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A eurodeputada Marie Toussaint, vice-presidente do Grupo Verde no Parlamento Europeu. Foto: Sebastien Salom-Gomis/AFP

Todo mundo já sabe: a União Europeia dispõe agora de uma lei para prevenir o desmatamento global e também o chamado “desmatamento importado”. A UE adotou um regulamento (com efeito direto em seus estados-membros) que evitará mais danos às florestas globais causados pelo consumo e pelas ações realizadas pelo bloco econômico. A Amazônia e outras florestas tropicais do planeta, como as da Indonésia e da Bacia do Congo, deverão agora ser protegidas de atividades predatórias da UE.

A pegada florestal da União Europeia aumentou nos últimos anos e contribuiu com 16% do desmatamento global em 2021. Com isso, o bloco se torna o maior desmatador do planeta. A adoção de medidas é necessária há muito tempo. O texto da nova regulamentação é inédito no mundo. Apesar de suas brechas, mostra a determinação da União Europeia em parar de destruir ecossistemas para consumo próprio e se tornar líder no cenário global.

O que vai mudar?

As ações que precisam ser realizadas dizem respeito principalmente aos estados-membros, aos comerciantes e à cadeia de suprimentos de produtos ligados ao desmatamento. Todas as empresas da UE e todas as empresas que colocam produtos no mercado interno europeu, ou os exportam, terão que cumprir as obrigações de due diligence [diligência prévia]. Em termos mais concretos, isso quer dizer que as empresas terão que mostrar que nenhum dos seguintes produtos que comercializam gerou desmatamento após 31 de dezembro de 2020: madeira, gado, soja, cacau, café, óleo de palma e seus derivados, exceto biodiesel, borracha, carvão ou papel impresso. Biodiesel e milho poderão ser adicionados à lista em dois anos, após a realização de análises de impacto. Claro que faltam vários produtos: infelizmente, ainda teremos que lutar para que sejam incluídos. Ao escrever este artigo, solidarizo-me com a luta dos colombianos contra a destruição de sua floresta para a produção de abacate destinado ao consumo na UE.

Você também pode se perguntar: como a UE define uma floresta? Isso diz respeito à minha própria terra?

A UE decidiu seguir a definição de floresta definida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Infelizmente, essa definição omite “outras terras florestadas” (termo usado para descrever os ecossistemas do Cerrado brasileiro e do Pantanal argentino, por exemplo, que são apenas parcialmente cobertos pela definição da FAO) e “outros ecossistemas”, o que teria permitido que os manguezais também fossem protegidos. Uma revisão do regulamento foi exigida pelo Parlamento Europeu, e a UE pode ampliar as obrigações atuais para que abordem esses ecossistemas florestais complementares nos próximos dois anos.

Embora não tenhamos conseguido cobrir todas as árvores e territórios, conseguimos proibir as empresas de comercializar produtos que causam degradação florestal, ou seja, “mudanças estruturais na cobertura florestal, assumindo a forma de conversão de floresta primária ou floresta em regeneração natural em floresta de plantação ou em outras áreas florestadas, assim como a conversão de floresta primária em floresta plantada”. A inclusão do termo “floresta degradada” foi uma grande vitória, pois sem isso as empresas poderiam ter contornado a definição de floresta feita pela FAO e as obrigações relacionadas, deixando 10% da cobertura arbórea e destruindo o restante. É preciso destacar que as emissões de gás carbônico relacionadas à degradação florestal são contabilizadas no mesmo nível que o desmatamento puro.

Para implementar a nova regulamentação, a Comissão Europeia terá que categorizar os países de acordo com seus riscos de desmatamento e degradação. O nível das obrigações e das verificações e controles contemplará três categorias: países de baixo risco, risco padrão e alto risco com, respectivamente, 1%, 3% e 9%.  Por exemplo: o Brasil, como é de alto risco, teria 9% de todas as mercadorias verificadas, e a Noruega, de baixo risco, apenas 1%. Sanções serão aplicadas se, durante as inspeções, for constatado que as empresas estão desrespeitando as obrigações de due diligence impostas pelos estados-membros. Entre as penalidades estão multas de até 4% do faturamento anual da empresa na UE, privação de subsídios públicos ou negação de acesso ao mercado da UE. As autoridades competentes terão acesso às informações relevantes fornecidas pelas empresas nas terras agrícolas onde as commodities foram cultivadas, com o auxílio de uma metodologia de “geolocalização” por meio de polígonos, ferramentas de monitoramento por satélite e análise de DNA para verificar a origem dos produtos.

Os operadores financeiros, incluindo bancos e seguradoras, não foram incluídos entre os que têm obrigações no escopo do regulamento da UE. É lamentável, considerando que os bancos europeus receberam mais de 400 milhões de euros em benefícios por atividades ligadas ao desmatamento entre 2016 e 2020. Essa luta crucial, porém, ainda não acabou: a UE terá que fazer uma avaliação dos impactos e uma análise de viabilidade daqui a dois anos.

Como essa regulamentação pode ser aplicada na Amazônia?

O acesso à justiça não é uma qualidade intrínseca da União Europeia, por isso tivemos de ser muito precisos para garantir que as pessoas físicas e jurídicas afetadas possam recorrer ao direito europeu. Para piorar, o novo regulamento aborda de maneira muito superficial os impactos causados pelo desmatamento sobre os direitos humanos. O texto apenas insiste no conceito de Consentimento Livre, Prévio e Informado e no respeito aos acordos internacionais se os países tiverem incluído essas regras em suas legislações nacionais.

No entanto, como já vimos em processos movidos na França contra o grupo de supermercados Casino e o banco BNP Paribas por violação da lei de due diligence, haverá a possibilidade de ONGs e ativistas fazerem alertas e iniciarem ações judiciais nos casos em que as obrigações forem desrespeitadas de forma flagrante.

Essa legislação da UE visa proteger a biodiversidade, manter um clima estável e garantir água potável. Nós, os políticos verdes do planeta, precisaremos trabalhar em estreita colaboração com especialistas e ONGs para garantir que as novas obrigações sejam respeitadas, assim como avaliar se são suficientes para proteger as florestas e os direitos das pessoas. É uma missão a ser realizada de forma conjunta. Existe, porém, um detalhe: como o regulamento só entrará em vigor em 18 meses, isso dá tempo para os estados-membros e as empresas se organizarem e também dá tempo para nós, protetores e guardiões da floresta, estarmos prontos para agir e reagir. Os próximos passos são o reconhecimento dos direitos das florestas, a condenação do ecocídio e um acordo global sobre a biodiversidade.


Traduzido por Isabel Murray

A pegada florestal da União Europeia aumentou nos últimos anos e contribuiu com 16% do desmatamento global em 2021. Na imagem, área desmatada na Amazônia. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

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