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A disputa por terras no Brasil está longe do fim e o debate do marco temporal deve voltar ao Supremo Tribunal Federal, prevê a jurista Deborah Duprat. Foto: Leticia De Maceno/SUMAÚMA

Os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a boa parte do projeto de lei do marco temporal frearam a intenção do Congresso de criar retrocessos históricos aos direitos dos povos indígenas brasileiros. Mas esse mesmo Parlamento que aprovou o ataque aos direitos indígenas vai tentar, no fim de novembro, derrubar os vetos presidenciais. Como deve ter os votos suficientes para isso, pela força da bancada ruralista no Congresso, é inevitável que o caso seja mais uma vez analisado pelo Supremo Tribunal Federal. E, aí, há risco de uma reviravolta que poderá violar, mais uma vez, os direitos dos povos originários, avalia Deborah Duprat, ex-vice-procuradora-geral da República, em entrevista a SUMAÚMA.

Duprat vê com preocupação a disputa travada por um Congresso de maioria conservadora com um Supremo que tem assegurado direitos fundamentais em diversas pautas. “O Supremo não usurpou a atribuição do Legislativo”, afirma. “É o pior momento [da disputa forjada entre o STF e o Congresso], que está muito contaminado pela omissão de alguns poderes [na defesa da democracia sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro] e pelo protagonismo que o Supremo teve.” Duprat afirma que está longe do fim a disputa por terras – e a hegemonia política – que ameaça as vidas e os direitos dos povos indígenas. “Eu defendo a democracia. Ver Legislativo e Judiciário se contrapondo até a rendição total de um deles significa a morte da democracia.”

Aos 64 anos, Duprat é advogada dos povos Indígenas em ações no Supremo – como a que derrubou a tese que estabelecia o dia 5 de outubro de 1988 como um marco temporal para a demarcação de seus territórios. Procuradora da República de 1987 a 2020, em 2009 ela se tornou a primeira mulher a representar o Ministério Público Federal (MPF) em um julgamento no Supremo. À época, era vice-procuradora-geral da República, segundo posto mais alto da instituição, e estava interinamente no lugar de procuradora-geral.

No Ministério Público, Duprat se dedicou a cuidar dos direitos de Indígenas, Quilombolas e demais comunidades tradicionais, pessoas negras e LGBTIQIAPN+. Ajudou a criar a Reserva Extrativista Rio Xingu, lar de beiradeiros ameaçados de expulsão pela usina hidrelétrica de Belo Monte. Trabalhou pela devolução de amostras de sangue de indígenas Yanomami, retiradas sem consentimento e levadas aos Estados Unidos por pesquisadores da Universidade do Estado da Pensilvânia, em 1967. No Supremo, a jurista venceu a disputa que travou, em nome do Ministério Público, pelo direito das populações de remanescentes Quilombolas de terem suas terras devidamente tituladas pelo Estado brasileiro. Foi cotada, em governos do PT, para comandar a Procuradoria-Geral da República – e, mais recentemente, a ocupar uma cadeira no Supremo.

Com a retomada do julgamento do marco temporal no STF, o Congresso se articulou e, com rara rapidez, o projeto de lei do apocalipse que, além do marco temporal, violava inúmeros outros direitos dos povos indígenas foi aprovado na Câmara e no Senado.

A seguir, trechos da entrevista, feita em sua casa, em Brasília.

Indígena Kayapó acompanha o julgamento da tese do marco temporal, em Brasília, em agosto de 2023, e segura a Constituição Federal. O documento reconhece os ‘direitos originários sobre as terras’. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

SUMAÚMA: O presidente Lula vetou parcialmente o projeto de lei do marco temporal. O Artigo 20, mantido, diz que ‘o usufruto dos Indígenas [sobre suas terras] não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional’. Na prática, isso significa que a União pode utilizar a terra indígena como bem entender? O governo pode determinar a exploração de mineração ou a instalação de hidrelétrica na área, por exemplo?

DEBORAH DUPRAT: Não. A compreensão de defesa nacional, aqui, é no seu sentido estrito, de defesa das fronteiras nacionais. Trata-se de uma compreensão bastante antiga, que vem desde a portaria declaratória da Terra Indígena Yanomami, exatamente por ela ser território indígena e também um espaço de existência de pelotões de fronteira [do Exército]. O ministro da Justiça da época, Jarbas Passarinho, ao explicar a portaria declaratória, disse que ambos os interesses estão previstos na Constituição, e um não é mais relevante que o outro. Eles se combinam.

Além disso, vários outros vetos [de trechos do projeto de lei] dizem respeito exatamente a obras de infraestrutura, como hidrelétricas, linhas de transmissão em terras indígenas. Esses vetos deixam claro que, antes de mais nada, é necessário que seja editada uma lei complementar para definir o que é o relevante interesse público da União, como está escrito no parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição. Grandes obras em áreas indígenas só podem ser consideradas essenciais para a comunidade nacional se estiverem previstas como de relevante interesse público em lei complementar. Só que essa lei nunca foi criada, ela não existe até hoje. Por isso, a rigor, não temos regras para definir o que pode e o que não pode ser construído em terras indígenas. E, mesmo que essa lei existisse, é preciso que os povos originários sejam consultados previamente sobre os impactos de grandes obras que atravessem seus territórios, conforme determina a Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho (OIT)].

Essa foi uma grande discussão na época que antecedeu a construção da hidrelétrica de Belo Monte [no rio Xingu, em Altamira, Pará]. O Xingu é um rio que não está dentro dos limites de nenhuma terra indígena, apesar de margear várias delas. O governo federal até fez uma consulta [aos Indígenas, durante o processo que levou à construção de Belo Monte, nos primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010]. Mas, hoje, há divergências sobre se foi uma consulta válida ou não, se respeitou ou não os parâmetros da convenção 169 da OIT. [Em uma decisão de setembro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu que os povos Indígenas tiveram violado o direito à consulta prévia sobre Belo Monte. Ele foi o único a votar. O julgamento está suspenso por um pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente da Corte.]

No limite, o Artigo 20 da lei, mantido por Lula, caso estivesse em vigor à época, teria impedido as demarcações das terras indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol?

De forma alguma. Não teria impedido.

Outro artigo que Lula não vetou, e foi criticado pelo movimento indígena, é o 26: “É facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não Indígenas”. Isso pode abrir caminho para acordos enganosos, que prejudiquem as comunidades tradicionais?

Olha, eu acho que o risco existe, mas é preciso cautela ao falar nele. Essa é uma discussão também antiga, que remonta aos arrendamentos de terras indígenas que ocorrem com muita frequência no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, no Paraná, e também em Mato Grosso. Acho que temos que procurar fugir de uma visão paternalista sobre os povos indígenas, de que eles não são capazes, não podem tomar decisões conscientes a respeito do seu próprio território, ou que estejam sempre sujeitos às manobras do entorno capazes de seduzi-los. Não vejo como preocupação esse dispositivo [da lei]. A abertura das terras para terceiros é uma situação que já existe para alguns grupos.

Por exemplo?

Os Paresí, que plantam soja [em Mato Grosso]. Há muito arrendamento de terras indígenas, principalmente dos Kaingang, no Rio Grande do Sul e no Paraná, para produção agrícola.

O arrendamento é proibido, certo?

Pois é. No Estatuto do Índio [lei de 1973, ainda em vigor, que trata dos povos originários brasileiros] há um dispositivo proibindo o arrendamento. Mas sempre houve dúvida se esse era um dispositivo que tinha sido ou não acolhido pela Constituição de 1988. E, para driblar a proibição, foram feitos em alguns lugares – como Mato Grosso do Sul – contratos de parceria agrícola com os povos indígenas. São contratos dotados de certa informalidade, que alguns procuradores da República admitiam; outros, não. Eu acho que o papel do Ministério Público é garantir que os Indígenas tenham acesso a toda a informação necessária para uma deliberação consciente por parte do grupo, para que todos estejam cientes dos riscos, dos possíveis danos para as comunidades. E também há uma discussão sobre as atividades econômicas acabarem gerando lucros apenas para as lideranças, e não para todo o grupo. Mas eu acho que também temos que ter um pouco de cuidado, sabe? Porque passa uma percepção de que os caciques são todos fraudulentos, que não há consentimento dos povos, quando na verdade há uma série de negociações nesses processos que não são visíveis [de fora dos próprios povos].

Mas e se todos os povos indígenas resolvessem plantar soja em seus territórios, por exemplo? Isso diz respeito só a eles? Como balancear a crise climática nesse contexto?

Eu sempre detestei a visão instrumental dos Indígenas – como povos ou em relação a seus territórios –, de que eles são uma espécie de reserva moral da nação. Ou seja: que seus territórios só têm sentido enquanto eles preservarem os recursos ambientais. Temos uma sociedade altamente capitalista, individualista, que privilegia as atividades econômicas que mais impactam o clima, o meio ambiente, que é o caso do plantio da soja, da mineração. Basta lembrarmos do ícone que é a Vale para o imaginário econômico do país. Que igualdade é essa em que a sociedade privilegia atividades que os Indígenas não podem exercer? Não há nenhum fundamento constitucional que proíba aos Indígenas fazer aquilo que o restante da sociedade faz.

O enfrentamento da crise climática, do avanço sobre os recursos naturais, é um imperativo coletivo da sociedade brasileira. É absolutamente injusto que essa exigência recaia apenas sobre os Indígenas e seus territórios. Eu não quero afastar, com isso, a constatação empírica de que os territórios indígenas, quilombolas, de outros povos e comunidades tradicionais são exatamente os locais onde temos os recursos ambientais mais preservados. Isso é um fato, mas não transforma os Indígenas em guardiães da natureza. É uma característica [do modo de vida deles], mas o compromisso de enfrentar a crise ambiental é de toda a sociedade brasileira. Não pode recair exclusivamente sobre os povos indígenas.

De que forma a lei sancionada por Lula vai impactar nas políticas indígenas do Brasil?

O impacto é quase nenhum, se os vetos forem mantidos. A lei tornou clara a situação da defesa nacional, além da possibilidade de atividades econômicas com terceiros não indígenas. Essas são as novidades. De resto, já estava tudo lá.

Jovem Indígena Xokleng participa de marcha em Brasília para pressionar o Supremo Tribunal Federal a derrubar a tese do marco temporal. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

A ministra Sonia Guajajara e sua equipe classificaram o veto parcial como uma vitória. Mas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e instituições como o Ministério Público Federal defenderam o veto total. Se o Congresso, com maioria ruralista, derrubar os vetos, o que é provável, essa briga do marco temporal retornará ao Supremo?

Muito provavelmente. Há, antes de mais nada, uma questão de natureza formal. O Congresso não pode deliberar sobre o que é uma área indígena. Quando o Supremo conferiu repercussão geral ao caso dos Xokleng [a ação cujo julgamento definiu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, por 9 votos a 2], ele analisou o estatuto constitucional da posse das terras tradicionalmente ocupadas. Ou seja, o Supremo entendeu que a demarcação e a concepção do que são as terras indígenas já estão definidas pela Constituição, que tratou exaustivamente do tema e reservou só dois espaços para a atuação do Congresso. Um deles é definir o que é o relevante interesse público da União em territórios indígenas, coisa que o Congresso ainda não fez. O outro é decidir como será feita a exploração de recursos hídricos e minerais em terras indígenas, com o pagamento de royalties [aos povos originários]. Isso o Congresso também não fez – aliás, nenhuma das duas coisas foi tratada nessa lei.

Em vez disso, o Parlamento buscou legislar sobre temas que o Supremo havia acabado de tratar. É uma lei que enfrenta uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal. O Congresso pode fazer isso? Pode, porque as decisões do Supremo não vinculam o Legislativo. Mas [caso os vetos de Lula sejam derrubados] certamente alguém vai acionar o Supremo, e é provável que algum ministro dê uma liminar [uma decisão provisória que suspende a validade da lei]. Esse jogo pode continuar permanentemente.

O Supremo já mudou de entendimento sobre diversos temas. Há risco de reviravolta?

Tudo é possível. Porque o Supremo não é um, mas uma composição [de ministros, nomeados pelo presidente da República], que também muda. Portanto, pode sim [haver uma reviravolta]. Sempre digo que, quando a gente propõe uma ação judicial, não tem controle sobre ela. Porque o tempo vai mudando as possibilidades. Um exemplo que dou sempre: quando entrei com a ação para o registro civil da população trans, em 2009, estava certa de que era impossível [ganharmos]. Então, havia um pedido na ação para que [os candidatos à mudança de nome de batismo para um outro do gênero com o qual se identificam] fossem antes avaliados por um estudo médico. Foi uma estratégia combinada com a população trans [para aumentar as chances de uma vitória]. Quando o Supremo finalmente julgou a ação, 15 anos depois, decidiu que não precisava de nada disso. Basta a pessoa dizer que quer mudar o nome que pode mudar. Uma boa surpresa.

Agora mesmo temos [no Supremo] a questão do aborto. Quando a ação foi proposta, muita gente achou um absurdo pedir ao Supremo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. E aí, de repente, houve o 8 de janeiro [invasão da sede dos Três Poderes da República por bolsonaristas], ameaçando a democracia brasileira. Uma ameaça à democracia é sempre uma ameaça aos direitos fundamentais. Nesse caso, [a invasão] reforçou o papel da Suprema Corte como instância mais atenta à implementação de direitos fundamentais. Ou seja, muita coisa pode mudar o cenário de um julgamento. O terreno é dinâmico.

O Supremo tem agido recentemente para manter direitos dos povos originários, previstos na Constituição. Mas a força anti-indígena no Congresso é visível. Por sua experiência na Corte e no Ministério Público Federal, até onde pode ir essa briga do Congresso com o Supremo?

É uma disputa falsa, porque o Supremo em nenhum momento usurpou a atribuição do Legislativo. É preciso entender que as constituições contemporâneas são catálogos muito extensos de direitos, e com isso o papel das supremas cortes cresceu bastante. A separação entre os poderes é um princípio, mas vai se conformando às dinâmicas locais, às dinâmicas de momento. Nós vemos, atualmente, uma função contramajoritária do Supremo, que é exatamente a de assegurar direitos fundamentais contra maiorias ocasionais. Isso não é um fenômeno brasileiro, ocorre em muitos lugares do mundo. O Supremo, ao decidir que é válida a união homoafetiva, ao decidir sobre cotas raciais, sobre demarcação de terras indígenas, está cumprindo o papel de interpretar a Constituição e implementar direitos que as maiorias não implementam.

Mas você já viu uma maioria – conservadora e reacionária – como a que temos agora no Congresso acusar sistematicamente o Supremo de intervir no Legislativo?

Não. E acho que isso tem a ver com o enfrentamento que o Supremo fez em favor da democracia. Acho que tem muito ressentimento recente [da extrema direita] em relação a uma Corte que teve protagonismo na manutenção da democracia, diante da omissão de outros poderes e de outros atores sociais e estatais importantes. Acho que é o pior momento [dessa disputa], e que está muito contaminado por essa omissão de alguns poderes e o protagonismo que o Supremo teve.

Você consegue ter uma ideia de onde isso pode parar?

Eu defendo a democracia. Ver Legislativo e Judiciário se contrapondo até a rendição total de um deles significa a morte da democracia. Espero, honestamente, que haja bom senso. E rápido.


Texto: Rafael Moro Martins
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Verónica Goyzueta
Edição: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Abril de 2023: Indígenas Karajá e Kuikuro protestam em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. Desde o início do governo Lula, o movimento pede urgência na retomada das demarcações de terras. Foto: Fernando Martinho/SUMAÚMA

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