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As antenas da Starlink, empresa controlada pelo multibilionário Elon Musk, já estão em 96% dos municípios da Amazônia Legal. Foto: Apu Gomes/Getty Images via AFP

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Uma verdade incômoda: para se conectar à internet, grande parte da Amazônia depende de Elon Musk, um multibilionário com vínculos ostensivos com a extrema direita global. Antenas da Starlink estão presentes em mais de 96% dos municípios da Amazônia Legal, segundo levantamento realizado por SUMAÚMA a partir de dados da Anatel. Dos 772 municípios que integram a região, 743 contavam com no mínimo uma antena do serviço de conectividade por satélite oferecido pela empresa SpaceX em julho de 2024. Hoje, o número pode ser ainda maior.

A conexão rápida e fácil da constelação de satélites de baixa órbita, cuja tecnologia difere das demais disponíveis no mercado, chegou a áreas onde antes havia pouco ou nenhum acesso à internet. Essa tecnologia se expande entre pessoas e comunidades que até então usavam serviços caros e instáveis, entre quem nunca teve conectividade e em entidades públicas, como o Exército, a Petrobras e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). 

As novas conexões permitem, por um lado, usos como telemedicina, educação a distância, práticas de segurança e possibilidades de empreendedorismo, além de comunicações simples e importantes do dia a dia. Em contraste, o atual monopólio levanta preocupações ligadas à concentração da infraestrutura nas mãos de um ator controverso, à possibilidade de interrupção do serviço e à proteção e governança de dados. Sem contar outros fatores, como a ausência de ações conjuntas de educação midiática e o uso da tecnologia por criminosos, como chefes do garimpo e do narcotráfico, em lugares remotos da Floresta Amazônica.

Se há o uso positivo da internet pelas comunidades, como telemedicina e educação, anúncios mostram que ela também beneficia o garimpo ilegal. Fotos: Reprodução/internet

Os receios ligados à Starlink se aguçaram após o descumprimento da legislação brasileira pelo X (ex-Twitter) ter levado o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes a bloquear a rede social no Brasil. Em 13 de setembro, Moraes ordenou a transferência de 11 milhões de reais da Starlink à União para garantir o pagamento de multas que o X recebeu por se recusar a bloquear perfis de investigados pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Ambas as empresas são controladas por Elon Musk.

Para entender os riscos envolvidos no domínio da Starlink na Amazônia, SUMAÚMA conversou com estudiosos e ativistas que trabalham com temas ligados à internet e com usuários do serviço. Além de apontarem problemas, eles apresentam alternativas para mitigar os riscos. Enquanto isso, o governo federal diz trabalhar para corrigir uma deficiência histórica e conectar a região.

Antes desconectada, agora dependente

A Starlink só se expandiu tanto na Amazônia porque o Estado brasileiro durante décadas falhou em conectá-la. Segundo o estudo Conectividade Significativa, publicado em abril de 2024 pela organização NIC.br, o Norte é uma das regiões menos conectadas do país. Só 11% da população da Região Norte dispõe do mais alto nível de conectividade significativa – isto é, da plena capacidade de exercer a cidadania no ambiente digital, dispondo desde velocidade até habilidades digitais.

Dificuldades de infraestrutura são parte desse problema. Levar cabos de fibra óptica através de zonas de mata densa e rios gigantescos demanda investimentos consideráveis – tarefa que historicamente o poder público não cumpriu – e é um empreendimento pouco atrativo para o setor privado.

Um problema grave é o da chamada “última milha”. Muitas vezes, a conexão vai até uma capital, mas não alcança localidades rurais próximas. “As empresas não têm interesse em investir em infraestrutura para atender a esses territórios, considerados pouco lucrativos. Viemos de sequência de sucessivos governos incapazes de fazer com que empresas façam esses investimentos”, afirmou Hemanuel Veras, pesquisador de doutorado sobre conectividade na Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA), de Manaus.

Foi nesse contexto que a Starlink proliferou. Depois de uma aprovação acelerada pelo governo Bolsonaro, em janeiro de 2022, a empresa começou a realizar vendas comerciais para a Região Norte em novembro daquele ano, até chegar à atual ampla disseminação.

A ausência de concorrentes causa vulnerabilidades na continuidade do serviço. No dia 29 de agosto, para punir o X, o ministro do STF ordenou o congelamento das contas da Starlink no Brasil. O bloqueio das contas, já encerrado, não significava que a Starlink pudesse legalmente cessar o seu serviço. Segundo especialistas em direitos digitais, uma suspensão implicaria em violação de termos de serviço com os consumidores e poderia acarretar sanções por parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e também processos.

O ministro do STF Alexandre de Moraes puniu a Starlink como forma de pressionar Elon Musk no caso do X. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

“Mesmo sem conseguirem receber, o direito do consumidor obrigava a empresa a manter a continuidade do serviço contratado. Caso contrário, os consumidores poderiam contestar a decisão no Judiciário”, explica Luã Cruz, co-coordenador em Telecom e Direitos Digitais do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). Mas, quando se trata do controverso Elon Musk, que acredita estar acima das leis, tudo é possível.

O ministro do STF parece determinado a insistir na tática de punir a Starlink para pressionar Musk: no dia 19 de setembro, ele impôs nova multa à empresa de satélites, de 5 milhões de reais ao dia, após o X contornar o bloqueio no Brasil. Com a pressão, a personalidade imprevisível de Musk faz crescer a preocupação com o futuro da conectividade na região amazônica. “Não é tão simples que ele pare de oferecer a conexão, mas é bom lembrar que não estamos falando de uma pessoa muito linear. Não surpreenderia que ele tomasse uma decisão como a suspensão, embora isso significasse perda de capital e lidar com sanções da Anatel”, disse Fernanda Kalianny Martins, diretora do InternetLab.

Outra incerteza quanto à garantia de continuidade do serviço aflorou em 24 de setembro. O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, afirmou que, caso a Starlink tenha descumprido uma decisão judicial intencionalmente, para colocar o X no ar, o ministério pode entrar com um processo para suspender a permissão de operação da Starlink no Brasil. “Dependendo da apuração, se tiver qualquer afronta em torno do não cumprimento de uma decisão judicial, as providências necessárias serão tomadas. Uma delas, como eu falei, é a abertura de um processo de cassação de outorga”, enfatizou.

Estudiosos da internet consideram muito improvável que a ameaça do ministro vá adiante. Além de dificuldades burocráticas e jurídicas, a interrupção do serviço teria custos políticos altíssimos, pois deixaria centenas de milhares de usuários sem conectividade.

“Não acredito que seja algo viável no curto prazo. Teria um impacto político para o governo, e material na vida de comunidades inteiras. É um movimento em sentido político”, disse Paulo José Lara, codiretor-executivo da organização de defesa da liberdade de expressão e do acesso à informação Artigo 19 Brasil. “Os efeitos seriam péssimos, principalmente em áreas remotas onde a Starlink chegou sem que houvesse conectividade por outros meios.”

Mas, mesmo se neste momento o serviço for mantido, a médio e a longo prazo não há garantias de continuidade. A licença para operação vai até março de 2027, e a vida útil de um satélite da Starlink é de aproximadamente cinco anos. Se a empresa um dia decidir que o Brasil, onde tem mais de 200 mil usuários, não é mais um mercado interessante, a atual situação significa que populações vulneráveis voltarão a ficar sem rede de internet.

“Não acredito que a turbulência atual leve a Starlink a suspender as atividades, mas ela pode ter repercussões a médio prazo. Há uma indefinição de como os processos vão impactar os serviços no futuro”, afirmou Lara.

O fornecedor único implica também outros riscos, observou Hemanuel Veras. “As pessoas ficam sujeitas a não conseguir se comunicar se, por exemplo, o serviço falhar por questões operacionais, ou então podem vir a pagar valores abusivos, já que não há empresas concorrentes”, alertou.

Se a Starlink falhar ou sair do Brasil, milhares de comunidades ficarão sem comunicação porque ainda não há alternativas com qualidade. Foto: Filipe Bispo/SUMAÚMA

E o controle de dados?

Muitas dúvidas relacionadas à Starlink se referem ao uso de dados pela empresa. Essas preocupações se acentuam na Amazônia, devido ao caráter estratégico e único da região. Dois termos, um global e outro específico para o Brasil, definem a política de privacidade dos dados da Starlink. O brasileiro está sujeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), legislação de 2018 considerada muito avançada para a proteção das informações dos usuários.

Mas pelo menos uma frase do acordo de serviço abre espaço para outros usos dos dados por parte da Starlink: “Por sermos uma empresa global, esteja ciente de que os seus dados pessoais podem ser transferidos, armazenados e utilizados no exterior, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido”, diz o documento.

Os dados recolhidos pela empresa, segundo ela própria, incluem localizações geográficas aproximadas, endereços virtuais, dados financeiros e informações pessoais. Uma vez fora do país, esses dados não estão mais sujeitos às mesmas proteções brasileiras, afirmou Rafael Zanatta, diretor da Data Privacy Brasil, associação que atua em prol da proteção de dados e dos direitos digitais.

Ele observa que a escolha do país recipiente dos dados não é casual: “Estados Unidos e Reino Unido oferecem níveis inferiores de proteção de dados. Se houvesse transferência a um país europeu, estaríamos mais seguros, pois a [lei europeia] GDPR é equivalente à LGPD”, diz Zanatta. “Há uma escolha de jurisdições mais maleáveis.”

Em sua política global, a Starlink afirma que não vende, “de forma voluntária, suas informações pessoais”. Isso não impede, porém, que ela própria as utilize internamente. Zanatta cita “riscos de inferências sobre geolocalização e também mapeamento de territórios”.

Especialista em direitos digitais, a professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Gabrielle Bezerra Salles alerta para o fato de que Musk pode usar os dados também em suas outras empresas de tecnologia, como, por exemplo, a Colossus, recente iniciativa de inteligência artificial. “Eles não têm interesse de vender, [já que] quanto maior forem seus bancos de dados, melhor para eles. Musk está lançando uma superpotência de inteligência artificial, ele tem interesse em armazenar os dados e poder tratá-los ao seu bel-prazer”, afirmou.

Fora do Brasil, os dados ficam sujeitos também à solicitação secreta de Musk e uso por parte de órgãos militares e de inteligência, alerta Zanatta. “Os Estados Unidos têm um aparato muito grande de obtenção forçada de informações. Eles possuem mecanismos para, quando houver interesse estratégico e interesse militar, autorizar acesso mandatório de algumas informações via cortes especiais”, explica.

Mais cabos e mais concorrência

A principal alternativa ao domínio do serviço é a expansão da rede de fibra óptica na região. Iniciado pelo governo Bolsonaro e continuado pela atual gestão, o programa Norte Conectado prevê o investimento de 1,3 bilhão de reais para a construção de oito infovias, percorrendo ao todo 12 mil quilômetros, capazes de levar internet de banda larga a áreas desconectadas da Região Norte.

Já foram inauguradas três infovias: a 00, de Santarém, no Pará, a Macapá, no Amapá; a 01, de Santarém a Manaus, no Amazonas; e a 03, que interliga Macapá a Belém, no Pará. Atualmente, está em andamento a instalação da Infovia 04, que conectará Boa Vista, em Roraima, a Vila de Moura, distrito de Barcelos, no Amazonas. Segundo o governo federal, as oito infovias serão implantadas até 2026.

O programa Norte Conectado prevê a construção de oito infovias de fibra óptica em rios da Região Norte, percorrendo 12 mil quilômetros. Foto: Divulgação EAF

O Ministério das Comunicações afirmou por e-mail que “o projeto procura conectar as principais cidades dentro da região amazônica e pequenas comunidades entre elas (…). É o caso, por exemplo, da Infovia 03, que leva internet a cidades da Ilha do Marajó, como Curralinho e Breves, que estão entre os menores IDHs do país”.

O órgão acrescentou que “comunidades Indígenas também serão atendidas pelas infovias, como, por exemplo, Belém dos Solimões, que será conectada pela Infovia 02, cujas obras devem começar até o final do ano”.

Uma vez instalada, a infraestrutura pode ser explorada por pequenos e médios provedores, que podem realizar extensões e conectar localidades próximas. O Ministério das Comunicações afirmou que “está apoiando o crescimento desses provedores por meio de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, que vai contar com 5 bilhões de reais para empréstimos até 2026 [em todo o país]”. No dia 24 de setembro, o governo lançou o Programa Acessa Crédito Telecom, que oferecerá crédito para apoiar pequenos e médios provedores para levarem internet banda larga fixa a municípios com menos de 30 mil habitantes, priorizando locais com comunidades Quilombolas, tradicionais e Indígenas.

Outra possibilidade a ser explorada pelo poder público é a exigência do aumento de contrapartidas por parte da Starlink. Segundo informações da Agência Pública, a empresa pagou 102 mil reais para operar no Brasil. Atualmente, a companhia pede licença para operar mais 7,5 mil satélites no país, em expansão aos atuais 4.408. “Os operadores de fibra óptica obedecem mais a regras do que os de satélite. A operação da Starlink foi autorizada sem obedecer a nenhuma regra e sem praticamente oferecer contrapartidas. Precisamos exigir mais para autorizar a operação de novos satélites”, disse Oona Castro, diretora Institucional do Instituto Nupef, organização que atua na promoção do uso seguro das tecnologias de informação e comunicação.

Os pesquisadores entrevistados ressaltaram a necessidade de maiores investimentos em ciência e tecnologia para que o Brasil possa, eventualmente, vir a desenvolver o próprio sistema de satélites de baixa órbita.

Enquanto isso não acontece, há ainda mais uma alternativa: a chegada de concorrentes no mercado. No dia 11 de setembro, a empresa francesa E-Space, que também usa satélites de baixa órbita, foi autorizada pela Anatel a fornecer internet no país. Ainda não se sabe quando o serviço passará a ser oferecido. Para o próximo ano, é esperada a chegada do Kuiper, serviço concorrente da Amazon.

“A competição tende a diminuir o problema e melhorar os serviços prestados. Apesar de a Amazon ter também um bilionário excêntrico, [Jeff Bezos], ele não é tão errático quanto  Musk”, disse Luã Cruz, do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec).

Procurada pela reportagem, a Starlink não respondeu às perguntas enviadas.

A Starlink armazena os dados nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde estão fora da proteção da lei brasileira. Foto: Filipe Bispo/SUMAÚMA


Reportagem e texto: André Duchiade
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Maria Jacqueline Evans
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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