Rikaro Kayapó é a meprintire – criança-mulher – do povo Mebengôkre. Na linha de frente da defesa dos direitos do Rio e dos povos-floresta no Xingu, coração dos Kayapó, ela transita entre dois mundos. Do colo da mãe, Kokonrgri Kayapó, observa as mulheres pintarem umas às outras, com o preto do sumo do jenipapo misturado com carvão e o vermelho, extraído do urucum. De pés no chão, alcança um carinho do pai, Takakpe Kayapó, no outro grupo, onde pode espiar o trabalho dos homens, que entalham com facas algumas pontas de flechas e bordunas de madeira. Rikaro está na cidade – e não na Floresta de seus ancestrais – porque a privatização da Eletrobras no governo Bolsonaro (2019-2022) afetou os compromissos assumidos pela empresa com o povo Mebengôkre (também chamado de Kayapó) durante a construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte.
A menina Mebengôkre, de 2 anos, tem olhos grandes e arredondados, com brilho de caroço de açaí. Ligeiros e atentos à luta dos pais, duas das 73 lideranças que desembarcaram em Altamira, no Pará, no dia 25 de novembro. Enfrentaram uma viagem de mais de 14 horas para reivindicar a renovação de um Termo de Cooperação entre Eletrobras, Norte Energia, Funai e associações Kayapó, parte das condicionantes Indígenas de Belo Monte, sem previsão para o início de um novo ciclo desde o final de 2023.
Apesar da idade, Rikaro acompanha de corpo presente cada ato de protesto, organização e negociação. Desde a chegada, com a ocupação da sede da Norte Energia, quando funcionários da concessionária de Belo Monte fugiram pela porta dos fundos, até o momento de espera por respostas, reunidos no Centro de Formação Bethânia. Em fevereiro de 1989, os Mebengôkre fizeram desse centro ligado à Igreja Católica uma aldeia com mais de 600 Indígenas de diferentes etnias, no que ficou conhecido como o Primeiro Encontro das Nações Indígenas do Xingu, um marco na luta contra o barramento do Rio. Mais de três décadas depois, a menina-guerreira encarna a nova geração que levará a luta adiante no futuro.
Assim Rikaro desliza em sua meninez, brincando e aprendendo entre os benadjwryjy (autoridades), as menires (mulheres) e os guerreiros Mebengôkre. “Uma criança, mas já uma mulher forte, que desde essa idade já está resistindo”, diz sua mãe. Nesse solo histórico de resistência, empunha sua kop, borduna em forma de espada, feita sob medida para ela, e por isso muito menor e mais leve que as dos guerreiros adultos, mas com o mesmo peso simbólico, da luta pela vida. Como a lâmina do facão e o gesto vivo de Tuire Kayapó, que atrasou Kararaô, embrião do projeto que culminou na catástrofe humanitária e ambiental em curso desde a construção de Belo Monte, a hidrelétrica cujas turbinas seguem ligadas com a licença vencida desde 2021 e sem que se tenha cumprido, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), grande parte das condicionantes exigidas para sua operação.
A resistência Mebengôkre se movimenta como as redes de micélios no solo úmido da Floresta. Cada passo, canto e gesto pensado coletivamente. Em Mebengôkre, língua-mãe que conduz o modo Kayapó de ler, expressar e partilhar a vida e o mundo, traço evidente para quem testemunhou o seu retorno ao Médio Xingu. O amarelo vibrante dos cocares e das tornozeleiras faz contraste com a estética metalizada e corporativa da fachada da sede da Norte Energia, enfeitada com câmeras de segurança. A única resposta rápida da empresa foi a desconfiança.
Afetadas pela privatização da Eletrobras, lideranças Mebêngôkre ocuparam o prédio da Norte Energia, concessionária de Belo Monte, em Altamira
Por que os Mebengôkre ocupam a Norte Energia
As lideranças presentes na mobilização, vindas das Terras Indígenas Kayapó, Las Casas, Menkragnoti e Baú, representavam 59 aldeias Kayapó do Alto Xingu, filiadas à Associação Floresta Protegida e ao Instituto Kabu. Os Mebengôkre foram reconhecidos dentro das condicionantes Indígenas pelo Parecer Técnico nº 21 da Funai. Emitido em 30 de setembro de 2009, o documento avalia os impactos de Belo Monte em relação às terras e comunidades Indígenas. Também colabora para as decisões do licenciamento com informações técnicas e garante que as exigências legais sejam cumpridas.
A inclusão dos Mebengôkre no componente Indígena é justificada, no parecer, por razões como a profundidade da sua relação com o Rio, as redes sociais e culturais com povos diretamente afetados, assim como a história de resistência desse povo contra projetos que ameaçam a Amazônia. O documento ainda leva em consideração a possibilidade de aumento de conflitos, invasões e exploração da Floresta no território Mebengôkre, por conta do crescimento populacional. “Nós que estamos lá em cima asseguramos a cabeceira do Rio Xingu. A Funai deu o parecer, que tanto o Alto, o Médio e o Baixo Xingu tinham direito ao Termo de Cooperação”, afirma Doto Takak Ire, de 50 anos, presidente do Instituto Kabu. “As duas instituições trouxeram as lideranças. Chegamos de manhã e a Norte Energia não quis nos receber”, conta Kokoró Mekrãgnotire, de 51 anos, outra liderança do Instituto Kabu presente na mobilização.
Com a falta de espaço para o diálogo, os Indígenas ocuparam a sede da empresa e bloquearam o ponto da Avenida João Paulo II que dá acesso ao aeroporto interestadual de Altamira. “Nossas atividades estão paradas, por causa disso a gente veio cobrar Norte Energia e Eletrobras para eles aprovarem. Se não aprovar, a gente continua acampado aqui”, diz Kokoró.
Para não serem ignorados pelas duas empresas, os Kayapó bloquearam a avenida que dá acesso ao aeroporto
O imbróglio do mundo dos brancos
Os recursos do primeiro ciclo do acordo, assinado em abril de 2012, foram destinados a atividades de geração de renda, estruturação das aldeias, segurança alimentar e proteção do território. “O Instituto Kabu trabalhou cinco anos executando um plano de trabalho. Para ajudar na safra de Castanha, Cumaru e na fiscalização”, explica Doto Takak Ire. A cada novo ciclo, cada um com cinco anos de duração, os custos e demandas das atividades sustentáveis, fortalecimento institucional e defesa do território, conforme a liderança, aumentavam. Principalmente no último ciclo, entre março de 2018 e março de 2023.
Segundo a Associação Floresta Protegida, o bloco das Terras Indígenas Mebengôkre abrange mais de 10 milhões de hectares de Florestas e Cerrados. O acesso a muitas aldeias só é possível de barco ou avião, o que torna a logística para implementar qualquer projeto sustentável ou de mitigação de impactos um grande desafio. “A logística é sempre complexa”, diz Carolina Sobreiro, de 39 anos, assessora da Associação Floresta Protegida.
Outro desafio é a proteção e o monitoramento do território, localizado no arco de desmatamento. O bloco enfrenta pressões crescentes com atividades de desflorestação, pecuária e garimpo, intensificadas durante os anos de governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL). Naquele período, a proteção do Estado, que já era insuficiente, deixou de existir, e as atividades ilegais avançaram, “com a esperança de que fosse legalizada a atividade garimpeira”, explica Carolina Sobreiro. Nesse cenário, o Instituto Kabu, que tinha quatro bases de monitoramento em 2019, passou a contar com oito. Uma delas, na Terra Indígena Baú, precisa funcionar o ano todo para que o garimpo não volte, ilegalidade que avança também com a cooptação de Indígenas.
Vista da Terra Indígena Baú, onde há duas bases de monitoramento para proteger os povos de ameaças como garimpos. Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
Ainda que estejam dentro do mesmo termo de compromisso, a Associação Floresta Protegida e o Instituto Kabu possuem acordos e planos de trabalho distintos, cada qual com suas necessidades. E chegam a Altamira com as negociações em estágios diferentes. A Associação Floresta Protegida já tinha um plano de trabalho aprovado pela Eletrobras e pela Funai, só faltando a redação e a assinatura da minuta do contrato. Já as propostas do Instituto Kabu ainda não haviam sido aceitas pelas empresas.
Entre Lula e Bolsonaro, o que se passou
Em 2006, ao final do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Funai definiu quatro grupos de análise para o componente Indígena. Os territórios Kayapó, onde inicialmente não seriam feitos estudos, ficaram no grupo 3. O componente Indígena para os Kayapó levava em conta os impactos psicossociais que alcançam esses povos desde o projeto do complexo Kararaô. Na presença de técnicos da Funai, da Eletrobras, da Eletronorte e das empreiteiras Camargo Corrêa, Odebrecht e Andrade Gutierrez, o povo Indígena considerou que, apesar de não ter as terras atingidas, “o Xingu é o coração dos Kayapó” e não deveria ser barrado.
Foi agregada como condicionante de Belo Monte a assinatura de um termo de compromisso entre a Funai e a Eletrobras para fortalecer programas de apoio e assistência às Terras Indígenas. Após o leilão para a construção da usina, em 2010, ao final do segundo mandato de Lula, ocorreu uma divisão: a Norte Energia assinaria um termo, como parte das condicionantes do empreendedor, para apoiar as ações dos povos da região do Médio Xingu, enquanto a Eletrobras assinaria outro termo, como parte das condicionantes governamentais, para atender os Kayapó. Os termos foram assinados naquele mesmo ano.
Desde então, era com a Eletrobras que os Mebengôkre tratavam as renovações do componente Indígena. A Norte Energia bancava os recursos, mas, segundo o advogado do Instituto Kabu, Melillo Dinis, não participava da negociação. “No sistema anterior, a relação era basicamente com a Eletrobras. Não tinha nenhum tipo de situação em que os Kayapó precisassem dialogar com a Norte Energia”, afirma.
O extremista de direita Jair Bolsonaro assumiu a Presidência dez meses após o início do terceiro ciclo do acordo dos Mebengôkre. As consequências de sua passagem pelo cargo vão além do incentivo às atividades ilegais e sucateamento das instituições e leis ambientais. Em 2022, depois de um projeto sistemático de diluição da Eletrobras, maior companhia do setor elétrico da América Latina, o ex-presidente privatizou a empresa através de uma capitalização – processo em que a União vende as ações na bolsa de valores e, ao ficar com uma parte menor, deixa de tomar as decisões mais importantes. Tudo então ficou muito mais complicado.
Em 2024, foi a primeira vez que as associações Kayapó reivindicaram a renovação do componente Indígena não ao Estado brasileiro, mas a duas empresas privadas. “A privatização piorou a relação com os povos tradicionais”, avalia Melillo.
SUMAÚMA perguntou à Eletrobras o que mudou na atuação socioambiental da empresa. Não houve resposta. Fontes do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), que representa trabalhadores do setor elétrico nacional, dizem que as áreas de meio ambiente, indigenista e fundiária foram fatiadas em diferentes diretorias e centralizadas no Rio de Janeiro, além de haver uma diretriz de “economia a qualquer custo”, incluindo programas socioambientais que a empresa avalie não serem de sua responsabilidade.
Belo Monte, a usina que barrou o Rio Xingu, está há mais de três anos com a licença de operação vencida, sem previsão de renovação pelo Ibama. Foto: CARLOS FABAL/AFP
Os impactos de Belo Monte ultrapassam os Kayapó
O canto dos guerreiros Mebengôkre no sol escaldante das ruas de Altamira, bloqueadas por eles com cordas e galhos, faz emergir no Médio Xingu uma realidade que por vezes fica invisível aos olhos de muitos, mas que é vivida no cotidiano daqueles que continuam com as feridas abertas pela construção de Belo Monte. Na linha direta da destruição provocada pela hidrelétrica estão os parentes Juruna e Arara, as comunidades Ribeirinhas e os agricultores da Volta Grande do Xingu, área com cerca de 130 quilômetros de extensão onde o Rio Xingu faz a curva. A luta pelo fluxo de água e vida na Volta Grande, que a barragem vem sufocando, ainda é um dos nós dessa história.
O chamado “hidrograma de consenso” (mas sem nenhum consenso de fato) define o quanto de água vai para a usina e o quanto sobra para a Volta Grande do Xingu. O Estudo de Impacto Ambiental propôs, para o trecho de vazão reduzida, a alternância entre a liberação de 4 mil metros cúbicos de água por segundo, o hidrograma A, e a liberação de 8 mil metros cúbicos por segundo, o hidrograma B. Mesmo sendo apenas o hidrograma B praticado, o relatório conjunto do Monitoramento Ambiental Territorial Independente, feito por peritos e pesquisadores da Volta Grande e de instituições públicas nacionais, mostra que as evidências confirmam não haver como o sistema socioecológico da Volta Grande sobreviver à redução imposta pelo hidrograma B.
Uma ação civil pública do Ministério Público Federal pediu a manutenção de um hidrograma provisório até que a Norte Energia apresente dados técnicos que demonstrem a segurança das vazões que pretende praticar e uma partilha equilibrada das águas, com regime de vazões apto a manter o ecossistema. O pedido não foi acolhido pela Subseção Judiciária de Altamira, sob alegação de não haver fundamentos novos.
Com o sequestro de 70% das águas do Xingu por Belo Monte, milhões de ovas de peixe apodreceram no seco em fevereiro de 2024. Fotos: Josiel Juruna/Mati
Em novembro, a Justiça condenou a Norte Energia a pagar indenização mínima de 34,8 milhões de reais pela mortandade de “24 toneladas de peixes” entre 2015 e 2018. A empresa terá que financiar e implementar projeto de recuperação ambiental, com monitoramento da fauna aquática e replantio de vegetação nativa, em parceria e com supervisão do Ibama. O MPF entrou com recurso de apelação pedindo aumento do valor de reparação pelo dano ambiental para pelo menos 42,5 milhões e que a conduta da empresa seja considerada dolosa, por ter operado partidas e paradas das unidades geradoras da casa de força principal da hidrelétrica sem autorização. Para o Ministério Público, a atividade de risco da Norte Energia resultou na morte de espécimes e a opção da empresa por continuar com a operação das unidades de geração configura caso de dolo eventual, em que o agente assume o risco pelo resultado.
Além de barrar a água para a Volta Grande, Belo Monte barra gente de se assentar na terra. Uma das várias condicionantes com pendências é a implantação do Território Ribeirinho, o reassentamento de quem foi expulso das ilhas e margens do Rio. Maria Francineide dos Santos, liderança do Conselho Ribeirinho, não sentiu avanços em 2024. “Foi um ano que não andou nada. As famílias continuam na espera do reassentamento. As que foram reassentadas não podem fazer nada. Não podem plantar pra comer. As que tentaram plantar foram multadas. O Rio não tem mais a subsistência de vida, que é o nosso pescado. Passamos pra nove anos sem piracema”, conta.
Para Francineide, se o ano foi difícil, ficou ainda mais triste agora no final, com a morte recente de Luiz Gonzaga do Carmo, mais conhecido como seu Pedin, pescador da Volta Grande, arrancado do próprio chão sem nunca ter recebido indenização.“O Ibama sabe de tudo o que acontece aqui com a gente no Xingu e não toma providência nenhuma”, protesta a liderança Ribeirinha. Procurada por SUMAÚMA, a Norte Energia respondeu por email: “As indenizações pagas pela Norte Energia são de caráter privado. A empresa não divulga pagamentos de ordem particular”.
As cenas se repetem em Altamira. E só com muita pressão uma pequena parte dos direitos dos povos é garantida. Em setembro de 2024, os Mebengôkre Xikrin, da Terra Indígena Trincheira Bacajá, bloquearam a avenida em frente à Norte Energia e também o acesso ao aeroporto. A reivindicação era para que a empresa cumprisse compromissos com o povo Indígena e fosse revisado o projeto básico ambiental.
Desde 24 de novembro de 2021, a licença de operação de Belo Monte está vencida. A hidrelétrica continua a funcionar porque o pedido de renovação ocorreu pelo menos 120 dias antes do vencimento, como exige a legislação. Já são mais de três anos sem resposta. O Ibama, responsável pelo licenciamento, informa que está analisando o cumprimento das condicionantes e dos relatórios ambientais, ouvindo a Funai quanto às questões relacionadas ao componente Indígena. A avaliação técnica da Funai ainda não foi concluída. E o Ibama não tem previsão para decidir.
Maria Francineide dos Santos sofre com o adiamento de condicionantes como o Território Ribeirinho. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA
Para a Defensoria Pública da União (DPU), “a demora na decisão sobre o pedido de renovação da licença de Belo Monte demonstra as limitações do aparelho estatal em lidar com demandas de alta complexidade, que envolvem equilíbrios delicados entre viabilidade econômica e sustentabilidade socioambiental”. A postergação de resposta, segundo a DPU, compromete a revisão adequada dos impactos, principalmente para o ecossistema do trecho de vazão reduzida.
Eletrobras e Norte Energia tentam despachar os Mebengôkre, mas não conseguem
No segundo dia de ocupação, a Norte Energia formalizou um pedido de reintegração de posse, com multa diária de 100 mil reais em caso de descumprimento da medida. Antes que o pedido tivesse algum efeito, o Ministério Público Federal, por meio da procuradora da República em Altamira Thais Santi, propôs e mediou uma reunião entre as partes, momento em que os Kayapó se dividiram. A maior parte do grupo foi para a sede da Funai em Altamira, os principais representantes das associações foram para o prédio do MPF e uma minoria manteve a ocupação na sede da Norte Energia.
Naquela tarde, as vidraças espelhadas do auditório semicircular Afonso Alves da Cruz, na sede da Funai em Altamira, refletiram as fileiras de guerreiros e guerreiras Mebengôkre adentrando o prédio para a reunião. Dessa vez os cocares contrastavam com os assentos vermelhos do auditório, voltados para a tela na parede onde eram projetados os rostos dos outros participantes da reunião.
O contraste entre o mundo Indígena e o não Indígena na segunda reunião para decidir seu futuro na sede da Funai em Altamira, em 29 de novembro
A Eletrobras propôs um prazo de 30 a 90 dias para dar um posicionamento, uma resposta definitiva, com a condição de que os Indígenas deixassem a empresa imediatamente e voltassem ao seu território para esperar. A proposta, que não dava garantia de que o termo seria renovado, durou apenas o tempo de ser traduzida para o Mebengôkre para ser rejeitada. Nada resolvido, os Indígenas mantiveram a ocupação.
Só em 29 de novembro, cinco dias após a chegada, uma reunião resultou no acordo que deu fim à ocupação Mebengôkre na sede da Norte Energia. Dessa vez as empresas pediram um prazo menor, de seis dias. O desejo delas era que parte dos Indígenas voltasse para o Alto Xingu e que ficassem apenas algumas lideranças para dar continuidade às negociações. Para os Mebengôkre, isso não era uma opção. Continuariam juntos, e chamariam mais se não chegassem a um acordo. Era nítida a importância das muitas vozes para a resistência Kayapó.
Cada opinião e comentários que saltavam das fileiras do auditório eram considerados. Os casais, como os pais da menina Rikaro, que muitas vezes sentavam um ao lado do outro, debatiam e cochichavam entre si a cada reviravolta. Os Indígenas aceitaram deixar a ocupação, com a condição de ficarem hospedados no Centro de Formação Bethânia até a resposta da empresa. Um momento de alívio para as lideranças, que voltavam para os ônibus com o propósito de se organizarem para estar no centro de formação na manhã seguinte. Alguns ainda desceram a ladeira para um banho no Xingu.
De volta à Floresta com o mais importante
No dia seguinte, pela manhã, já estavam no refeitório do centro de formação, ao lado do jardim de flores de Hibisco e Orquídeas roxas. Nesses dias, algumas das lideranças foram e voltaram de Brasília para conseguir acompanhar o lançamento do Plano de Gestão Territorial e Ambiental e do Protocolo de consulta da Terra Indígena Kayapó, outra importante agenda que acontecia no mesmo intervalo de tempo das negociações. Na passagem pela Bethânia, como o centro de formação da Igreja é mais conhecido, os Kayapó transitaram entre os 20 quartos do prédio principal, o refeitório e as sombras das Mangueiras, do lado de fora. Rikaro dava continuidade ao seu ofício, o de brincar, enquanto os mais velhos se reuniam para assistir a gravações antigas de eventos históricos dos Kayapó, conversavam com os amigos e familiares que aguardavam a volta dos Mebengôkre e das boas notícias ao território.
Os Mebengôkre esperaram seis dias no Centro de Formação Bethânia, mesmo local onde ficaram hospedados para o histórico Primeiro Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em 1989
No dia 5 de dezembro, todos rumaram para a sede da Funai e do Ministério Público para ouvir os encaminhamentos da Eletrobras e da Norte Energia. Os Indígenas já estavam havia duas semanas longe de seus territórios. O choro de Rikaro, que não se ouvia nas reuniões passadas, foi insistente dessa vez, demarcando o cansaço dos Kayapó.
A reunião teve um pequeno atraso, o microfone do computador parecia não funcionar, para aflição de algumas lideranças, já impacientes. A primeira afirmação foi que as empresas iam seguir em frente com a proposta já aprovada da Associação Floresta Protegida, no valor de 18 milhões de reais, com o prazo de envio até 5 de janeiro.
Para o Instituto Kabu, a proposta foi de 16 milhões, que correspondem ao valor do plano de trabalho do último ciclo, com adição de um reajuste de inflação. Num primeiro momento, as lideranças do Kabu apresentaram algumas contrapropostas, argumentando que o reajuste, usando como critério a inflação, não tinha sentido na prática, considerando o aumento no número de aldeias filiadas e os desafios de logística. Mas, já cansados, resolveram aceitar o acordo.
SUMAÚMA enviou à Eletrobras e à Norte Energia as seguintes perguntas: Por que os Kayapó precisaram ocupar Altamira para que fossem atendidos? Qual foi o motivo da demora para renovar o componente Indígena? Qual a razão da mudança no trâmite de negociação e também da não disposição em chegar a um valor intermediário entre o reivindicado pelos Kayapó e o proposto pelas empresas? Em nota, a Eletrobras se limitou a informar que participou das negociações com os Kayapó, as autoridades e a Norte Energia em apoio aos povos Indígenas da região, e que o acordo será implementado. A Norte Energia decidiu não se manifestar a esse respeito. Quanto à licença de operação de Belo Monte, a empresa respondeu que segue em vigor até a decisão administrativa do Ibama.
Antes de escurecer, os faróis dos ônibus que levarão os Kayapó de volta para os seus territórios já estão acesos, os motores ligados. No pátio à frente do auditório espelhado, os Mebengôkre se preparam para o momento da separação, depois de dias de luta e convivência. A menina Rikaro, do colo da mãe, observa duas menires, frente a frente, em uma despedida regada por um choro cantado, expressão genuína e aguda da dor da partida e do amor presente na maneira Kayapó de viver a comunidade, o coletivo.
Os Mebengôkre voltam para suas aldeias não totalmente satisfeitos, mas com a garantia mínima de que terão recursos para “projetos de sustentabilidade e proteção” pelos próximos cinco anos. Deixam Altamira depois de terem protagonizado uma das manifestações mais fortes pelo cumprimento das condicionantes de Belo Monte desde que a usina começou a operar. Levam de volta à Floresta a garantia de que os grandes olhos de açaí da meprintire Rikaro Kayapó são sementes para a preservação do território e da cultura Mebengôkre, guardando neles e passando adiante o gesto vivo de Tuire na longa trajetória de resistência Kayapó.
Lideranças Kayapó vão se banhar no Rio Xingu, um caminho para voltar à Natureza enquanto lutam por seu destino numa das cidades mais violentas do Brasil
Reportagem e texto: Soll e Guilherme Guerreiro Neto
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum