Jornalismo do centro do mundo

Dezenove anos depois do fim da Urihi, os médicos Deise Alves e Cláudio Esteves contam, pela primeira vez, a história de como a vida deles foi aniquilada apesar de sua obra. Foto: Brenda Alcântara/Sumaúma

A cena histórica em que o cacique Kayapó Raoni Metuktire sobe a rampa do Palácio do Planalto, em 1º de janeiro de 2023, despertou entre os indigenistas no Brasil uma esperança: os atos contínuos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), que culminariam na acusação de genocídio dos povos originários, chegavam ao fim. Para a médica Deise Alves Francisco, o simbolismo da presença de Raoni na posse de Luiz Inácio Lula da Silva, para seu terceiro mandato como presidente, catalisou ainda outras emoções em série: em 1989, quando o cacique era levado pelo cantor Sting aos palcos da Europa, Estados Unidos e Japão, em defesa dos direitos indígenas, a então recém-formada tomou a decisão que mudaria sua vida e sua carreira. “Era final dos anos 1980, e eu estava na Espanha, entre Madri e Barcelona. A minha ideia era fazer uma especialização em acupuntura. Quando eu vi o Raoni, eu falei: não, eu tenho que voltar ao Brasil e trabalhar com saúde indígena. E voltei”, lembra. Já para o médico Cláudio Esteves de Oliveira, a clareza sobre sua vocação veio anos antes, numa viagem ao Nordeste em que ele levou na bagagem um exemplar de Quarup, o livro clássico de Antonio Callado. Depois de ter desistido da carreira de engenheiro e ter passado em concurso público para trabalhar na alfândega do Rio de Janeiro, foi a literatura que guiou seus passos a um caminho inusitado: “Eu gostava muito de viajar, era mochileiro, e quando li Quarup fiquei com a ideia fixa de que eu queria conhecer os índios. E a maneira de conhecer os índios seria fazer medicina, que seria útil para eles naquele momento. Eu seria médico para trabalhar com os índios. E foi por essa razão que eu fiz medicina”.

Não há como falar de saúde indígena no Brasil sem falar de Deise e de Cláudio. Ou melhor, sem falar dos projetos de saúde realizados na Terra Indígena Yanomami inicialmente pela Comissão Pró-Yanomami (CCPY) e posteriormente pela Urihi-Saúde Yanomami nos anos 1990 e 2000. Em 2023, nas atuais rodas de conversas entre as lideranças indígenas e a Força Nacional do SUS que atua de forma emergencial para tentar barrar o genocídio Yanomami, provocado pelo avanço do garimpo avalizado por Bolsonaro, é comum ouvir que “é preciso trazer de volta às aldeias o modelo da Urihi”. Para os Yanomami, Urihi é a floresta. Invocar o período em que existia a Urihi é lembrar de um tempo que ganhou contornos míticos e simbólicos: naquela época, não existiam doenças, não havia maldade, tudo era bom.

A organização não governamental (ONG) Urihi-Saúde Yanomami foi criada em 1999 para ampliar um modelo de atendimento revolucionário e exitoso na região. Iniciado pela Comissão Pró-Yanomami, esse modelo zerou as mortes causadas pela malária, diminuiu drasticamente a mortalidade infantil e assegurou a retomada do crescimento demográfico dos Yanomami, impedindo o extermínio dessa população milenar nos anos 1990.

DOIS MOMENTOS DE DEISE ALVES EM BALAWAÚ: À ESQUERDA, ATENDIMENTO MÉDICO A CRIANÇAS, EM 1991; À DIREITA, A MÉDICA COLETA SANGUE DE MULHER YANOMAMI PARA PESQUISA SOBRE MALÁRIA, EM 1992. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

Referência internacional da antropologia contemporânea e parceiro de Deise e Cláudio nas duas iniciativas, o francês Bruce Albert define da seguinte maneira o significado do trabalho dos dois médicos na Urihi, quando assumiram a assistência de saúde de 50% das aldeias indígenas da Terra Yanomami: “Foi uma revolução copernicana”. Nicolau Copérnico provou que eram a Terra e os planetas que giravam em torno do Sol, e não o contrário. Cláudio e Deise provaram, ao longo dos quase 15 anos que passaram com os Yanomami em sua terra, que são os profissionais da saúde que devem ir até as aldeias dos indígenas e tratá-los, e não o contrário.

Mas a revolução copernicana da década de 1990 e início dos anos 2000 e o reconhecimento mais importante – o dos próprios Yanomami – pelo modelo de atendimento em saúde inovador, autônomo, respeitoso e ético não pouparam os dois médicos de um processo kafkiano. Como personagens dos livros do escritor tcheco Franz Kafka, Cláudio e Deise viraram alvo de um processo que mistura absurdo e surrealismo, realidade e ficção, e minou os 15 anos que dedicaram aos Yanomami, arrancando deles a possibilidade de trabalharem como médicos indigenistas e exercerem a profissão que escolheram por vocação.

Em outubro de 2018, Cláudio Esteves, como presidente da Urihi, foi condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a ressarcir o erário, ou seja, a indenizar o governo federal pelo uso de recursos públicos. Mais de dez anos depois da extinção do convênio e da ONG – o que ocorreu em 2004 –, o tribunal condenou o médico, que era presidente da Urihi, e a ONG a devolverem parte do dinheiro que havia sido repassado pela então Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a execução dos atendimentos aos Yanomami. No processo, a Urihi e Cláudio foram os únicos condenados. Todos os ex-diretores e ex-presidentes da Funasa citados foram absolvidos pelo TCU.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Em 8 de março de 2022, Cláudio Esteves recebeu um telefonema da cuidadora de sua mãe, já falecida, para informá-lo de que havia chegado à casa dela uma carta de execução fiscal, a ele endereçada, cujo remetente era o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Seção Judiciária de Roraima. Preocupado, o médico pediu a ela que abrisse a correspondência e a fotografasse, já que ele tinha retornado ao Brasil havia poucos meses e estava tentando, mais uma vez, recomeçar a vida, agora em Pernambuco. A mensagem da carta o deixou em estado de choque: Cláudio teria cinco dias para quitar o débito de oitenta e quatro milhões, quinhentos e cinquenta e sete mil, setecentos e sessenta e seis reais e quarenta e nove centavos. Ou deveria listar bens para penhora. Cláudio não tem nenhum bem para listar, exceto um veículo Renault Kwid 1.0 ano 2021 cujo financiamento ainda não foi quitado. A dívida milionária com o Estado brasileiro foi oficialmente gerada no fim de dezembro de 2019. Poucos dias antes, em 11 de dezembro daquele mesmo ano, o débito havia sido inscrito na dívida ativa da União.

Não se trata apenas de um processo. Ou melhor, de um cipoal de processos e procedimentos administrativos que se estendem ao longo de 19 anos. Como Joseph K., personagem de Kafka, os médicos que criaram a Urihi ainda não conseguem entender os motivos da condenação, muito menos aceitá-la. Não se defenderam, não tiveram acesso aos autos, não conheciam inúmeros dos documentos que haviam embasado o processo. Maior espanto ainda lhes causou o valor exorbitante da dívida, que nenhum dos dois considera ter com o Estado. Num longo caminho administrativo e jurídico, que passou por auditorias internas da Funasa, processos de sindicância, tomada de contas especial, declaração de inadimplência, revisão de pareceres técnico-financeiros dos convênios, auditoria do TCU e até um quase processo criminal, o suposto débito da Urihi com o Estado saltou de 22,9 mil reais para quase 85 milhões de reais. Nos primeiros anos dessa cruzada jurídica, Cláudio e Deise protocolaram respostas à Funasa sobre todas as dúvidas da administração pública que haviam surgido em relação a aspectos do convênio e sobre alguns materiais adquiridos. Também formularam uma resposta formal ao TCU, em agosto de 2006, em que davam detalhes do trabalho da Urihi e das especificidades de atendimento à saúde indígena no vasto território Yanomami. Tiveram que se defender na CPI das ONGs no Senado Federal, a segunda, criada em 2007 – a primeira havia sido instalada em 2001 –, depois que a Urihi apareceu em manchetes de jornais como uma organização que tinha desviado milhões da saúde indígena. A imprensa não teve a menor preocupação em investigar o trabalho que de fato havia sido feito pela ONG na TI Yanomami. Assim, os médicos também foram julgados e punidos primeiro pela imprensa – e na maioria das vezes sem direito a defesa.

Ao longo dos anos seguintes, sem recursos para contratar auxílio jurídico e com a carreira manchada, Cláudio e Deise alegam ter sido vencidos pelo cansaço. Do norte, migraram para o sul, como se a distância da área indígena pudesse amenizar sofrimentos. Exaustos e sem perspectivas profissionais instigantes, buscaram uma nova vida fora do Brasil, onde viveram por quase uma década. Mas a história da Urihi nunca ficou para trás. Hoje os dois alimentam arrependimentos por tamanha ingenuidade e por nunca terem acreditado que aquele processo iria adiante, já que tudo o que eles tinham feito na terra Yanomami estava documentado. Além disso, exalam uma mágoa profunda. “Sim, eu me arrependo todo dia de ter sido ingênuo. Na hora em que a gente viu que ninguém ajudava a gente [na defesa do processo], que teríamos que pegar o nosso dinheiro [para pagar advogado], eu achava aquilo um absurdo… Foi o Estado que nos convidou para fazer o convênio [em 1999]. A gente sempre viveu de salário. Era dinheiro [para despesas cotidianas] das minhas filhas. A gente nunca poderia imaginar que ninguém iria nos defender. Ninguém”, diz Cláudio.

Dezenove anos depois do fim da Urihi, Cláudio e Deise resolveram contar, pela primeira vez, com exclusividade, a SUMAÚMA, a história de como a vida deles foi aniquilada apesar de sua obra. Os dois consideram que o que ocorreu com a Urihi é reflexo do projeto econômico que há décadas tenta ocupar a TI Yanomami e destruir os indígenas para garantir a exploração de ouro e cassiterita sem obstáculos. Os criadores da Urihi e os ativistas da causa Yanomami que conheceram os médicos e os projetos coordenados por eles também acreditam ter havido perseguição política à Urihi, já que ao longo de anos a ONG denunciou interesses políticos locais em favor do garimpo. Também escancarou críticas ao novo modelo de saúde indígena que começaria a ser testado a partir de 2004, apontando novos riscos para a saúde dos Yanomami: irregularidades, desvios, possíveis focos de corrupção, que mais tarde seriam comprovados.

“Esta é a primeira oportunidade que temos de falar sobre a nossa experiência depois de tudo o que aconteceu. É o primeiro momento de reconciliação com toda essa história, porque isso afetou muito a nossa carreira, a nossa vida profissional e pessoal. Poder falar agora é um resgate”, desabafa Deise ao liberar um choro que ficou represado por mais de uma década.

Deise Alves e Cláudio Esteves revisitam as memórias da época de atuação no território indígena Yanomami. ‘Poder falar agora é um resgate’, desabafa Deise ao liberar um choro represado por mais de uma década. Foto: Brenda Alcântara/Sumaúma

O caso da Urihi é emblemático – e não apenas pelo significado histórico e pela compreensão dos desafios e especificidades no atendimento à saúde indígena, em especial na área Yanomami, um território de quase 9,7 milhões de hectares que atravessa os estados de Roraima e do Amazonas, no norte do Brasil, e equivale ao tamanho de Portugal e supera em muito a área de países como Suíça e Bélgica. A condenação final da Urihi é um catálogo de mazelas brasileiras que se entrelaçam: expõe o lado nefasto das partilhas políticas no presidencialismo de coalizão, os equívocos ideológicos sobre o papel e a atuação do Estado, a cíclica violação dos direitos dos povos originários, a ganância política que destrói a floresta e a vida, a ineficácia e a lentidão da burocracia pública, a morosidade do Judiciário, o descuido e a irresponsabilidade da imprensa, as análises muitas vezes equivocadas dos órgãos de controle, a difícil e delicada relação entre o terceiro setor e a política, os obstáculos de acesso à Justiça no Brasil e, por fim, a facilidade com que reputações e vidas podem ser destruídas.

Davi Kopenawa Yanomami, a maior liderança de seu povo, há décadas tenta explicar aos napëpë (não indígenas) o significado de Hutukara, o mundo-universo, e de Urihi, a terra-floresta. Testemunha do trabalho da Urihi-Saúde Yanomami, ele falou a SUMAÚMA, por telefone, sobre essa “história muito longa” que garantiu a sobrevivência de seus parentes e barrou o avanço do garimpo. O governo de Fernando Henrique Cardoso, diz ele, “achou bonito” o trabalho da Comissão Pró-Yanomami na área e ofereceu dinheiro “para que cuidassem dos Yanomami”. Davi reforça que o dinheiro era para seu povo – “sob a minha responsabilidade”. “Naquele tempo”, recorda ele, a Fundação Nacional de Saúde aplicava rios de dinheiro na saúde indígena, mas sem eficácia. “Não conseguia curar e ficava só trazendo os Yanomami para morrer aqui na cidade. Eu não gostei. E a Saúde Urihi foi tratar lá na comunidade, lá na Terra Yanomami. É assim que a Saúde Urihi funcionou.” O trabalho da ONG, testemunha Davi, foi organizado, proveitoso e acabou com a malária e outras doenças utilizando um volume baixo de recursos públicos, mas de forma eficiente, com profissionais “que gostam do povo Yanomami”. O xamã faz ainda uma ressalva: “O doutor Cláudio e a doutora Deise já estavam trabalhando com a CCPY. Eles que coordenaram [a Urihi], eles que assumiram a responsabilidade. Eles não são políticos. Esse casal não é político. Entendeu? É por isso que a saúde foi boa para salvar o povo Yanomami”. Salvar é um verbo recorrente na memória do xamã: “Era assim que a Saúde Urihi Yanomami salvou o meu povo Yanomami, os meus filhinhos, os meus filhos, da Amazônia e de Roraima. Eu estou tentando voltar para isso. Mas é difícil. A saúde pública não quer ajudar. O que nós queremos é a melhoria da saúde Yanomami neste ano”.

“A Urihi salvou o povo Yanomami”, reitera Junior Hekurari, hoje presidente da Urihi – Associação Yanomami. Aos 14 anos, ele foi alfabetizado pela Urihi-Saúde Yanomami. Os mais velhos da aldeia, diz Junior a SUMAÚMA, carregam as lembranças daquele tempo e querem profissionais como Deise e Cláudio para “salvar” o povo Yanomami mais uma vez. Adolescente, ele foi guia das equipes de saúde da antiga Urihi na região de Surucucu, as terras altas da área Yanomami, de dificílimo acesso. Graças àquele projeto, Junior Hekurari se transformou hoje em uma importante liderança Yanomami da nova geração cuja atuação foi essencial para denunciar o genocídio Yanomami sob Bolsonaro. A associação que ele criou agora leva o nome da antiga, mas não por causa da ONG Urihi, e sim pelo significado sagrado da palavra. “Quem está morando na Urihi? O povo Yanomami. Quem defende a Urihi? O povo Yanomami. Quem traz nossos recursos? A Urihi. Por isso colocamos esse nome, em outubro de 2022, na nossa associação. Urihi é a floresta na língua Yanomami. Para a Urihi não morrer, colocamos esse nome”, explica.

‘Revolução copernicana’: a origem da Urihi

Quando a jovem Deise retornou ao Brasil, em 1989, a então Fundação Nacional do Índio (Funai) organizava equipes de saúde móveis para atendimentos emergenciais na área Yanomami. A Comissão Pró-Yanomami, na época, era uma das organizações que faziam parcerias com a Funai. A CCPY havia sido criada em 1978 – para defesa dos direitos territoriais, culturais e civis dos indígenas – pela fotógrafa Claudia Andujar, pelo antropólogo Bruce Albert, pelo missionário católico Carlo Zacquini e por outros nomes que se tornaram referência mundial na luta pela demarcação da TI Yanomami. Hoje com 85 anos, Carlo tem contato com o povo Yanomami desde a década de 1960. Foi ele quem acompanhou Claudia em inúmeras missões ao território habitado por um povo até então desconhecido dos não indígenas. Desde o início da década de 1980, Davi Kopenawa Yanomami passou a colaborar com a CCPY em projetos que foram fundamentais para assegurar a demarcação da área. E também para implementar um projeto de educação bilíngue dos indígenas, crucial para que, anos mais tarde, eles próprios denunciassem aos não indígenas a violação contínua de direitos em seu território. A ajuda do xamã seria fundamental ainda para o funcionamento da ONG Urihi.

Em 1991, pela primeira vez fora do Brasil, Davi Kopenawa falou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da ONU sobre o genocídio dos povos indígenas, com o avanço do garimpo e de doenças. Mesmo depois da demarcação e homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992, pelo então presidente Fernando Collor, a luta da CCPY continuava. E era árdua. “Eu fui uma das contratadas pela CCPY [na parceria com a Funai]. Fiz duas viagens de um mês, dois meses, em que eu ficava na área. E na segunda vez eu cheguei à conclusão de que precisaria haver uma situação mais permanente de assistência na área Yanomami, porque aquelas equipes volantes pontuais não resolveriam o problema. Ao mesmo tempo, estava acontecendo o debate da demarcação, em 1991, 1992”, recorda Deise.

AO FUNDO, DEISE ALVES E MARCOS TEODORO DO CARMO, MICROSCOPISTA INSTRUTOR DO 1º CURSO DE FORMAÇÃO DE MICROSCOPISTAS YANOMAMI, OBSERVAM OS ALUNOS JOSECA, GÉRSON E GERALDO, NO POSTO YANO, REGIÃO DO BALAWAÚ, EM 1995. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A situação, no início dos anos 1990, era tensa. Começavam as primeiras inspeções da Operação Selva Livre, organizada por Polícia Federal, Funai e Ministério Público, para remoção de garimpeiros da terra Yanomami. Havia forte pressão internacional, sobretudo após a realização da conferência global do meio ambiente Eco-92, no Rio de Janeiro. As notícias apontavam a existência de até 40 mil garimpeiros na área. O auge da operação de remoção ocorreu em 1993, quando um fato chocou o mundo: o massacre de Haximu. Doze indígenas – adultos, adolescentes, crianças e bebê – foram assassinados por garimpeiros a tiros e golpes de facão. Nos arquivos do Ministério Público Federal, a origem do caso é assim definida: “O conflito começou quando garimpeiros que exploravam ilegalmente a região não cumpriram promessas feitas a indígenas do local. No dia 15 de junho, sete garimpeiros convidaram seis indígenas para caçar e, durante a caminhada, mataram quatro deles. Em retaliação, os indígenas assassinaram um dos garimpeiros. Esse foi o estopim para o massacre que ocorreria dias depois”. No total, 16 indígenas foram mortos.

Foi dentro desse contexto de tensão que Deise e Cláudio se instalaram em Roraima. Eles se conheceram no trabalho e pouco depois se apaixonaram e formaram uma família. “No início daquela retirada de garimpeiros, eu fui morar em Roraima. Aí eu propus para a Comissão Pró-Yanomami um projeto de assistência permanente. A CCPY trabalhava numa área com 10% do território Yanomami”, explica Deise. Coube a ela organizar, a partir de 1991, o programa de saúde indígena da organização, que contava com financiamentos internacionais, em especial da ONG Survival International. “É interessante notar que, naquele momento, o Ministério da Justiça informava que seria demarcada e homologada a área, e Bolsonaro, meses depois, lançou um projeto de decreto legislativo para revogar a portaria da demarcação. Esse é um longo projeto pessoal dele, de liberar a área ao garimpo”, enfatiza Deise. O Projeto de Decreto Legislativo 365, do então deputado Jair Bolsonaro, foi apresentado em setembro de 1993 para “tornar sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologa a demarcação administrativa da Terra Indígena Yanomami nos estados de Roraima e Amazonas”. A proposta foi arquivada e desarquivada inúmeras vezes. Em 2003, Bolsonaro tentou retomar a tramitação. O arquivamento definitivo só ocorreu em 2007.

Cláudio chegou em 1991 à terra Yanomami, logo depois de Deise. Formado em medicina, ele resolveu fazer uma residência em clínica médica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A médica sanitarista Stella Lobo, que coordenava a residência na UFRJ, havia sido convidada pela Fundação Nacional da Saúde (FNS), que mais tarde se tornaria a Funasa, para fazer um trabalho volante na região. Sabendo do interesse de Cláudio pelos indígenas, ela convidou o jovem médico para integrar a equipe. Parte desse trabalho daria origem, depois, ao Distrito Sanitário Yanomami (DSY), inspirador do modelo de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), mantido até hoje. Atualmente, existem 34 DSEIs no Brasil. O DSY foi o primeiro a ser criado.

Na primeira viagem à área, na região de Auaris, Cláudio ficaria dois meses. Ele acompanhava um técnico microscopista para a detecção de casos de malária. “Encontramos lá uma situação muito parecida com o que a gente está vendo hoje. Alto percentual de malária, indígenas muito debilitados, sem condições de lutar pela subsistência, caçar, pescar ou trabalhar na roça. E fome. Dois, três meses nessa situação, eles ficam pele e osso, indo pra lá e pra cá. Iam ao garimpo pedir comida, iam aos antigos postos de saúde, ainda muito rudimentares, para pedir remédio. Ficavam vagando pelas trilhas, e a gente encontrava filas e mais filas de Yanomami”, diz Cláudio. Certo dia, um indígena que havia caminhado mais de dez horas, desde Tukuxim, chegou ao posto em que Cláudio estava, implorando ajuda a seus parentes. “Não sei como é que ele chegou vivo lá. Nós conseguimos um helicóptero da FAB [Força Aérea Brasileira], que nos deixou numa pista que tinha sido explodida. Encontramos lá mais de 300 indígenas em situação muito grave de malária e desnutrição.”

Essa viagem foi um marco na vida de Cláudio. No dia combinado para o retorno do helicóptero, o piloto da FAB não apareceu para o resgate da equipe médica: “Simplesmente largaram a gente lá. Não tinha comunicação de rádio, coisa nenhuma naquela época, e nós ficamos 11 dias além do tempo previsto. Nossa comida acabou no dia seguinte ao que eles deveriam ter vindo buscar a gente, os índios também praticamente não tinham comida nenhuma. Ficamos dez dias comendo quase nada, o que os índios davam pra gente. Tratamos todos eles. Um belo dia ouvimos o barulho do helicóptero e saímos correndo, porque eles iam pousar e não estávamos mais lá na pista. Emagreci 11 quilos. Peguei malária depois”. Esse momento foi tão transformador e definidor de sua carreira que, pouco tempo depois, com a certeza de sua escolha, Cláudio tornou-se diretor clínico da Casa do Índio em Boa Vista. Assim como Deise, ele tinha a clareza de que não haveria êxito se a política de saúde não desse assistência permanente aos indígenas em suas casas coletivas. Seria impossível erradicar a malária longe das aldeias. Foi então que a Comissão Pró-Yanomami o convidou para ser médico de campo, no projeto coordenado por Deise. Descontente com a estrutura e a visão da FNS, ele aceitou integrar o projeto. “Depois disso, peguei malária umas dez vezes”, brinca o médico, hoje aposentado.

A primeira fase: de 1990 a 1994

Nos primeiros anos do projeto de assistência à saúde indígena desenhado e coordenado por Deise, a Comissão Pró-Yanomami cuidou de três áreas – Toototobi, Demini e Balawaú – ou do equivalente a 10% do território Yanomami, com um trabalho permanente das equipes nas aldeias. Houve resistência ao modelo dentro do movimento indigenista, que temia uma certa “sedentarização” dos indígenas perto das áreas de atendimento e interferências indevidas na cultura, o que nunca ocorreu. Havia o temor de que “o contato alteraria a cultura e que isso seria ruim para eles”, explica Deise. Essa visão foi superada dentro da CCPY e da Urihi graças ao olhar antropológico cuidadoso de Bruce Albert. A principal ideia do projeto era criar pequenas infraestruturas de atendimento espalhadas pela área, com os polos-base e os subpolos.

CLÁUDIO ESTEVES PRESTA ATENDIMENTO AOS YANOMAMI DA REGIÃO DO TUKUXIM, EM 1991. FOTO: ARQUIVO PESSOAL DE DEISE ALVES E CLÁUDIO ESTEVES. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A lógica era o atendimento descentralizado. A partir dos polos-base, a equipe de saúde é que se deslocava até os Yanomami – e não o contrário. “Essa foi a grande contribuição metodológica da nossa experiência na CCPY e que depois foi possível expandir com a Urihi. Porque o problema da assistência permanente anterior era que ela se fixava em um ponto, e os indígenas é que tinham que recorrer ao posto. A gente tinha a ideia de que aquilo era apenas um ponto de referência para a organização de equipes, para o deslocamento até as malocas”, conta Deise.

O projeto da Comissão Pró-Yanomami obrigava as equipes a fazer uma busca ativa da malária em todas as comunidades. Além disso, havia programas permanentes de saúde da mulher, saúde da criança, assistência pré-natal, vacinação e pesagem e saúde bucal, com visitas regulares e programadas. As equipes precisavam cumprir metas de atendimento. “Introduzimos o controle social [feito pelos Yanomami], porque se um funcionário deixava de ir à maloca a gente ouvia as reclamações dos indígenas. Checávamos sempre com eles se a equipe estava, de fato, visitando periodicamente. A gente levava tudo, inclusive os microscópios, para fazer o diagnóstico da malária nas malocas”, recorda Cláudio.

“Parece óbvio, mas era um grande mito o de que fosse possível tratar os Yanomami no meio da floresta amazônica e ter um sistema de saúde próprio. Isso tudo foi uma coisa muito nova, mas que depois se mostrou acessível”, endossa Deise. Os resultados foram espetaculares, e os indicadores epidemiológicos das três áreas que a CCPY atendia, comparados com o resto da TI Yanomami, passaram a ser discrepantes. “Nesse momento, então, a gente cuidava de 10% do território. A FNS cuidava dos outros 90% e era um fracasso total: não existia um projeto, não existia um método a ser cumprido, não existia nada, não tinha um programa comum para a área nem pessoal. Porque o que sempre foi o grande xis da questão do Distrito Sanitário Yanomami, e de toda a saúde indígena, eram os recursos humanos. [Na FNS] eram colaboradores eventuais o tempo todo”, conta Deise. “O segredo [do bom atendimento em uma área dificílima] era assegurar boas condições de trabalho aos profissionais para manter o sistema funcionando”, complementa a criadora do modelo. “A CCPY tinha bons resultados, assistência permanente, quadro fixo de funcionários, com direitos trabalhistas. A FNS teve 120 concursados e 90 temporários. E só 30 pessoas trabalhavam em área. Toda essa estrutura precária levou ao fracasso da execução direta pela FNS [que depois viraria Funasa].”

DEISE ALVES CUIDA DE UMA CRIANÇA YANOMAMI NA REGIÃO DO BALAWAÚ. EM 1993. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A segunda fase: entrada de recursos federais (1994-1999)

Além da pressão devido aos indicadores ruins na maior parte da área indígena, havia o compromisso internacional do governo brasileiro de erradicar a oncocercose. “A área Yanomami é o único lugar do Brasil que tem uma doença chamada oncocercose, conhecida na África como cegueira dos rios, e que veio justamente com os escravos. Formam-se nódulos na pele, que são os vermes adultos, eles procriam, e os vermes não adultos migram pela pele, causam coceira e eventualmente vão para os olhos, para a córnea, retina, e acabam causando cegueira. Não tinha nenhum caso de cegueira na área Yanomami por causa da oncocercose, mas o Brasil é um dos países das Américas que tinham a doença”, explica Cláudio.

NA IMAGEM À ESQUERDA, CLÁUDIO ATENDE CRIANÇA YANOMAMI NA REGIÃO DO RIO SIAPA, NA VENEZUELA, EM 1998. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA; NA OUTRA CENA, DEISE APARECE ENTRE A JORNALISTA JAN ROCHA, O LÍDER YANOMAMI TOTO E O ANTROPÓLOGO BRUCE ALBERT DURANTE A ASSEMBLEIA ANUAL DA CCPY QUE DECIDIU PELO INÍCIO DO PROGRAMA DE EDUCAÇÃO E O CURSO DE FORMAÇÃO DE MICROSCOPISTAS YANOMAMI NO DIAGNÓSTICO DE MALÁRIA, NA COMUNIDADE TOTO, REGIÃO DO TOOTOTOBI, EM 1994. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/CLAUDIA ANDUJAR. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

Com um problema nas mãos e o olhar atento da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para a erradicação da doença, a FNS procurou a Comissão Pró-Yanomami e propôs uma parceria. “Propuseram que a gente fizesse o projeto [de saúde indígena] com eles, que o nosso convênio fosse exclusivamente com o próprio governo brasileiro e que, em vez de termos recursos próprios para essa experiência, que a gente fizesse com recursos federais”, explica Deise. “E assim ficamos até 1999.”

O projeto ia muito além do atendimento à saúde. Englobava, também, programas de educação, com a alfabetização dos indígenas nas línguas Yanomami e a formação de microscopistas – que mais tarde seriam os primeiros agentes indígenas de saúde. Essa ideia, segundo o antropólogo Bruce Albert, também seria reproduzida na ONG Urihi anos depois, com a ampliação do projeto: “A base do modelo era formar os Yanomami para participar do atendimento. O controle social dos Yanomami sobre o atendimento seria permanente e efetivo, as línguas Yanomami, favorecidas o máximo possível, e levávamos em conta a cultura e a sociedade Yanomami na construção do modelo. Por exemplo: toda a concessão Yanomami dos intercâmbios de objetos, de intercâmbios econômicos, as questões relativas à morte e ao respeito aos mortos, favorecendo o mais possível também o respeito aos remédios tradicionais e as pesquisas sobre isso. Era um atendimento muito orientado pelos Yanomami”.

CLÁUDIO, ALGUNS YANOMAMI E COLEGAS DA COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI E DA MÉDICOS SEM FRONTEIRAS NO COMEÇO DA EXPEDIÇÃO AO RIO SIAPA, NA VENEZUELA, EM 1998. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

Deise lembra que a atuação política de Davi Kopenawa sempre foi muito ativa, o que incentivava esse controle social permanente dos próprios indígenas. O modelo, enfim, funcionava, mesmo com desafios improváveis, como o de construir uma pista de pouso no Balawaú – o que durou dois anos –, já que o transporte de medicamentos e da equipe antes só era feito por meio de caminhadas longuíssimas, de 12 horas, em mata fechada. A experiência do missionário Carlo Zacquini, diz Deise, foi fundamental na época: “O Carlo era nossa pessoa de referência”. Naquela região, os médicos foram os primeiros não indígenas com quem os Yanomami mais novos tiveram contato. “As crianças corriam quando viam a gente, se assustavam, passavam a mão na nossa pele, no cabelo. Aquela experiência de primeiro contato foi pessoalmente muito marcante. Foi um trabalho muito intenso. Passávamos muito tempo em área. E, pessoalmente, talvez tenha sido a época mais feliz da minha vida, porque foi ali que nasceram as nossas filhas. Nós temos duas meninas, uma nasceu em 1994, a outra em 1996”, conta Deise.

A terceira fase: a Urihi (1999-2004)

O governo federal decidiu reestruturar a saúde indígena em 1999, com um modelo descentralizado. Foi aí que surgiram os DSEIs. O quadro epidemiológico seguia ruim na maioria das áreas Yanomami. A FNS viraria oficialmente Funasa. Foi nesse contexto que o próprio governo convidou a Comissão Pró-Yanomami a dar um passo ousado: assumir o atendimento em 50% da área Yanomami. O contexto político também havia mudado, com a aprovação da Lei Arouca (Lei nº 9.836) pelo Congresso Nacional, que ganhou esse nome em homenagem ao sanitarista e deputado Sérgio Arouca por sua atuação na formulação e na aprovação da legislação em Brasília. O governo era de Fernando Henrique Cardoso, cuja visão sociológica e acadêmica auxiliava na compreensão da realidade indígena.

A pesquisadora da Fiocruz Luiza Garnelo, especialista em saúde indígena, explica o contexto político que permitiu ao governo federal, na época, procurar auxílio de ONGs para fazer o atendimento à saúde dessas populações. “O reconhecimento de que o modo de vida indígena tem singularidades que devem ser respeitadas e de que o SUS [Sistema Único de Saúde] não dispunha de preparo adequado para atender a elas levou à proposta de organização de um sistema de saúde específico para os povos indígenas (…). Vingou a proposta de criar um subsistema do SUS, garantindo assim uma vinculação hierárquica entre essas instâncias”, detalha Luiza no livro Saúde Indígena: uma Introdução ao Tema, publicado em 2012. Com a promulgação da Lei Arouca, a Funasa passou a ser responsável por todas as ações de saúde indígena. Mas não tinha pessoal, tampouco experiência. A contratação de ONGs que já trabalhavam com indígenas passou a ser uma opção, como explica Luiza.

Foi nesse momento que a Funasa procurou a CCPY. A decisão foi difícil, e a Comissão Pró-Yanomami rachou. Parte do grupo achava que seria um passo importante, pois finalmente o modelo de atendimento poderia ser ampliado, e com a responsabilidade do Estado. Cláudio e Deise estavam desse lado. Outra parte da comissão achava que a entrada maciça de recursos governamentais na organização tiraria sua autonomia e independência para denunciar violações dos direitos indígenas. Desse lado estava, sobretudo, a fotógrafa Claudia Andujar.

“Discutimos internamente, e a CCPY decidiu que era um projeto muito grande, que envolvia verbas governamentais. A Claudia Andujar dizia na época que isso descaracterizava a organização. Uma coisa era um projeto numa área pequena, outra coisa seria assumir um projeto com verba governamental, que fugia ao interesse da própria organização, da independência necessária para criticar o governo. A CCPY achou por bem que se fizesse uma segunda organização, com o apoio total, com as pessoas da própria CCPY que tinham mais afinidade com a área de saúde. Fomos eu, Cláudio, Carlo Zacquini, Bruce Albert e Alcida Ramos, antropóloga da UnB [Universidade de Brasília]. Criamos essa organização e elaboramos um projeto que previa uma etapa preparatória de três meses”, recorda Deise.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Na avaliação de Bruce Albert, a proposta da Funasa era irrecusável. “Ficamos anos e anos, décadas e décadas, trabalhando a questão da saúde em microescala para fazer um projeto exemplar de como poderia ser tratada a saúde Yanomami. E na hora em que vem a proposta [federal] de fazer em grande escala a gente vai dizer que não? Isso era impossível. Então chegamos à solução de criar uma associação que seria uma emanação da CCPY, mas com um quadro jurídico e administrativo totalmente diferente, uma organização de saúde. Havia acúmulo [de conhecimento] de sobra”, diz Bruce. “Eu comecei em 1975, a Claudia em 1974, o Carlo em 1968, a Alcida também na década de 1960. Então, nos anos 2000, a gente já tinha um tempo de estrada no assunto, o que realmente nos dava a legitimidade. Falávamos a língua, estávamos em concertação permanente com os Yanomami. Digo isso para dar uma ideia dessa revolução no atendimento. A gente levava a sério os Yanomami, que reivindicavam atendimento nas aldeias, ao contrário dessa história de que não se deve permanecer lá.”

Cláudio, diz o antropólogo, fazia o sistema funcionar e também se ocupava das relações institucionais e políticas. Deise “era o cérebro epidemiológico” da Urihi. “Ela inventou todo o sistema de manejo dos dados da Urihi, a tal ponto de precisão que me impressionava muito na época”, conta Bruce. “O sistema era tão bem-feito que, por exemplo, se tinha um auxiliar de enfermagem que não ia às malocas e ficava inventando dados, o sistema de manejamento de dados que a Deise inventou imediatamente detectava uma incoerência. Era uma malha fina. Era extremamente bem organizada a coisa e muito bem pensada. Eu tenho a maior admiração pelos dois. Era extraordinário.”

BOA VISTA, RORAIMA, ANO 2000: SEDE DA URIHI-SAÚDE YANOMAMI. A ONG FOI CRIADA EM 1999 PARA AMPLIAR UM MODELO DE ATENDIMENTO EM SAÚDE REVOLUCIONÁRIO E EXITOSO INICIADO PELA COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A antropóloga Alcida Ramos, professora aposentada da Universidade de Brasília, vê a Urihi como um desdobramento natural da experiência da Comissão Pró-Yanomami. “Com atuações, ainda que pontuais, no campo da saúde, a CCPY contribuiu para ampliarmos o conhecimento sobre as dimensões e condições da terra Yanomami. A Urihi, com sua atuação extremamente profissional, só reforçou a importância da CCPY. Não poupo elogios ao trabalho da Urihi.” Alcida destaca a gestão administrativa, que permitiu debelar a malária. O modelo, segundo ela, deveria ser convertido em manual para outras áreas do Brasil e do mundo, como a África. “Sou testemunha desse trabalho porque participei, como intérprete, de equipes médicas no vale do rio Auaris. A Urihi conseguiu a façanha de, em apenas quatro anos, ‘limpar’ boa parte da Terra Indígena Yanomami do terror da malária. Transformou um risco à saúde em saúde sem risco”, afirma Alcida.

O trabalho de alfabetização e capacitação dos indígenas desenvolvido pela Urihi, dentro de um projeto de saúde, “foi hercúleo”, recorda o ecólogo e geógrafo Maurice Seiji Tomioka Nilsson, que atuou na ONG. “Envolvia partir de pessoas que não tinham domínio da escrita, ensiná-las a ler e escrever em línguas Yanomami, ensiná-las a fazer contas, e isso usando as ferramentas conceituais da nossa sociedade. Fazer a leitura de uma lâmina e encontrar as formas de gameta, os formatos em que a malária aparece no sangue, essa coisa toda.” Maurice chegou à TI Yanomami em dezembro de 2000. “Em 2001 praticamente não havia mais malária e não havia mortes por malária. Pela primeira vez saía-se de uma condição de atendimentos emergenciais para uma condição plena de atendimento permanente. Havia polos de saúde muito bem estabelecidos, em geral de tijolos, com alojamento, farmácia e espaço de atendimento. E esses postos eram sempre atrelados a uma pista de pouso, enfim, ao acesso. Quando um técnico de enfermagem chegava ali, se instalava e saía em caminhada para as aldeias, que nem sempre ficavam ao lado da pista de pouso”, explica ele. Um dos trabalhos de Maurice na Urihi foi transformar todas as informações e dados epidemiológicos em mapas.

Amigo de Cláudio e Deise há 28 anos, o médico Joan Tubau conheceu os dois quando trabalhava na organização humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF), na área Yanomami, ainda na época da Comissão Pró-Yanomami. Ele e Cláudio foram juntos à Venezuela, em uma missão, nos anos 1990. O objetivo era levantar os casos de malária dos indígenas naquele país, o que afetava o controle no lado brasileiro. Em 2002, Tubau foi convidado a fazer parte da diretoria da Urihi. O efeito do trabalho da ONG, diz ele, foi “maravilhoso”: “Garantia que os funcionários estivessem nos postos, andassem até as malocas, respeitassem os pacientes Yanomami. Que os funcionários começassem a entender a incrível sorte que eles tinham de ter contato com a cultura e com um povo dessa riqueza. Nós não estamos falando de doenças complexas. É estar lá, cuidar com carinho, com constância, com preocupação, com ética. Foi isso que a Urihi fez”. Para Tubau, que atualmente retornou à MSF, em Barcelona, a Urihi introduziu a telemedicina dentro da floresta amazônica: “O auxiliar de enfermagem entrava no rádio 24 horas por dia, fazendo contato com o Cláudio. Era um sistema muito efetivo, ético e cuidadoso”.

ESCOLA DA ONG URIHI-SAÚDE YANOMAMI NA REGIÃO DO HAXIU, EM 2003. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A partir da criação da Urihi, tudo foi redimensionado: logística, recursos humanos, capacitação e treinamento, locais de funcionamento. O projeto da ONG ampliou de maneira significativa o atendimento à TI Yanomami, mas, como Deise e Cláudio acumulavam experiência no atendimento aos indígenas, o desafio não parecia ser tão complexo. A Funasa deu total autonomia à Urihi. Os médicos tiveram receio, num primeiro momento, de assumir também a responsabilidade pela contratação de horas de voo, pois sabiam que esse era um vespeiro em Roraima. Todos os pilotos, sem exceção, já tinham trabalhado para o garimpo em algum momento. Mas o Ministério da Saúde exigia um pacote completo, como a CCPY fazia anteriormente.

Não foi simples recrutar pessoal. Editais eram publicados, e em geral os médicos interessados vinham, em sua maioria, do Sudeste; os enfermeiros, do Nordeste; os técnicos de enfermagem, da própria Região Norte. Antes de celebrar o convênio, a coordenação da Funasa permitiu que as licitações fossem adaptadas às especificidades da área Yanomami. Enquanto fazia seu projeto de pesquisa de mestrado e doutorado na TI Yanomami, o antropólogo Rogério Duarte do Pateo firmou uma parceria informal com a Urihi. “Tive essa relação de apoio logístico em troca de informações. Eles assumiram uma região gigantesca, e os dados eram todos furados. Não havia como saber quem tinha que ser vacinado ou não. Tivemos que refazer todo o censo, entender a relação entre as aldeias, contar todos os lugares. Havia lugares que nem estavam na lista. Lugares onde fazia anos que não aparecia ninguém para dar um remédio. Começou, então, essa rotina. Eles criaram os polos-base e os subpolos, instalações menores, quando as malocas eram muito longe. Tinham a preocupação de dar o mínimo de conforto aos trabalhadores. Os subpolos sempre tinham estrutura de radiofonia”, explica Rogério.

Com esse sistema, “todos os doentes sumiram”, diz o antropólogo da Universidade Federal de Minas Gerais, que hoje participa de um projeto no Egito. “E as aldeias começaram a se encher de crianças. Foi incrível ver isso. Eu fui em 2000 e fiquei três meses. Quando eu voltei, um ano depois, as aldeias estavam lotadas de crianças, era uma felicidade generalizada. Algumas doenças, claro, sempre tem, mas o negócio estava baby boom mesmo. As pessoas pararam de morrer. A mortalidade infantil caiu bruscamente na época deles [65%, nos registros da Urihi] e, pelo que me lembro, o índice de mortalidade por malária chegou a zero em algumas regiões.”

O CONTROLE DA MALÁRIA NA TERRA INDÍGENA YANOMAMI, ALCANÇADO PELA URIHI, FOI NOTICIADO PELO JORNAL ‘FOLHA DE S.PAULO’, EM 2002. FOTO: ARQUIVO PESSOAL. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA

Rogério se recorda de “engenhocas” criadas por Cláudio, como um raio X móvel que era levado às aldeias para auxiliar no diagnóstico de tuberculose. Cita, ainda, o manual de microscopistas, escrito, em três línguas Yanomami, com a supervisão de Bruce Albert. “Havia, além disso, um controle radical do vencimento das medicações. Os voos levavam remédios entre um polo e outro. Se eles sabiam que tinha remédios sobrando num lugar, dentro da validade, e em outro lugar havia remédio acabando, ou vencendo, eles já levavam para não vencer sem usar… Tinha uma parte logística muito impressionante da Urihi. Era uma estratégia para tirar o menos possível os índios da floresta e otimizar os procedimentos para gastar menos dinheiro público e ter mais eficiência”, afirma o antropólogo.

A formação dos próprios Yanomami em saúde foi o que permitiu a erradicação da malária. “Eu comecei a trabalhar em 1999 como microscopista na época da Urihi. Fiz o curso e aí eu comecei a acompanhar a saúde Yanomami. Quando a Urihi entrou, em 2000, a saúde ficou muito boa, porque eles andavam, eles mandavam o pessoal para trabalhar, não mandavam a pessoa ficar no posto. Mandavam trabalhar nas comunidades, dormindo [lá]. As pessoas andavam muito. Acabou a malária, melhorou tudo, os Yanomami tinham saúde, todo mundo gostava muito do trabalho deles. Eu andava muito junto com eles, conheço o trabalho da Urihi-Saúde Yanomami. Na época, a região do Surucucu era uma região de conflito. Quem coordenava a saúde era o doutor Cláudio e a doutora Deise, eles iam no mato, não ficavam na cidade. Eles mesmos cuidavam dos Yanomami. A Urihi formou muitos agentes de saúde Yanomami, microscopistas, para combater a malária. Aí que melhorou tudo para os Yanomami”, relata Morzaniel Ɨramari Yanomami, que foi professor em Surucucu, nos projetos de alfabetização da Comissão Pró-Yanomami, e depois passou a se dedicar aos projetos de saúde com a Urihi, formando-se agente indígena de saúde.

Convidados a trabalhar para a Urihi, os indígenas que se formavam como microscopistas e agentes de saúde no início não recebiam dinheiro. Culturalmente, não fazia sentido para eles. Os trabalhos eram remunerados com trocas. Em Yanomami, a prática é conhecida como “matihipë”, como os indígenas chamam os objetos que querem possuir: ferramentas agrícolas, terçado, facão, um short, Havaianas, instrumentos que ajudem na pesca, na roça, na caça ou que tragam mais conforto no cotidiano. “Uns poucos a gente conseguiu, no final, pagar em dinheiro, já com documentação, mas era tudo em trocas. A gente tinha um almoxarifado que você não pode imaginar a quantidade de itens… Por isso não podíamos fazer uma grande licitação de anzóis com número específico, por exemplo”, explica Cláudio.

A cada três meses, a Urihi fazia um relatório físico-financeiro e o enviava à Funasa. Havia, também, relatórios de metas. “Nós tínhamos um setor administrativo, um administrador, uma auxiliar de administração. Nós éramos os ordenadores de despesas. Era a gente que assinava tudo, né?”, conta Cláudio. “Nunca houve nenhum questionamento em relação ao nosso procedimento licitatório. Nunca. Assinamos quatro convênios da Urihi. Para poder receber a parcela seguinte, já tinha que ter as prestações de contas em dia. Isso tudo foi aprovado. E nunca foi questionado”, complementa Deise. A Urihi contava com 120 funcionários. Sessenta por cento dos recursos do convênio eram utilizados para pagamento de pessoal, afirma a médica. A relação da ONG com a coordenação nacional da Funasa, em Brasília, era fluida e direta. “Mas, com o passar do tempo, a gente começou a ver uma resistência da Funasa local, de Roraima. Os coordenadores eram indicações políticas, e começou a haver uma hostilidade constante nas reuniões do Conselho Distrital. Já eram pessoas, assim, nitidamente anti-indígenas”, diz Deise.

Infográfico: Rodolfo Almeida/Sumaúma

Os boletins epidemiológicos feitos pela Urihi e depois catalogados pela Funasa mostram que a incidência de malária caiu 99%. De 2001 a 2004, não foi registrado nenhum óbito causado por malária nas aldeias assistidas pela Urihi. A ONG capacitou 33 jovens Yanomami como microscopistas. A mortalidade infantil no período foi reduzida em 65%. A tuberculose começou a ser diagnosticada e tratada nas malocas, sempre que possível. As crianças Yanomami estavam vacinadas conforme o calendário do Ministério da Saúde. Não havia mais casos de desnutrição. “Realmente eles fizeram um trabalho único, exemplar, que não só os números mostram, mas os Yanomami falam dessa época, da época de saúde, em que eles viviam bem, não tinham que se preocupar com as doenças, podiam viver a vida deles”, resume o indigenista Marcos Wesley de Oliveira, que atuou na CCPY entre 1997 e 2008.

Nesse período, houve um crescimento demográfico de 4% ao ano. “O Davi [Kopenawa] costumava dizer, na aldeia dele, lá no Demini, que essas são as crianças da Urihi. Porque a mortalidade infantil era altíssima, né? Aí parou de morrer criança”, recorda Cláudio.

O fim da Urihi

A principal exigência das lideranças indígenas era ter protagonismo na definição de políticas públicas de saúde. Para o movimento indigenista, ter um departamento ligado ao Ministério da Saúde para cuidar diretamente da assistência indígena, minimizando as interferências políticas locais, sempre foi uma reivindicação. Mas isso só viria a acontecer em 2010, com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). E foi somente em 2023 que um indígena, Ricardo Weibe Tapeba, assumiu o comando do órgão. Décadas antes, o período de funcionamento da Urihi foi desafiador para o desenho de políticas públicas em áreas indígenas, sobretudo no território Yanomami.

RECEPÇÃO DA SEDE DA URIHI EM 2003: EXPOSIÇÃO E VENDA DE ARTESANATOS YANOMAMI, EM BOA VISTA, ESTADO DE RORAIMA. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

Tapeba, que está na linha de frente da atual crise Yanomami, não conheceu o trabalho da Urihi. A Sesai, segundo ele, “tem muitas deficiências” e o território “de quase 10 milhões de hectares, mais de 350 comunidades indígenas e com população de mais de 30 mil indígenas” impõe inúmeros desafios, sobretudo de acesso. “Como não conheço esse modelo da Urihi, eu não posso dizer aqui que ele pode ser replicado nos dias atuais”, afirma. Ele enfatiza que houve um compromisso da gestão atual e do próprio presidente Lula de que os principais espaços de governo que tratam sobre a política indígena brasileira seriam ocupados por indígenas. “Quanto menos houver influência política partidária nessas instâncias, melhor será para os povos indígenas, porque nós estamos, no caso Yanomami, inclusive, enfrentando um cenário em que o Distrito Sanitário Especial Indígena foi totalmente aparelhado por grupos políticos do estado de Roraima, o que alavancou essa crise sanitária existente lá naquele território.”

Davi Kopenawa diz que está “lutando” para que o governo federal entenda que é preciso trazer de volta a metodologia da Urihi. “Estamos tentando fazer funcionar um modelo tipo o da Urihi, mas dentro da Sesai aqui em Boa Vista tem muita gente [que apoia] Bolsonaro. Então está difícil fazer funcionar. Mas estamos tentando, estamos lutando. Seria muito melhor, muito melhor mesmo”, afirma.

Conforme aponta a pesquisadora da Fiocruz Luiza Garnelo, entre 1999 e 2004, 26 associações indígenas fizeram convênios com a Funasa para executar ações de saúde nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) na Amazônia. Essas entidades foram obrigadas a fazer “reestruturações profundas em sua modelagem institucional e mesmo em seus objetivos políticos, de modo a responder adequadamente a um novo papel, o de prestadora de serviços públicos de saúde”, explica. O desafio não era só ter quadros técnicos qualificados, mas gerir “volumes orçamentários muito superiores àqueles anteriormente movimentados pelas entidades, gerando grandes desafios ao associativismo indígena”, escreve Luiza em publicação que discute os parâmetros da saúde indígena.

A Urihi, segundo os relatos de Cláudio e Deise, passou por esse processo de adaptação e seus profissionais se sentiam amparados por conta de um diálogo transparente e direto com a Funasa e o Ministério da Saúde, em Brasília. No entanto, a relação com os políticos locais nunca foi harmoniosa, enfatizam os dois. Na visão dos médicos, a Urihi, ao fazer a assistência permanente nas áreas, também se transformou num obstáculo aos interesses de exploração de minérios na Terra Indígena Yanomami.

Em 2003, com a mudança de governo, os dirigentes da Urihi começaram a sentir um clima ainda mais hostil na relação com a elite política e econômica local. Anos antes, em 2001, o Senado havia instalado a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs. Na ocasião, as associações indígenas já alertavam sobre os riscos de analisar a cooperação do terceiro setor com o Estado de maneira genérica, em especial nas áreas indígenas. Na época, um dos idealizadores da CPI, o então senador Mozarildo Cavalcanti – que foi do PFL, do PTB e em 2022 se filiou ao PP –, era apontado por indigenistas como um político alinhado aos interesses econômicos do setor da mineração. Em reportagem da Folha de S.Paulo publicada em 2001, Cláudio Esteves disse que a CPI ajudaria se fosse feita de maneira idônea.

Além do golpe da CPI, o que estremeceu de vez a relação de associações que atuavam em áreas indígenas em parceria com o governo federal foi uma nova concepção de gestão, que ficou clara a partir de 2004. “Em 2004, já no governo petista, os gestores da Funasa tomaram uma decisão, abrupta e unilateral, de rever suas prioridades no estabelecimento de parcerias”, explica Luiza em seu livro Saúde Indígena: uma Introdução ao Tema. Duas portarias, a 69/2004 e a 70/2004, redefiniram a gestão, centralizando na Funasa toda a compra de insumos e equipamentos necessários ao desenvolvimento das ações de saúde indígena. “A medida implicou, na prática, em retirar toda a autonomia das conveniadas na condução das rotinas sanitárias sob sua responsabilidade, restringindo-as à mera posição de contratantes de pessoal para o trabalho nos DSEIs.”

Antes dessas duas portarias, assinadas pelo então ministro da Saúde, Humberto Costa (PT), as ONGs, como era o caso da Urihi, tinham autonomia para definir as próprias ações e fazer processos ágeis de contratação, adaptando as compras à realidade dos atendimentos. Depois das novas portarias, as entidades não teriam mais controle da gestão dos programas de assistência nas terras indígenas. Elas fariam, basicamente, a contratação de recursos humanos. Procurado por SUMAÚMA para explicar as razões da mudança da gestão na saúde indígena, o ex-ministro e hoje senador Humberto Costa não respondeu. Segundo sua assessoria, o senador não se recordava das razões que haviam levado à reestruturação da saúde indígena e sugeriu que fosse consultado o ex-diretor nacional de Saúde Indígena da Funasa Alexandre Padilha.

BOA VISTA, 2000: CLÁUDIO DENUNCIA À IMPRENSA LOCAL A PRESENÇA DE GARIMPEIROS NA TERRA YANOMAMI. OS CRIMINOSOS ESTARIAM ENTREGANDO ARMAS E INCITANDO CONFLITOS ENTRE OS INDÍGENAS. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

“Quando assumi a direção de Saúde Indígena da Funasa, no período de cerca de um ano, metade de 2004 e metade de 2005, essas duas portarias (69 e 70) já estavam publicadas, já estavam em funcionamento. Não fiz parte da elaboração delas. Elas surgiram em um momento em que era importante ter mecanismos de supervisão, através da Funasa, do trabalho que era feito por organizações não governamentais”, explicou Alexandre Padilha em respostas enviadas por escrito a SUMAÚMA. Padilha é, hoje, ministro da Secretaria de Relações Institucionais do governo Lula.

O ministro reforça que, na época em que foi feita a mudança de gestão, “ações da CGU [Controladoria-Geral da União] e apurações feitas por órgãos de controle mostravam também desvio de recursos com ONGs, má gestão dos recursos, baixa qualidade de atuação em vários locais”. Padilha admite que o conhecimento da realidade local é importante nessas parcerias, “mas não era suficiente para garantir a boa gestão dos recursos”. A intenção das novas portarias, alega ele, era criar mecanismos de acompanhamento e supervisão por parte do Ministério da Saúde: “Esse modelo foi absolutamente aprimorado e superado quando nós criamos, anos depois, uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, que trouxe a saúde indígena para dentro do Ministério da Saúde, que foi ampliada e fortalecida na minha gestão enquanto ministro da Saúde”.

Padilha não respondeu às perguntas sobre a ONG Urihi, não disse se chegou a conhecer o trabalho dos médicos indigenistas na Terra Indígena Yanomami, nem se soube dos processos contra eles e de sua condenação atual. Em 2007, a CCPY reproduziu em seu site uma declaração de Padilha, que também é médico sanitarista, sobre a atuação da Urihi: “O convênio da Funasa com a Urihi conseguiu bons resultados na redução da mortalidade infantil e no controle da malária nas regiões em que atuou entre os Yanomami nos estados de Roraima e Amazonas”.

A SUMAÚMA, Padilha confirmou que a Funasa não será recriada no atual governo. “O território indígena é um território com muitas peculiaridades, onde a combinação de estruturas públicas do Estado brasileiro com experiências de organizações locais é fundamental. A melhor experiência foi em 2011, com essa combinação, também através do Mais Médicos, de parcerias com organizações locais e com entidades, ou com universidades. Isso foi desmontado a partir do governo Bolsonaro, e hoje nós temos um grande desafio de reconstruir o atendimento à população indígena”, disse. O governo voltará a investir, prometeu Padilha, na formação de médicos, agentes de saúde, enfermeiros e técnicos de enfermagem indígenas.

O fim da Urihi começou, segundo Cláudio e Deise, quando os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, vinculados diretamente à Funasa, passaram a ser alvo de fortes ingerências políticas e econômicas locais anti-indígenas. A ONG perdeu a autonomia para dialogar diretamente com a Funasa, em Brasília, e passou a ser alvo constante de hostilidades regionais. “Tinha que passar pela coordenação regional, e essa hostilidade era total e absoluta. Questionavam tudo o que a gente fazia [a partir de 2003, sobretudo]. Estávamos muito cansados de muita papelada, era muito trabalho administrativo, de prestação de contas, e a gente já sentia que não estava mais fazendo nada. Estávamos sendo pressionados a simplesmente preencher papelada, prestar contas de coisas absurdas”, recorda Deise.

Os médicos discordavam das duas portarias do Ministério da Saúde e perceberam que um cerco político estava se fechando. Além de confrontar as lideranças políticas locais, Cláudio manifestava preocupação com o fato de a Funasa ser controlada por figuras do então PMDB, como o ex-senador Romero Jucá, que sempre deixaram clara a postura favorável à mineração na área indígena. Jucá apresentou um projeto sobre o tema em 1995, bem antes de Bolsonaro tornar a ideia diretriz de governo.

“Quando eles efetivamente reduziram, em 2004, os convênios para a contratação de pessoal, naquele momento a gente quis ir embora”, diz Deise, que deixou a Terra Indígena Yanomami, após anos de trabalho incansável, com um sentimento de derrota. “É tão surreal, porque eu sabia que aquilo era uma derrota política. O fato de eles não terem usado a nossa experiência para construir o que viria depois significava uma ruptura. E aquilo ali era muito sintomático de que a coisa não ia bem. Para os Yanomami não ia ficar bem.” A Funasa recusou, inclusive, a proposta da Urihi de que houvesse um período de transição para a troca de experiências com os novos gestores da saúde na área indígena. “Era uma derrota, porque não haveria continuidade. Nós estávamos ali denunciando que as ONGs seriam cooptadas pelo poder político local”, reitera a médica.

Cláudio partiu de Boa Vista com tristeza, mas não com a mesma visão política de Deise: “Eu sempre achei que aquilo que fizemos ali nunca poderia ser destruído. Que aquela experiência era tão bem-sucedida que era indestrutível. A Deise sempre foi muito mais inteligente e muito mais esperta politicamente do que eu. Eu pensava que poderia haver algum retrocesso de fato, mas não que eles iam conseguir eliminar a gente, destruir a gente completamente. Nunca nos perdoaram por termos denunciado a presença dos garimpeiros. Fazíamos isso sistematicamente”. Os relatórios de enfermagem da Urihi, explica Deise, eram também relatórios de vigilância do território. Além dos dados epidemiológicos, eles anexavam informações sobre aeronaves que apareciam na área, com os respectivos prefixos. “A gente fazia uma fiscalização, enquanto sistema de saúde, do espaço aéreo, da área do garimpo. Nunca descuidamos desse lado.”

BOA VISTA, RORAIMA, 2003: OS MÉDICOS CLÁUDIO E DEISE (ABRAÇADOS) E MARINHO (INDIGENISTA DA URIHI) AGUARDAM VÔO PARA ENTRAR NO TERRITÓRIO YANOMAMI. FOTO: ARQUIVO PESSOAL/AUTORIA DESCONHECIDA. REPRODUÇÃO: BRENDA ALCÂNTARA/SUMAÚMA

A partida de Boa Vista foi no dia 17 de julho de 2004. O último convênio da Urihi com a Funasa foi finalizado em 7 de julho do mesmo ano. Os médicos decidiram tentar a vida em Florianópolis. Um amigo os avisou de que a prefeitura de lá havia aberto concurso para médicos. Antes mesmo da mudança, Cláudio fez as provas e foi selecionado. A adaptação não foi fácil. E logo a dificuldade de conseguir emprego ficou clara. A reputação dos médicos da Urihi já havia sido manchada desde a primeira CPI das ONGs, com as primeiras reportagens, em 2001. Em 2007, com a recriação da CPI no Senado para debater o mesmo tema – os convênios do governo federal com o terceiro setor –, Cláudio e Deise abriram mão espontaneamente de seus sigilos bancários e fiscais aos parlamentares, para tentar estancar a associação de seus nomes ao desvio de recursos públicos. No mesmo ano, explodiu a Operação Metástase, em que 35 pessoas foram presas, inclusive funcionários da Funasa e empresários acusados de fraude em licitações, formação de quadrilha ou bando, peculato, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e crimes contra as ordens econômica e tributária. Os convênios assinados pela Funasa após a saída da Urihi estavam sob investigação. Na política, porém, é complexo separar o joio do trigo. Ou, muitas vezes, é intencional não fazê-lo.

Cláudio só foi chamado pela prefeitura de Florianópolis para ocupar a vaga dois anos depois da mudança. Foi obrigado a fazer plantões em cidades próximas para sobreviver e também assinou contratos temporários. Deise não conseguia emprego: “Fui trabalhar como médica da Cassi [Caixa de Assistência dos funcionários do Banco do Brasil]. As pessoas viam meu currículo, me entrevistavam, e eu nunca era aceita. Minha experiência era muito específica, mas eu tinha 15 anos de experiência como médica, trabalhando todos os dias”.

Deise é uma pessoa discreta, tranquila e organizada. Durante os dias em que conversou com SUMAÚMA, houve dois momentos em que chorou. Um deles foi quando se recordou de um episódio que envolvia as filhas. “Até nossas filhas às vezes chegavam da escola e falavam: ‘Comentaram que vocês trabalhavam com índios e que tem denúncias contra vocês’. [As pessoas] queriam saber onde a gente vivia, como era a nossa casa. Aquilo foi muito doloroso. Muito. Eu nunca poderia imaginar que a gente, depois de ter feito esse trabalho, não conseguisse sobreviver, não conseguisse emprego, e ainda tivesse que explicar sobre o único período da história da saúde Yanomami em que teve esse sucesso”, conta Deise.

Cláudio e Deise levaram a vida, mas foram perdendo energia e alegria. No encontro com SUMAÚMA para relembrar a história da Urihi, muitos sentimentos vieram à tona. Em alguns momentos falavam com entusiasmo da medicina e da vida com os Yanomami, em outros eram tomados por uma profunda tristeza e indignação. O fato de nunca mais terem sido reconhecidos como médicos qualificados e de terem sua imagem associada a roubo de dinheiro público deixou marcas profundas não apenas na alma, mas também no corpo. Cláudio admite que “a desilusão total” o levou a uma depressão, “que só piora com a idade”. Crises de ansiedade e insônia também passaram a ser constantes. Sentimentos de revolta e indignação os acompanham desde a saída de Roraima. E o pior de tudo, segundo os dois: ver que os Yanomami voltaram a morrer e estão sendo novamente dizimados.

Em Florianópolis, os médicos cuidavam de cães que apareciam nas ruas sem dono, tentando deixar o passado para trás. Mas a história da Urihi estava encarnada nos dois. Para complementar a renda, Cláudio também fez concurso para médico do estado de Santa Catarina. Algumas notificações da Funasa ainda chegaram a Florianópolis, mas depois de um tempo eles desistiram de acompanhar os desdobramentos do processo. “Após ter sido diagnosticado com doença cardíaca grave, a minha aposentadoria, como médico do estado de Santa Catarina, foi efetivada em junho de 2014. Pelo mesmo motivo de saúde, a minha aposentadoria do INSS, pelo trabalho no Cepon [Centro de Pesquisas Oncológicas], só saiu [oficialmente] em fevereiro de 2017, após várias renovações semestrais de licenças médicas”, relata Cláudio. Depois de a primeira aposentadoria sair, e ainda bastante desiludido, o casal de médicos decidiu viver em Portugal com as filhas.

“Nos mudamos por cansaço de estar no Brasil. Depois de tudo o que tinha acontecido, não víamos muita perspectiva profissional. Trabalhávamos como funcionários públicos, mas era uma vida um pouco diferente, todos os dias iguais, e a gente estava acostumado a um pouco mais de aventura. Queríamos um pouco mais de vida. Eu tinha cidadania portuguesa, as minhas filhas a conseguiram também, e falamos: por que não?”, conta Deise.

De 2014 a 2021, Cláudio e Deise viveram em Portugal com as filhas. Levaram consigo oito cães que não tinham sido adotados por ninguém na capital catarinense. Deixaram de pagar o domínio do site da Urihi e não tinham mais os endereços eletrônicos da antiga ONG. Não tiveram mais notícias do processo. A vida em Portugal tampouco foi fácil. Cláudio, aposentado, não podia trabalhar. Deise conseguiu contratos temporários. Na pandemia de covid-19, trabalhou exaustivamente e na linha de frente. Ela fez um doutorado em sustentabilidade, mas não conseguiu orientador para a tese. Para a médica, até na academia ela sofreu a consequência da difamação pelo processo da Urihi no Brasil. Mais uma vez exaustos, eles retornaram ao Brasil em 2021, ainda no governo Bolsonaro, e decidiram morar em Porto de Galinhas, no estado de Pernambuco. A proposta era esquecer de vez a medicina e coordenar uma pousada sustentável. Dois anos depois, reconheceram que não têm vocação para empreendedores e agora buscam um novo rumo.

O processo e os atos finais

Até junho de 2004, quando a Urihi finalizou a relação contratual com a Funasa, o poder público nunca havia questionado as prestações de contas da entidade. Como explicou Deise, uma enorme burocracia antecedia a liberação das parcelas. Ainda que não sejam especialistas em administração pública, Cláudio e Deise sabem que jamais teriam conseguido manter o sistema da Urihi funcionando se tivessem que seguir as rígidas regras de licitação previstas na Lei nº 8.666. E o Ministério da Saúde também sabia disso, tanto que uma Instrução Normativa de 1997 previa que as práticas fossem análogas às da 8.666, mas, obviamente, não idênticas. A Urihi sempre tomou decisões, argumentam ambos, orientada por boas práticas e zelo pelo dinheiro público. “A gente ia comprando o mais barato nos fornecedores, buscando os objetivos da administração pública, a economicidade, a eficiência e a impessoalidade. Tal como a gente fazia com o dinheiro que vinha das organizações internacionais para a CCPY: só queriam saber se tinha sido gasto direitinho. Tanto é que, depois que a Urihi saiu [da terra indígena], o orçamento do Distrito Sanitário Yanomami triplicou para as áreas onde a gente estava”, relata Cláudio.

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EM BOA VISTA, NA DIOCESE DE RORAIMA, O GUARDIÃO DOS DOCUMENTOS DA URIHI-SAÚDE YANOMAMI É O MISSIONÁRIO CARLO ZACQUINI. HÁ MAIS DE 20 ANOS ELE PRESERVA OS PAPÉIS E A MEMÓRIA DA ONG. SEU DESEJO É INTEGRAR ESSE ARQUIVO AO ACERVO DO CENTRO CULTURAL INDÍGENA QUE ESTÁ CRIANDO NA CIDADE. FOTO: PAULO ROBERTO

Algumas das experiências no meio da floresta eram de fato difíceis para um burocrata compreender. Não dava, por exemplo, para comprar qualquer microscópio. Havia um modelo de uma marca específica cujo espelho funcionava com o reflexo da luz solar, durante o dia nas aldeias, e que não quebrava no transporte até as malocas. De nada adiantaria comprar uma marca mais barata – como a Funasa havia feito anos antes – que quebrasse rapidamente e virasse sucata espalhada nas salas da instituição.

Também seria difícil explicar aos órgãos de controle como Cláudio e Deise conseguiram barrar o cartel das empresas de táxi aéreo. “Chamamos o coordenador regional da Funasa na época para assistir ao leilão, com quatro empresas. Elas só poderiam entregar propostas em envelopes. Na véspera, um dos empresários veio conversar conosco e disse que estava sendo pressionado a fazer um cartel, a botar o preço lá em cima”, recorda o médico. A empresa vencedora, de fato, subiu o preço da hora de voo de maneira significativa. No fim do processo, na frente do coordenador da Funasa e dos empresários, Cláudio disse que sabia que todos eles tinham feito um conluio. A lógica do cartel era a seguinte: assim que os médicos deixassem as cargas da Urihi (remédios e equipamentos) nas pistas, o vencedor as dividiria para que fossem transportadas também por outras empresas. Ou seja, haveria uma divisão do dinheiro e das horas voadas, o que baixaria o custo para todos. Mas Cláudio e Deise avisaram ao vencedor que deixariam a carga e só sairiam do aeroporto depois que ele levantasse voo, o que impossibilitaria a redivisão da carga com outras empresas. Sem dinheiro, as demais empresas fizeram contrapropostas mais baixas à Urihi, e a hora de voo baixou 28% em poucas semanas. O TCU achou estranha a queda abrupta dos preços. Cláudio teve que contar toda a história ao tribunal, em carta.

Talvez também não fosse tarefa fácil compreender por que a Urihi precisava de tantas baterias de rádio e de placas fotovoltaicas de energia solar. Mas era a tal telemedicina revolucionária que Joan Tubau citou, que permitia que os indígenas fossem examinados e tratados em suas próprias casas. Um dos maiores custos na assistência emergencial aos Yanomami é a remoção dos indígenas das aldeias para a cidade. Sai bem mais caro e é apenas emergencial – não resolve o cerne do problema, já que, sem o isolamento devido nas próprias aldeias e sem o controle dos infectados, a malária continua sendo transmitida.

Na longa trajetória de quase duas décadas que culminou na condenação da Urihi e de Cláudio Esteves, como representante legal da ONG, o médico nunca questionou a obrigação de prestar contas ao poder público: “Nas cartas que enviei à Funasa e ao TCU eu digo que acho natural que eles façam questionamentos, afinal trata-se de dinheiro público e a gente não pode achar estranho ter que responder a perguntas. E falo dessas peculiaridades que não podem ser bem compreendidas fora de contexto, como essa história do cartel de táxi-aéreo, por exemplo”.

O MISSIONÁRIO CARLO ZACQUINI NA PORTA DA SALA ONDE GUARDA GRANDE QUANTIDADE DE DOCUMENTOS ANTIGOS DA URIHI-SAÚDE YANOMAMI, EM 8 DE MARÇO DE 2023. FOTO: PAULO ROBERTO

Em setembro de 2004, a Secretaria de Patrimônio da Funasa enviou uma carta a Cláudio, já no endereço de Florianópolis, na qual informava que alguns equipamentos comprados pela Urihi não tinham sido localizados. Em sua resposta, no mesmo mês, o médico forneceu as datas de entrega dos equipamentos e explicou que as devoluções haviam sido acompanhadas por funcionários da Funasa. Cláudio disse a SUMAÚMA que houve complicações no procedimento de entrega porque a maior parte dos equipamentos ficava nas aldeias e era preciso que a Funasa enviasse funcionários para fazer a conferência, o que nem sempre ocorria. Ainda assim, segundo ele explica na resposta à Funasa, a Urihi fez um levantamento de todos os bens adquiridos durante o convênio e procedeu à entrega oficial, “devidamente documentada”. A resposta não foi satisfatória, e o responsável pelo almoxarifado na Funasa contestou Cláudio. Diante das divergências, a direção regional decidiu abrir uma sindicância. Mas só tomou essa providência 196 dias depois. Foram, ao final, duas sindicâncias.

Somente em maio de 2006 a Funasa decidiu instaurar uma tomada de contas especial em desfavor da Urihi, alegando que havia um débito de 22.929,85 reais, referente a equipamentos que não foram devidamente localizados. Em junho de 2006, o Departamento Administrativo da Funasa pediu que a Urihi, que até então aparecia como “adimplente”, fosse considerada “inadimplente” no cadastro. A dívida já tinha, naquele momento, saltado para 36,4 mil reais. Quando Cláudio foi notificado pelo Correio, nova correção: 59,1 mil reais. Só que Cláudio havia mudado de endereço em Florianópolis e não recebeu a carta, e a notificação foi feita por edital.

Em 2007, num processo de auditoria interna da Funasa, chegou-se à conclusão de que o nome de Cláudio e o da Urihi não poderiam ser incluídos no Cadin (cadastro de inadimplentes) sem que fossem anexados os pareceres financeiros dos convênios, “evidenciando valores aprovados e não aprovados”, para só depois lançar os dados no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi). A Funasa solicitou, então, a emissão de um novo parecer jurídico-financeiro, anos depois. Entre idas e vindas e uma passagem pela Controladoria-Geral da União (CGU), a Funasa instaurou, no total, três tomadas de contas especiais contra a Urihi, uma para cada um dos três convênios.

Os médicos Deise Alves e Cláudio Esteves dão as mãos enquanto são fotografados. No encontro com SUMAÚMA, em alguns momentos falavam com entusiasmo da medicina e da vida com os Yanomami, em outros eram tomados por  tristeza e indignação. Foto: Brenda Alcântara/Sumaúma

Em 2013, as peças, anexadas num único processo, chegaram ao TCU. Nessa ocasião, quase dez anos depois da finalização do convênio, a dívida de Cláudio com o erário já tinha saltado de milhares para milhões de reais. O parecer físico-financeiro, feito em 2010, apontou que, além de equipamentos não encontrados, a Urihi não havia cumprido metas globais. O resultado: teria que devolver 33,4 milhões de reais. Em 2014, a CGU retificou o valor, que subiu para 48,6 milhões de reais.

Finalmente, em outubro de 2018, a Segunda Câmara do TCU condenou Cláudio a pagar o débito. O tribunal salientou que caberia à Urihi comprovar como foram aplicados os recursos. “A ausência de elementos suficientes para demonstrar a boa e regular aplicação dos recursos federais transferidos, diante, sobretudo, da ausência do necessário nexo causal entre os recursos federais aportados e os supostos dispêndios incorridos nos ajustes, dá ensejo à presunção legal de dano ao erário em face das evidências de desvio dos valores federais, mostrando-se adequada a proposta da unidade técnica para condenar os aludidos responsáveis em débito”, diz um trecho final do acórdão.

Como não houve recurso, a decisão transitou em julgado (tornou-se definitiva) em 6 de fevereiro de 2019, explicou a assessoria do TCU a SUMAÚMA. Cláudio foi julgado à revelia, e, como não apresentou defesa, o tribunal concluiu que faltara à Urihi comprovar a boa-fé no uso do dinheiro público. Nesse vaivém jurídico, Cláudio tentou pedir ajuda a advogados indicados por amigos. Na época, um advogado renomado informou que o valor da causa seria de 120 mil reais, mas Cláudio e Deise não tinham condições de arcar com as custas processuais. Eles nunca conseguiram um advogado pro bono, apesar de inúmeros apelos e tentativas.

Enquanto corria esse processo administrativo, Cláudio foi alvo de um processo criminal na 4ª Vara Federal em Roraima. Nesse caso, ele e Deise contaram com a defesa da advogada Ana Paula Caldeira Souto Maior, que na época, em 2016, era funcionária do Instituto Socioambiental e havia trabalhado com os médicos na Urihi. Dessa vez, Cláudio estava sendo acusado de peculato. “Neste caso, a juíza não recebeu a denúncia que deu início ao processo criminal e foi arquivada a investigação, sem entrar no mérito, porque já tinha decorrido o prazo para o Estado punir”, explicou a advogada. Ou seja, o médico nunca virou réu. “Eu queria que tivessem julgado o mérito”, lamenta Cláudio.

Na defesa, Ana Paula argumentou que o convênio da Urihi com a Funasa tinha rigorosas exigências, que todas as prestações de contas haviam sido entregues e nunca foram questionadas, bem como documentos legais que comprovavam a lisura e idoneidade da ONG, além dos relatórios técnicos (físico-financeiros). Todas essas prestações de contas que foram aprovadas pela Funasa também estão anexadas ao processo do TCU, e um dos ex-diretores da Funasa ressalta, em defesa do médico, que pareceres anteriores tinham aprovado a prestação de contas da Urihi.

“O erro do Cláudio, como gestor e presidente da Urihi, foi mostrar que era possível dar um atendimento digno aos Yanomami, com diminuição da malária e diminuição de mortes de crianças por desnutrição. Isso é um ponto central. O que ele sofreu de consequências vem em decorrência disso. A Urihi construiu os melhores postos de saúde. A situação dos postos de saúde hoje, dentro da área indígena Yanomami, é deprimente”, ressalta a advogada. Ana Paula alega que não tinha condições técnicas de fazer a defesa da Urihi no TCU, pois essa não era a sua especialidade.

Dois advogados especialistas em direito público foram consultados por SUMAÚMA sobre se ainda seria possível algum recurso nesse processo. Ambos consideram que há, sim, possibilidades para os médicos, mas isso exigiria uma análise detalhada e extensa do processo. Como fizeram apenas uma avaliação superficial do acórdão que condenou a Urihi, seus nomes não serão citados. Um deles acha possível pedir a revisão do processo no próprio TCU. O segundo enxerga outras duas vias: mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal ou ação ordinária na Justiça Federal. O caminho será árduo, e qualquer reparação não apaga o que os médicos viveram. Ainda sem advogado, os dois alimentam poucas esperanças. Mas decidiram contar essa história em defesa do povo Yanomami.

Em Pernambuco, onde continuam a viver, Cláudio, com 61 anos, e Deise, com 60, desistiram do negócio da pousada, mas ainda não sabem que rumo tomar. Com a saúde frágil e aposentado, Cláudio não pensa mais em retomar a medicina. Deise quer voltar a trabalhar como médica, mas teme o que o processo ainda pode lhes reservar. Questionados se poderiam auxiliar os Yanomami na atual crise, os dois são reticentes. “Nos tornamos pessoas tóxicas”, afirma Cláudio, claramente transtornado e entristecido.

Para Deise, a história da Urihi não foi uma perseguição a uma pessoa. Foi uma perseguição a uma ideia que atrapalhava e atrapalha os planos econômicos do garimpo, o que coloca os indígenas sob constante ameaça. “Eles não vão desistir. Vão até o fim. Com a gente ou com qualquer outro que apareça na frente para atrapalhar os planos deles”, diz a médica. “Eu sempre tentei encarar dessa maneira, para não ficar tão afetada pessoalmente.” Já para Cláudio é bem mais difícil racionalizar o que destruiu seu nome e sua saúde: “A Deise é uma pessoa inquebrantável. Eu estou no fundo do poço. Eu não tenho vontade de fazer mais nada”.

Todos os documentos da Urihi – notas fiscais, prestações de contas, pareceres aprovados, dados epidemiológicos, planos de trabalho, mapas, censo demográfico e metodologia utilizada na assistência à saúde indígena – estão guardados no bairro do Calungá, em Boa Vista, na Diocese de Roraima. O missionário Carlo Zacquini é o guardião dos papéis e da memória da Urihi. “Lamentavelmente, uma parte foi comida por cupins”, diz. Alguns documentos, explicou ele em troca de mensagens, foram retirados a pedido de Cláudio e Deise para que pudessem “responder às investidas dos censores que os torturaram anos a fio”. Carlo considera o processo contra os médicos uma “questão absurda e indecente que arruinou a vida de pessoas que se tornaram heróis para os Yanomami”. Ele deseja que os documentos façam parte do Centro Cultural Indígena que está criando em Boa Vista.

“Urihi a kuo tëhë.” No tempo em que existia a Urihi. A expressão, lembra o antropólogo Bruce Albert, virou um marco temporal e histórico para os Yanomami, a época em que tudo funcionava, em que as mortes cessaram, em que o mal não existia. A atual tragédia Yanomami mostra que esse tempo ficou para trás.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: James Young
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

Para Deise, a história da Urihi não foi uma perseguição a uma pessoa. Foi uma perseguição a uma ideia que atrapalhava e atrapalha os planos econômicos do garimpo. Já para Cláudio é bem mais difícil racionalizar o que destruiu seu nome e sua saúde: ‘A Deise é uma pessoa inquebrantável. Eu estou no fundo do poço. Eu não tenho vontade de fazer mais nada”. Foto: Brenda Alcântara/Sumaúma

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