Jornalismo do centro do mundo

Imagem aérea de garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku a 800 metros da aldeia Katõ. Foto: Patrick Granja

“A situação do rio tá feia. A água tá branca, o peixe chega contaminado e o povo indígena está doente. Votei no Lula. Maioria aqui é Lula. Para melhorar, depende da vontade do governo federal.” Essas foram as palavras de Faustino Kaba, 74 anos, decano da aldeia Katõ, ao nos receber poucos dias após o segundo turno das eleições presidenciais de novembro de 2022. A comunidade de 800 habitantes, uma das mais populosas da Terra Indígena Munduruku, no Pará, fica na margem do rio Kabitutu, afluente do Tapajós. Cercados por garimpos ilegais, os indígenas testemunham, dia após dia, a floresta ser engolida com velocidade enquanto a destruição se aproxima de suas casas e contamina rios e igarapés.

Desde 20 de janeiro, quando SUMAÚMA denunciou que pelo menos 570 crianças Yanomami de até 5 anos morreram de causas evitáveis nos quatro anos do governo Bolsonaro, o mundo voltou sua atenção para o genocídio daquele povo. Infelizmente, porém, a situação é  gravíssima em vários territórios indígenas invadidos por garimpeiros ilegais, que também necessitam de uma intervenção urgente do Estado. Uma das mais sérias é a do território Munduruku, onde o garimpo aliciou parte significativa dos indígenas. As lideranças que defendem a floresta e seu modo de vida tradicional, com destaque para o protagonismo feminino de Maria Leusa Kaba e de Alessandra Korap, estão ameaçadas de morte.

Não foi fácil chegar à aldeia Katõ. Nas áreas onde o garimpo avançou nos últimos quatro anos, os invasores se apropriam do território de forma semelhante às milícias e facções criminosas da Baixada Fluminense e de outras regiões dominadas em grandes cidades. Para planejar nossa entrada, encontramos na véspera o cacique geral Arnaldo Kaba e seu irmão Hans Kaba em Jacareacanga, município com pouco mais de 14 mil habitantes na margem esquerda do Tapajós, a quase 800 quilômetros de Santarém e a 3 horas de voadeira da aldeia. O encontro foi acertado por Maria Leusa Kaba, coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn.

Mulheres e criança em igarapé contaminado por rejeitos do garimpo na aldeia Katõ, Terra Indígena Munduruku, no Pará. Foto: Patrick Granja

Nossa conversa com o cacique ocorreu em um local reservado na periferia da cidade. A todo momento era interrompida pelo barulho de aviões monomotores que sobrevoavam a casa, indo ou voltando de algum garimpo, como garantiram nossos anfitriões. O clima era tenso, e as lideranças tinham dúvidas sobre a existência de condições mínimas de segurança para nosso trabalho. “O garimpo já chegou na margem do rio. Dá pra sentir o cheiro forte na água. Pra chegar na aldeia vocês vão ter que passar bem no meio”, alertava Arnaldo Kaba.

Seu irmão, Hans Kaba, que já foi vereador e vice-prefeito de Jacareacanga, preocupava-se com a cooptação de parte dos indígenas pelos garimpeiros. “A Associação Índígena Pusuru, que já foi a entidade mais importante e representativa dos interesses do povo Munduruku, hoje está ligada às ideias propagadas pelo [Jair] Bolsonaro”, lamentou. “Os indígenas estão divididos. O dinheiro divide. A política divide. E a igreja evangélica entra em conflito com a cultura indígena e também nos divide”. Maria Leusa, ameaçada de morte pela sua luta contra o garimpo, contou que teve sua casa e sua aldeia incendiadas em maio de 2021 por um grupo de indígenas apoiados por homens brancos.

A preocupação era que nosso barco pudesse ser identificado e abordado pelos garimpeiros durante o percurso até a aldeia. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari, no Amazonas, em junho de 2022, era uma lembrança presente na cabeça de todos.

Decidimos aceitar o risco da viagem, tomando todas as precauções possíveis. Saímos às 6 horas, escondemos os equipamentos de filmagem durante o percurso, e fomos conduzidos por um dos motoristas de voadeira mais experientes da comunidade. Também fomos acompanhados por dois jovens Munduruku, que não podem ser identificados devido ao risco à sua segurança.

Vestígios da casa de Maria Leusa, uma das principais lideranças Munduruku,  incendiada por indígenas e homens brancos defensores do garimpo. Foto: Octávio Ferraz

O cenário que testemunhamos foi ainda mais devastador do que as descrições do cacique geral, que havia sobrevoado o território pela última vez com o Greenpeace em outubro de 2021. Um dos garimpos que filmamos por drone a partir da casa de Faustino Kaba já se encontra a uma distância de pouco mais de 100 metros da aldeia. Quando chegamos, várias crianças brincavam e mulheres lavavam roupas nas águas esbranquiçadas, contaminadas pelos rejeitos da mineração, do igarapé que banha a aldeia.

Os impactos dessa água poluída por mercúrio e outros produtos tóxicos são cada vez mais conhecidos e preocupantes. Os indígenas se contaminam ao comer os peixes, base de sua alimentação. As crianças são as mais gravemente afetadas. Os problemas as alcançam desde muito antes de nascer, na barriga de suas mães. Como mostram estudos científicos e relatórios, a exemplo deste, da Organização Mundial da Saúde (OMS), o mercúrio atravessa a placenta e causa lesões ao sistema nervoso, ao coração, à tireóide e ao sistema imunológico. Nos adultos, os sintomas são mais sutis, mas não menos preocupantes: falta de atenção, alterações de fala, problemas de coordenação motora e formigamentos. Faustino tremia muito enquanto conversava com a equipe. Sua mulher, Albertina Korap, nem sequer conseguia falar. Corpo enrijecido e cabeça tombada, mirava o chão. Doença de Parkinson ou efeito da contaminação por mercúrio?

Água esbranquiçada por rejeitos do garimpo ilegal no igarapé que dá acesso à aldeia Katõ. Foto: Patrick Granja

A falta de resposta a essa pergunta é mais uma das violações impostas ao povo Munduruku pelo Estado brasileiro. Apesar da emergência sanitária, a maioria dos habitantes dos locais afetados sequer foi testada, incluindo Faustino, Albertina e quase todos os moradores da aldeia Katõ. “Tá todo mundo contaminado. Crianças, velhos, grávidas. Algumas nasceram cegas, outras com dificuldade de andar. Os jovens têm dificuldade para se concentrar nos estudos. Não temos o resultado dos exames, mas a gente vê”, contou Rosinaldo Saw Munduruku, 45 anos, técnico de enfermagem da aldeia Katõ. Ao escutá-lo, pensamos na diferença de tratamento: se um bairro rico de qualquer cidade brasileira estivesse contaminado por mercúrio, como o Estado e a imprensa reagiriam?

Uma testagem geral da população Munduruku, assim como da água dos rios e igarapés e também dos peixes que são a base de sua alimentação é o procedimento mínimo para começar a enfrentar a emergência de saúde. Ao mesmo tempo, é necessário expulsar os garimpeiros ilegais que tomam conta e avançam pelo território, barrando a destruição socioambiental para então tomar as medidas para a recuperação do território. Proteger os indígenas e suas terras ancestrais, garantindo seu modo de vida e sua cultura é dever constitucional do Estado, descumprido por vários governos e rasgado por Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos. A incógnita, agora, é o que o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, vai fazer. E quando.

Erik Jennings, médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) de Santarém, alertou para a necessidade imediata de informar os indígenas prejudicados pelo garimpo para que possam, no mínimo, distinguir os peixes menos contaminados dos mais contaminados. “Certas espécies são mais afetadas pelo mercúrio que outras. Receber informação sobre que peixes evitar na dieta é uma medida preventiva importantíssima”, afirmou.

No final de 2019, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a WWF-Brasil, analisou na região do Médio Tapajós 88 exemplares de 18 espécies. Ficou confirmado que as espécies piscívoras (que se alimentam de outros peixes) apresentam os maiores níveis de mercúrio, a exemplo da piranha-preta, mas é importante que trabalhos assim sejam feitos em todas as regiões afetadas e que seus resultados gerem recomendações para cada contexto específico. Na mesma investigação científica, foram coletadas amostras de 200 pessoas em três aldeias: Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy. Quase 60% (57,9%) apresentaram níveis de mercúrio acima de 6 microgramas (μg) por grama (g), o limite máximo de segurança conforme a literatura especializada.

Aviões de garimpeiros estacionados em aeroporto improvisado às margens da BR-230, em Jacareacanga, no Pará. Foto: Patrick Granja

A verdade é que pesquisas sobre contaminação na região ainda são poucas para o tamanho da tragédia e enfrentam sérios obstáculos políticos em sua realização. Seus autores sofrem até mesmo ataques criminosos. Jennings coordenou uma delas no final de 2019. Depois de muita resistência dentro do próprio Ministério da Saúde, conseguiu enfim coletar amostras de cabelo de 109 pessoas, aproveitando um encontro do povo Munduruku que reuniu integrantes de diversas aldeias da região do Alto Tapajós. Os resultados apontaram contaminação de mais de 99% dos investigados, alguns com níveis 15 vezes superiores aos recomendados pela OMS.

Quando foi levar os dados obtidos à aldeia Waro Apompu, o médico teve o avião cercado no aeroporto de Jacareacanga por indígenas Munduruku pró-mineração. Foi ameaçado e impedido de prosseguir viagem, voltando às pressas a Santarém sob ataque de pedras à fuselagem do avião. Em seu consultório, em outubro de 2022, nos contou que, desde então, não se sentiu mais seguro para voltar à região e continuar o trabalho de conscientização e implementação de medidas de prevenção e proteção à contaminação. A dificuldade das equipes de saúde em atuar nas áreas dominadas pelo garimpo é mais um impacto gravíssimo.

Mais estudos, e numa escala muito maior, são necessários para enfrentar a emergência de saúde causada pela contaminação por mercúrio. Mas esta é só uma primeira medida. A solução passa pelo combate direto à doença de base, a destruição do meio ambiente. Essa doença afeta não só a saúde do povo Munduruku, mas sua própria cultura e existência como povo-floresta. “É uma tristeza para nós. Não só para os indígenas, mas para os animais, para os peixes que vivem dentro d’água. Já chega de sofrer”, desabafou o cacique geral.

O mapa mostra dois novos garimpos filmados por drone pela reportagem na TI Munduruku, muito próximos da aldeia Katõ. Um deles está a 100 metros e outro a 800 metros. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

O garimpo está presente no Alto Tapajós há muitas décadas. A região foi descoberta como grande produtora de ouro ao final da década de 1950. Durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985), com a construção da rodovia Transamazônica (BR-230), no começo da década de 1970, a exploração se intensificou. Até quase o final da primeira década dos anos 2000, no entanto, a garimpagem acontecia de forma ainda semimecanizada ou artesanal, o que limitava os danos causados à floresta e aos rios.

O reaquecimento do preço do ouro, a partir de 2008, e a chegada das máquinas de grande potência, principalmente retroescavadeiras hidráulicas e pás carregadeiras, mudaram totalmente a configuração do garimpo e a magnitude do impacto ambiental da mineração. Chamados de “PCs” e fabricados por multinacionais como Hyundai, Caterpillar, Volvo e Komatsu, entre outras, esses equipamentos são capazes de arrasar centenas de árvores em minutos e produzir crateras imensas no meio da floresta, deixando um enorme rastro de destruição por onde passam, como mostram as imagens, por drone, feitas pela nossa equipe.

O procurador de Justiça Paulo de Tarso Moreira Oliveira, do Ministério Público Federal de Santarém, afirmou que Itaituba se tornou um dos maiores mercados do mundo para esse tipo de produto, embora a cidade banhada pelo Tapajós não tenha muito mais de 100 mil habitantes. A ata de uma audiência pública realizada na Câmara Municipal de Itaituba, em 2019, ajuda a dimensionar o problema. Nela, o representante da Hyundai no município, Roberto Katsuda, agradeceu à “classe garimpeira” pelo sucesso da empresa na cidade: 600 máquinas vendidas entre 2013 e 2019 e um faturamento entre 300 e 600 milhões de reais. Para ter uma ideia, cada máquina chega a custar 1 milhão de reais. Procurado pela nossa equipe, ele não deu resposta.

Maquinário usado por garimpeiros às margens da BR-230, em Jacareacanga, no Pará. Foto: Patrick Granja

Quem conhece Itaituba sabe que não há mercado de construção capaz de absorver esse volume de equipamentos. Outros dados reveladores foram levantados em investigação da Repórter Brasil, publicada em agosto de 2022 sob o título “A Arma do Crime, como Equipamentos Agrícolas e de Construção Civil estão Contribuindo para o Desmatamento Ilegal da Amazônia”. O estudo apurou 157 apreensões pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de maquinário (retroescavadeiras, pás carregadeiras, tratores e escavadeiras) em garimpos ilegais situados em áreas de proteção da Amazônia entre 2016 e 2021, a grande maioria em terras indígenas. Na TI Munduruku foram apreendidas 7 retroescavadeiras e 3 pás carregadeiras, e na TI Sai Cinza foram 8 escavadeiras. Como é explicado no relatório, trata-se de uma estimativa bastante conservadora, já que só foram considerados casos com informação expressa de que a apreensão ocorreu em área protegida.

A responsabilidade das empresas de maquinário pelos danos causados por seus produtos é um tema cada vez mais presente no debate sobre a catástrofe ambiental e climática. Se Lula 3, como é chamado o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência do Brasil, quiser realmente enfrentar o problema da mineração ilegal, este é um dos caminhos possíveis.

O outro é combater a fonte da demanda para esse maquinário, que vem de operações comerciais cada vez mais poderosas econômica e politicamente. O estudo “O Cerco do Ouro: Garimpo Ilegal, Destruição e Luta em Terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, de 2021, descreve como Itaituba, uma pacata cidade de apenas 2.000 habitantes em 1968, tem hoje cerca de 27 mil pessoas trabalhando diretamente com o garimpo. Entre eles está o prefeito, Valmir Climaco (MDB), reeleito em primeiro turno em 2020 e dono declarado de garimpo. Conhecido como o prefeito que mais regularizou áreas para essa atividade no município, Climaco é próximo de Roberto Katsuda, o revendedor da Hyundai já mencionado – e ambos atuam a favor da abertura de terras indígenas à garimpagem, ao lado de vários políticos e empresários locais, nacionais e internacionais. Nessa movimentação, o grupo encontra apoio em altos escalões de Brasília, incluindo deputados, senadores, ministros e o próprio ex-presidente, que, em fevereiro de 2020, enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n°191/2020, para regulamentar a mineração e outras atividades econômicas em terras indígenas. Procurado pela reportagem, o prefeito Valmir Climaco não deu resposta.

Outro levantamento, esse da Agência Pública, relata a explosão dos requerimentos de títulos minerários (autorizações para garimpo) na região do Médio e Alto Tapajós. Foram 97 petições entre 2011 e 2020 incidindo sobre o território Sawré Muybu e mais 25 sobre a TI Munduruku. A principal requerente foi a gigante Anglo American Brasil, com 46 pedidos, seguida por outras empresas, cooperativas de garimpeiros e pessoas físicas, alguns envolvidos em denúncias de crimes ambientais. No total, em 10 anos, foram 656 processos minerários envolvendo pelo menos em parte territórios indígenas na Amazônia. Além dos Munduruku, que foi o povo mais afetado (130 pedidos), houve grande concentração de solicitações nas terras dos Kaxuyana (50) e dos Kayapó (42), ambos no Pará, e dos Yanomami (27), nos estados de Roraima e Amazonas. Esses requerimentos não significam autorização para exploração minerária em terra indígena, porque isso é hoje proibido. Mas revelam como o clima da última década, em especial no último governo, foi de alta confiança entre os empresários da mineração. Existia uma mensagem no ar: investir nesses territórios, mesmo fora da legalidade, havia se tornado um ótimo negócio.

Procurada pela reportagem, a Anglo American Brasil afirmou, em nota, que desde 2015 desistiu de todos os pedidos que interferiam em terras indígenas e que teria concluído esse processo em 2021. A Anglo alega, ainda, que não possui nenhum direito minerário ativo em áreas com interferência em TIs no Brasil. Pedimos evidências documentais dessas desistências, mas elas não foram enviadas até a publicação desta reportagem.

“Para onde esse ouro está indo?”

O impacto da mineração realizada com maquinário pesado na maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do superaquecimento global, foi dramático. Em terras indígenas, o desmatamento causado pela mineração cresceu 632% entre 2010 e 2021, acumulando quase 20 mil hectares. A Terra Indígena Kayapó é a mais afetada, com 11.542 hectares destruídos até 2021, seguida das TI Munduruku (4.743 hectares) e Yanomami (1.556 hectares). Os dados são do MapBiomas.

Já um levantamento feito pelo Greenpeace Brasil a partir de imagens de satélite apontou que, desde 2016, a mineração ilegal sepultou mais de 600 quilômetros de rios localizados nas terras Munduruku e Sai Cinza, no Alto Tapajós. Até então, eram apenas 26,6 quilômetros de rios impactados, um aumento de 2.278% em apenas 5 anos. A varredura flagrou também 16 pistas de voo abertas dentro do território Munduruku.

“Para onde este ouro está indo?”, questionou o cacique geral durante nossa conversa em Jacareacanga. Parte da resposta está nos dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). A quase totalidade do ouro produzido no Brasil é exportada. Mais de 70% vai para apenas três destinos no exterior: Canadá, Suíça e Reino Unido. A estratégia usada pelos comerciantes de ouro ilegal para burlar a fiscalização está bem descrita em estudo recente conduzido em parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais e o Ministério Público Federal.

Entre 2019 e 2020, das 174 toneladas de ouro comercializadas no Brasil, pelo menos 49 toneladas – 28% da produção nacional – foram extraídas de áreas com evidências de irregularidades, correspondendo a 9,1 bilhões de reais.

A estimativa é conservadora. Como a fiscalização da origem do ouro é muito precária – porque as verificações feitas pela ANM do volume produzido nas áreas autorizadas são praticamente inexistentes –, fica fácil “esquentar” o produto ilegal mediante uso de títulos minerários (autorizações) fraudulentos nas guias de recolhimento de imposto (Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM)). Nesses casos, o ouro é declarado como sendo proveniente de uma mina legalizada, mas, na realidade, é extraído em área proibida. O procedimento é muito semelhante ao utilizado para legalizar a madeira obtida no desmatamento da floresta amazônica e de outros biomas.

Para chegar à estimativa de volume de ouro ilegal extraído e comercializado, os pesquisadores usaram uma estratégia engenhosa. Primeiro, pegaram as imagens de satélites do Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que identificaram 21 mil hectares de desmatamentos por mineração. Depois, cruzaram esse conteúdo com os dados registrados como origem do ouro nas guias tributárias da CFEM do mesmo período.

Resultado: em 96% dos casos, não havia sinais de mineração nos locais identificados como a origem do ouro nas guias, indício forte de que o produto seja proveniente de garimpos ilegais. No período do estudo, dos 21 mil hectares desmatados, 5 mil estavam em terras indígenas e, destes, quase 2 mil no território Munduruku.

A conclusão do estudo é taxativa: o cenário de aumento da extração ilegal de ouro “coincide com o desmonte ambiental que teve início em 2012, ainda durante o governo do PT [primeiro mandato de Dilma Rousseff], mas que durante o governo Bolsonaro sofreu forte aceleração, com mudanças de decretos e na gestão dos órgaos ambientais, dificultando as ações de fiscalização.” Os autores também defendem a responsabilização das grandes empresas compradoras de ouro. São elas que mais se beneficiam do produto dos crimes ambientais e deveriam ter o dever de verificar a licitude de sua origem.

“Por que querem nos destruir?”

Diante das promessas de campanha e do discurso de posse do novo governo – dar prioridade à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas, com menção específica ao combate ao garimpo ilegal na Amazônia – há uma forte expectativa de que a situação possa finalmente melhorar. Apesar de aliviadas com o resultado das eleições, já que mais quatro anos de Bolsonaro seriam devastadores, lideranças Munduruku ainda estão bastante reticentes sobre o que efetivamente vai mudar. As feridas causadas pelos megaprojetos de usinas hidrelétricas na Amazônia, como a do rio Teles Pires (afluente do Tapajós), construída em 2014 na divisa do Mato Grosso com o Pará, e a de São Luiz do Tapajós, hoje engavetada, estão bem abertas. Os empreendimentos tiveram um impacto enorme na vida e no território dos Munduruku e foram impostos com base em decisões judiciais contestáveis, descumprindo a obrigatoriedade de consulta prévia aos povos afetados.

Uma carta enviada ao governo em 2013 por lideranças Munduruku resume bem a que ponto chegou sua indignação durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. “Por que querem nos destruir, nós não somos cidadãos brasileiros? Somos tão insignificantes? O que o governo está declarando contra nós? Está declarando guerra para nos acabarem pra depois entregar as nossas terras aos latifundiários e para agronegócio, hidrelétricas e mineração? O governo está pretendendo tirar de nós porque não estamos dando lucro pra ele.”

Uma das lideranças femininas mais combativas e respeitadas entre os Munduruku, Maria Leusa fala ao público na Universidade Federal do Oeste do Pará, onde cursa Direito. Foto: Patrick Granja

Para esta nova fase da luta, os Munduruku vão contar com a força de lideranças femininas que emergiram nos últimos anos, como Maria Leusa Kaba, 35 anos, e Alessandra Korap, 38 anos. Ambas têm em comum a personalidade combativa, as ameaças de morte sofridas e o respeito conquistado desde que assumiram a linha de frente em episódios dramáticos dos últimos anos. Em 2013, Maria Leusa ocupou o canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, paralisando a obra por 92 dias, ao lado de outros 150 Munduruku. Seis anos depois, agora já liderando a Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn, juntou-se a um grupo de pajés e à Alessandra Korap para resgatar 12 urnas funerárias no Museu de História Natural de Alta Floresta, no Mato Grosso. Numa ação arbitrária, as urnas tinham sido levadas para o museu depois de serem arrancadas de um local considerado sagrado, que foi profanado e dinamitado para a construção da Usina Hidrelétrica Teles Pires.

Em maio de 2022, Maria Leusa foi ao encontro de representantes das principais refinarias suíças, na cidade de Berna, e afirmou: “Esse ouro chega aqui na Suíça cheio de sangue. O Estado brasileiro é culpado pelas mortes que ocorrem em nossos territórios, e vocês que compram também são”. No final de julho do ano passado, as refinarias assinaram uma declaração pública condenando o garimpo ilegal, assim como o uso de mercúrio, e comprometendo-se “a não comprar ouro originário de territórios indígenas da Amazônia brasileira e a adotar todas as medidas técnicas e humanas possíveis para não pegar, importar ou refinar ouro ilegal rastreando e identificando esse ouro.”

Alessandra Korap tem duas demandas imediatas para Lula 3: a retirada do garimpo ilegal das áreas indígenas já demarcadas e a demarcação das terras Munduruku no Médio Tapajós. Foto: Patrick Granja

Assim como Maria Leusa, de quem é amiga e colega no curso de Direito da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Alessandra Korap, primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri Munduruku, que representa as 13 aldeias Munduruku no Médio rio Tapajós, também está ameaçada de morte. As sucessivas denúncias que faz não só do garimpo ilegal, mas também da grilagem de terras públicas e construções irregulares de hidrelétricas e portos graneleiros, a obrigaram a entrar no Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do estado do Pará.

Quando perguntamos a ela se estava otimista com a mudança de governo, expressou as mesmas dúvidas que ouvimos de todos os Munduruku com quem falamos: “De 2019 para 2022, por conta das falas do presidente Bolsonaro, as denúncias de irregularidades aumentaram muito. Mas a boiada já estava passando desde o governo Lula. Agora temos esperança que ele aja”. Alessandra Korap Munduruku tem duas demandas imediatas para o novo presidente: a retirada do garimpo ilegal das áreas indígenas já demarcadas e a demarcação das terras Munduruku no Médio Tapajós, objetos de disputas há várias décadas.

Será na segunda demanda que a vontade política e as cores do novo governo serão testadas. O reconhecimento dos 178 mil hectares da Terra Indígena Sawré Muybu, localizada no perímetro de Itaituba, foi interrompido no governo de Dilma Rousseff e desde então se arrasta exatamente pelo interesse que seu governo tinha de construir um complexo de hidrelétricas ao longo do rio Tapajós – desejo que depois foi assumido por Bolsonaro. A hidrelétrica São Luiz do Tapajós (atualmente embargada), se for implementada, alagará metade do território Sawré Muybu.

“Há vários projetos passando por cima das nossas cabeças enquanto não tem a homologação, como a ferrovia Ferrogrão, portos graneleiros e hidrelétricas. O próprio prefeito de Itaituba ignora nossa existência e dizia no começo que não havia indígenas na região. Querem nos apagar para fazer os projetos das multinacionais. Mas resistimos”, diz Alessandra.

Se Lula 3 quer mesmo proteger a Amazônia, precisa agir agora

Com o poder político e os interesses econômicos do lado oposto da sua causa não só na gestão Bolsonaro, mas na maioria dos governos no Brasil, os povos indígenas têm recorrido cada vez mais às instâncias judiciais na tentativa de se proteger. Originário de Salvador e em Santarém há 6 anos, o procurador de Justiça Paulo de Tarso Oliveira faz parte de um combativo grupo do Ministério Público Federal que empreende grandes esforços para combater crimes ambientais e violações dos direitos humanos na Amazônia. A desmobilização e o subfinanciamento das agências ambientais ocorridos no governo anterior intensificaram o trabalho. A nosso pedido, o MPF do Pará realizou pesquisas em suas bases de dados sobre processos judiciais usando as seguintes combinações de palavras: Munduruku ou Mundurucu e mineração ou minerárias ou minerários ou garimpos ou garimpagem ou garimpeiros ou garimpeiras ou ouro ou auríferos ou auríferas ou lavras ou Permissão de Lavra Garimpeira (PLG). As buscas encontraram 29 resultados desde 2013: 23, ou mais de 80%, iniciados a partir de 2019.

Entre os documentos encontrados, há vários inquéritos sigilosos que apuram a ocorrência individualizada de crimes ambientais de desmatamento e mineração ilegal. Em geral, esses inquéritos partem de operações federais para desmantelar garimpos. Uma delas, executada em meados de 2021, foi batizada de Mundurukânia. A eficácia dessas atividades é bastante duvidosa, como comprovam os dados sobre o crescimento vertiginoso da mineração ilegal nos últimos anos. O principal problema é a ocorrência esporádica somada à falta de continuidade. Mesmo quando a ação é bem-sucedida, o garimpo se recompõe muito rápido, na certeza de que não vai ser incomodado tão cedo.

Além disso, as operações sofrem limitações de recursos e são muitas vezes combatidas por políticos locais. Nos 4 anos anteriores, o enfrentamento ao garimpo ilegal foi combatido pelo então presidente da República Jair Bolsonaro. A Mundurukânia é um caso exemplar. Apesar de ter sido qualificada como um sucesso pela Polícia Federal, ao localizar 5 áreas de garimpo, destruir 6 retroescavadeiras, 10 motores de sucção, 10 acampamentos e apreender 50 mil litros de óleo diesel, a operação foi prejudicada pela retirada, na última hora, do apoio das Forças Armadas. Também houve violenta reação de cerca de 200 garimpeiros, que tentaram invadir a base de operações, no aeródromo de Jacareacanga, para destruir equipamentos e aeronaves da Polícia Federal, da Força Nacional e do Ibama. Há suspeitas de que os garimpeiros tenham sido avisados da ocorrência da operação. Político local, o vice-prefeito de Jacareacanga Valmar Kaba chegou a ser preso por suspeita de ter incitado a reação violenta aos membros da operação. Foi também por represália a essa operação que a aldeia de Maria Leusa foi invadida e incendiada, em clara atitude de intimidação contra quem combate o garimpo ilegal. Nenhuma outra operação ocorreu desde então, quase 2 anos depois.

Diante da ineficácia dessas operações esporádicas, o MPF iniciou uma nova estratégia em 2021, na tentativa de sufocar o comércio de ouro. Foi requerido à Justiça, com base no estudo feito em parceria com a UFMG, um embargo geral de todas as permissões para extração, comércio e exportação de ouro na região sudoeste do Pará, que abrange os municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, até que exista um sistema confiável e efetivo de verificação e monitoramento pelas agências federais. Neste mesmo pedido, os procuradores lembraram que já vêm denunciando o problema há bastante tempo “sem que nenhuma medida corretiva tenha sido tempestiva ou eficazmente adotada pelo poder público”. Responsabilizam então os órgãos federais de controle: a própria União, a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Banco Central do Brasil (o Bacen), todos réus na ação proposta em 2021. Segundo o MPF, está “provado que os réus, por sua omissão ilegal e inconstitucional, promovem a irrigação do mercado com ouro de origem ilegal extraído de terras indígenas e que compactuam, portanto, com a prática sistemática e generalizada da fraude denominada esquentamento de ouro, relegando os povos indígenas às ameaças e violências decorrentes da cobiça e da sanha exploratória de invasores, mineradores ilegais, e criminosos”.

O MPF descreve a solução para o problema em medidas a serem adotadas pelos réus, a começar pela “extrusão” (retirada) de todos os invasores das terras indígenas, providência já ordenada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal reiteradas vezes desde meados de 2020, mas jamais cumprida. Além disso, requer a alocação de forças de segurança à região do município de Jacareacanga para assegurar a proteção dos indígenas incluídos no programa de proteção aos defensores de direitos humanos. À ANM e ao Bacen, requer a elaboração e execução de sistemas de certificação de origem e de rastreabilidade do ouro, assim como a instituição da nota fiscal eletrônica. Até hoje, mais de um ano e meio depois, não houve sequer apreciação pelo juiz da causa, que ainda se encontra na primeira instância da Justiça Federal de Itaituba.

Procuradores como Paulo de Tarso enfrentam diariamente a inércia de autoridades que têm poderes, recursos e responsabilidades constitucionais para fazer cumprir a lei. Não desanimar tornou-se parte dos requisitos para trabalhar no Ministério Público Federal nas cidades amazônicas. Ao escutar nossos relatos sobre a situação desoladora que testemunhamos na aldeia Katõ, solicitou a cópia de nossas filmagens e utilizou-as em novo pedido à Justiça Federal de Itaituba para que determine o envio urgente de efetivo da Polícia Federal para retirar os invasores das terras Munduruku. Até a publicação desta reportagem ainda não havia resposta ao pedido.

As leis ambientais e de proteção dos povos originários no Brasil são elogiadas mundo afora como entre as mais modernas e arrojadas. Mas as leis dos humanos não se aplicam sozinhas: dependem de vontade política para prosperar. Nos últimos 4 anos, o Brasil foi governado por forças políticas que apoiaram, de todas as formas que puderam, a violação do sistema legal de proteção da floresta, de seus rios e de seus povos, humanos e não humanos. O povo Munduruku é uma das provas (ainda) vivas desse crime. Se Lula 3 quer mesmo proteger a Amazônia, precisa agir agora. Não apenas com operações vistosas, mas inteligência, responsabilidade e constância. Não basta expulsar os garimpeiros, é preciso garantir que não voltem. E é necessário descontaminar os rios, tratar dos corpos de adultos e crianças, demarcar as terras indígenas e começar a reflorestar a Amazônia.


Esta reportagem é uma parceria de SUMAÚMA com o Transnational Law Institute do King’s College London – projeto The Laws of our Sustainable Future

 

A liderança Isaura em frente à casa de uma de suas filhas, incendiada por garimpeiros na aldeia Fazenda Tapajós, a mesma de Maria Leusa Kaba. Foto: Patrick Granja

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