo e por quê?
John Vaillant – Quando a cidade petrolífera canadense de Fort McMurray foi invadida pelo fogo em uma tarde de calor incomum, em maio de 2016, ficou claro, pela intensidade do incêndio e por seu comportamento posterior, que nossa relação com o fogo estava mudando, não apenas em nível regional, mas também climático e planetário. Fire Weather é uma tentativa de explorar as causas e os efeitos desse fenômeno que chamo de fogo do século 21. Levei sete anos para escrever e publicar o livro.
Depois de escrever sobre uma árvore e sobre felinos, como foi a experiência de escrever sobre uma reação química?
Todos esses temas me desafiam como ser humano – realizar saltos empáticos entre espécies e, agora, com a química! É emocionante e, acredito, necessário nestes tempos em que o excepcionalismo humano alimenta a ideia do “outro” e, assim, da destruição das criaturas e sistemas dos quais dependemos.
A magnitude e a constância dos incêndios na Floresta Boreal são pouco conhecidas em escala global. A que se atribui essa ignorância?
À distância e aos interesses locais. Na Taiga russa, outra Floresta Boreal [onde se passa a ação de O Tigre], também ocorrem incêndios colossais.
Qual é sua relação com o fogo antes e depois do livro? Estar tão próximo dele o afetou de alguma forma específica?
Adorei o desafio de compreender o fogo, que para mim era um mistério antes de escrever esse livro. Alguns anos depois de começar a escrevê-lo, passei por um período muito difícil, e uma amiga poeta, Elee Kraljii Gardiner, sugeriu que eu entrevistasse o Fogo. Eu o fiz. Isso me obrigou a observar e imaginar a essência de seu comportamento e seus apetites de um ponto de vista químico e físico, sem emoção. Foi muito útil. E então, acredito, fiz grandes avanços, ao identificar o quanto ele se assemelha a outras criaturas vivas, incluindo a nós mesmos. Sempre me senti confortável e próximo do fogo porque cresci em casas onde o usávamos para nos aquecer. Tenho cuidado do fogo e o “alimentado” durante grande parte da minha vida. Cortar e partir lenha é uma das minhas tarefas favoritas.
Você deve ter lido muito sobre o fogo e os incêndios. Quais livros lhe serviram de referência? Como o fogo tem sido abordado na literatura até agora? O que você desejava trazer à literatura sobre o fogo?
O escritor americano Stephen J. Pyne é o maior cronista vivo da cultura e do comportamento do fogo em todo o mundo. Li principalmente textos sobre a ciência da oxidação e o comportamento do fogo, um tema muito árido, e depois o animei com minhas próprias observações e as das pessoas que entrevistei. Queria conectar alguns pontos entre a biologia e a química dos seres humanos e as do fogo, e depois ligá-los aos nossos apetites e ambições, para mostrar como os combustíveis líquidos amplificaram nossa capacidade de consumir e criar muito além da capacidade regenerativa da Terra.
Você diz que a linhagem dos empresários do petróleo é fortemente representada por cristãos evangélicos. Depois do incêndio de Fort McMurray, o que os evangélicos que viviam na área afetada passaram a pensar sobre as mudanças climáticas?
Não sei. Eles não falam de forma aberta. Estão profundamente comprometidos com um status quo centrado no petróleo. A crença da maioria das pessoas se adapta aos seus interesses pessoais imediatos e às crenças aceitas por sua comunidade.
Saem Pinheiros e pessoas e chegam as minas a céu aberto. ‘Os evangélicos que viviam na área afetada estão profundamente comprometidos com um status quo centrado no petróleo.’ Foto: Ed JONES/AFP
Você insiste na incapacidade da espécie humana de imaginar o que está fora da própria experiência pessoal. Por isso somos tão lentos para reagir a novas situações ameaçadoras. O problema de Lucrécio. No entanto, cada vez mais pessoas têm experiências pessoais extremas relacionadas ao clima, e a pandemia causou um impacto mundial. Já não falamos de abstrações. Contudo, o incêndio foi divulgado pela mídia como algo não relacionado às mudanças climáticas, e 62% dos representantes do Partido Conservador Unido de Alberta votaram, em 2021, contra a inclusão de termos sobre o clima em seus argumentos. Mas quase ninguém protesta, ninguém se manifesta, exceto os ambientalistas. Por que acha que isso acontece?
Pelo que eu já disse antes.
O status quo.
O status quo.
Você escreve que, no que diz respeito à evacuação de Fort McMurray, “a profunda lealdade ao motor de combustão interna foi um grande problema”. É impressionante ver pessoas chorando para salvar suas motos. Um de seus objetivos como autor é destacar a contradição em que vivemos… e a dependência. Somos viciados em fogo?
Acredito que sim, da mesma forma que somos “viciados” em oxigênio: o fogo nos fez quem somos hoje. A vida sem sua energia amplificadora é inimaginável e, para a maioria de nós, inviável.
Fire Weather critica claramente como as coisas foram conduzidas na região. De que forma o livro foi recebido nas áreas devastadas pelo incêndio? Você já fez apresentações lá?
Hehe. Em Alberta, mantive a discrição. Fiz vários eventos com salas lotadas, onde se podia ouvir um alfinete cair. As pessoas estão muito interessadas no tema, mas também se sentem muito desconfortáveis porque o livro destaca as contradições insustentáveis em que muitos vizinhos de Alberta – e muitos de nós – vivem. O que acho interessante não é a falta de elogios, mas a falta de críticas. Tentei escrever um livro no qual os habitantes de Alberta se sentissem acolhidos. Muitos forasteiros os criticam, assim como à indústria do petróleo. Tentei humanizar ambos.
Os carros, os depósitos privados, o material com que as casas foram construídas… tudo contribui para acelerar a combustão da cidade. A reconstrução foi feita com outros materiais, seguindo outros critérios?
Não. Status quo cem por cento. Eles se encontram em um estado de negação quase total.
O trágico exemplo de Fort McMurray incentivou ações preventivas em outras cidades, nas florestas? Ou se continua a construir com materiais altamente inflamáveis?
Muitas comunidades estão analisando seus planos de evacuação, mas poucas ou nenhuma está construindo de maneira diferente. A habitação é um tema tão sensível e lucrativo que a mudança progressiva será lenta e difícil.
No livro, você apresenta uma esplêndida lista de pessoas que estudaram e alertaram sobre o acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera desde o século 19. Apesar dos relatórios científicos que alertam sobre os efeitos fatais do aquecimento global, em 1984 “banqueiros, economistas, diretores-executivos, pastores evangélicos e meios conservadores cúmplices” decidiram ignorar as evidências científicas e induziram à emissão de ainda mais gases de efeito estufa na atmosfera. “Sim, nós sabíamos”, diz o executivo da Shell Ben van Beurden. O que acha dessa confissão?
Eu a descreveria como descarada, mas não é nova nem exclusiva da indústria do petróleo. A indústria armamentista, a indústria automotiva, a indústria química, seus financiadores e os líderes políticos que as apoiam matam milhares de pessoas diretamente, e eles também sabem disso.
Acredita que a Justiça está sendo justa com pessoas que conscientemente causam níveis tão grandes de destruição e morte como os que estão refletidos em seu livro?
Não, pois como os responsáveis (incluindo os investidores) acabam não sendo responsabilizados, seu comportamento é recompensado.
Os incêndios florestais na Califórnia estão fora de controle. ‘O presidente eleito e os meios de comunicação que o apoiam usarão essa tragédia como arma contra o governo liberal da Califórnia.’ Foto: Patrick T. Fallon/AFP
As seguradoras e algumas sentenças judiciais impulsionaram mudanças nos investimentos empresariais, mas os resultados de cúpulas recentes, como a de Baku, ou o fato de que, em 2024, o consumo de petróleo bateu recorde histórico nos Estados Unidos, não parecem favorecer uma mudança real de tendência. Em que ponto acha que o planeta está hoje?
Acho que estamos em uma enrascada enorme. Neste momento, estamos caindo por um precipício. Houve grandes avanços em energia renovável, mas a maior parte dessa energia é adicional, não de substituição. Penso que essa proporção mudará, embora não rápido o suficiente para reverter os danos causados. Por causa dos governos de direita financiados pela indústria do petróleo na América do Norte e em outros lugares, a transição para abandonar o consumo desenfreado de petróleo e carvão será mais lenta e difícil. A indústria de seguros tem influência para provocar mudanças ao retirar coberturas (como já está fazendo) e ao atribuir diretamente a perda de cobertura aos efeitos das mudanças climáticas, mas não acredito que isso vá acontecer. Os mercados financeiros e seus dependentes são sustentáculos da geração de lucros. Até que as mudanças climáticas afetem o processo de criação de riqueza, essas entidades poderosas e seus mestres oligarcas retardarão qualquer ação. Isso é criminoso e deve ser tratado como tal. O dano catastrófico ao condado de Los Angeles é um exemplo perfeito, mas apenas um entre muitos.
Você acredita que os incêndios na América do Norte – Estados Unidos e Canadá – podem ter mais importância do que os de outras partes do mundo para alterar a dinâmica política e empresarial nesses países e no restante do mundo?
Acho que é possível, mas pouco provável, porque o presidente eleito e os meios de comunicação que o apoiam usarão essa tragédia como arma contra o governo liberal da Califórnia, em vez de aproveitá-la para demonstrar que nenhuma cidade – por mais rica ou famosa que seja – está a salvo dos efeitos das mudanças climáticas.
Ultimamente tem se ouvido com mais frequência que, para conscientizar a sociedade, não se deve assustá-la com histórias ambientais apocalípticas, mas sim adotar uma abordagem positiva. Qual é a sua opinião?
Concordo. Não acho que o medo funcione muito bem; ele leva ao desespero e/ou à desconexão. O antídoto contra o medo e o desespero é a “ação”: para nos mantermos engajados e esperançosos, precisamos sentir que temos algum controle sobre nosso destino. Vivemos numa época cínica e polarizada, em que certos atores mal-intencionados manipulam atitudes e emoções de forma extremamente eficaz para preservar um status quo que destrói o planeta. Os ricos querem continuar ricos, mas o que eles não entendem – e a maioria de nós também não – é que, independentemente do ramo de negócios em que atuem, a Natureza detém 51% de participação. A queima de combustíveis fósseis nos deixou em dívida com a Natureza, e agora ela está cobrando essa dívida com cada desastre climático. Ela se comunica conosco por meio do clima, de extinções, pragas e infestações, e ignorá-la é suicídio.
De qualquer forma, você afirma que “somos um supervulcão”, capazes de transformar a atmosfera. Mas supervulcões não entram em erupção perpetuamente. A característica de um supervulcão seria não parar até ter destruído tudo?
Bem, tanto os supervulcões quanto a civilização humana alimentada por combustíveis fósseis são processos orgânicos em larga escala: a escala planetária. Eles deixam de “estar em erupção” quando a energia que os impulsiona se esgota. Existem vários cenários diferentes que podem frear ou interromper nossa atual explosão, e muitos deles já estão se manifestando sob a forma de mudanças climáticas, doenças e colapsos ambientais e sociais.
No livro, há muita terminologia científica e especializada. E novos conceitos e palavras, tão inovadores quanto os próprios incêndios. Sua obra também mistura gêneros literários. Escrever sobre a Natureza é, hoje, uma forma de vanguarda?
Ah! Adoro essa ideia, mas não acho que cabe a mim dizer. Um dos meus objetivos e responsabilidades como escritor/comunicador é manter a linguagem fresca e viva, e encontrar maneiras de fazer com que informações difíceis ou desafiadoras superem as defesas emocionais, intelectuais e ideológicas das pessoas. A beleza da arte e da ciência – e de ser um humano – está no fato de serem atos sincréticos: estamos sempre emprestando, misturando e combinando. A criação – e a evolução – é um processo gratificante do qual vale a pena fazer parte.
Os incêndios no Canadá forçaram a evacuação de mais de 80 mil moradores. ‘A Natureza se comunica conosco por meio do clima, de extinções, pragas e infestações, e ignorá-la é suicídio.’ Foto: SCOTT OLSON/Getty Images via AFP
Gabi Martínez escreveu sobre desertos, rios, mares, montanhas, deltas e todos os tipos de seres vivos. Viveu durante um ano com pastores em uma dehesa (ecossistema tradicional de agrofloresta e pastagem em uma região rural em La Siberia, na Espanha) e outro na última casa antes do mar na Ilha de Buda, na Catalunha, a primeira a ser engolida pelas águas nos anos seguintes. Depois dessas experiências, Martínez escreveu Um Cambio de Verdad e Delta. Sua obra inclui 16 livros e foi traduzida em dez países. O autor impulsionou o projeto Liternatura, é membro fundador das Asociaciones Caravana Negra e Lagarta Fernández, de la Fundación Ecología Urbana y Territorial, e codiretor do projeto Animales Invisibles. Em SUMAÚMA escreve para o espaço LiterNatura.
Texto e reportagem: Gabi Martínez
Edição: Talita Bedinelli
Colaboração: Meritxell Almarza (espanhol)
Editora de fotografia: Soll
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o português: Monique D’Orazio
Tradução para o inglês: Charlotte Coombe
Montagem e finalização: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Natália Chagas
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum