Jornalismo do centro do mundo

Erasmo Theofilo, ambientalista ameaçado de morte em Anapu, no Pará, com o filho de dois anos. A família dele segue em exílio após ameaça de morte que o obrigou a deixar o seu território. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

Querida comunidade,

Quem defende da morte aqueles que defendem a vida? Essa pergunta incomodou a cabeça da equipe de SUMAÚMA nos últimos dois meses, enquanto a repórter paraense Catarina Barbosa e eu percorríamos a história de defensores dos direitos humanos ameaçados de morte no Pará, o estado do Brasil onde mais se mata em conflitos por terra. Escutamos relatos de pessoas que encontraram covas abertas com seus nomes no próprio quintal, tiveram armas apontadas para sua cabeça na frente de filhos e netos, precisaram fugir de suas casas e largar os alimentos que plantaram com as próprias mãos para viver longe de tudo e de todos, capturadas em uma realidade de prisão e medo, enquanto seus algozes seguiam livres e destruindo tudo. É gente que luta com o próprio corpo contra inimigos poderosos para manter a floresta em pé – e, assim, ajuda a garantir a sobrevivência de todas e todos, a vida de pessoas humanas e não humanas. Mas que foi abandonada pelo Estado brasileiro. E humilhada.

Na reportagem especial de SUMAÚMA que abre esta newsletter,  mergulhamos no mundo do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), uma política federal criada ainda no primeiro governo Lula, mas que em 2019 passou a ser gerida, no Pará, pelo governo estadual. O principal objetivo do programa seria manter as pessoas seguras, em suas casas, lutando contra os invasores que querem saquear seus territórios e obter lucro com a floresta. Em situações mais graves, em que o risco de morte é iminente, o programa deve retirar os defensores de suas casas e colocá-los em residências provisórias, em uma cidade mantida em sigilo, até que o perigo passe e seja possível voltar. No papel, uma política pública perfeita. Na prática, um programa de direitos humanos que viola os direitos humanos. “É só um papel”, desabafou Maria do Socorro Costa, a Socorro do Burajuba, um apelido que faz referência a sua comunidade, cercada por grileiros, madeireiros, fazendeiros e grandes multinacionais que contaminam o solo, onde as árvores dão frutos podres antes mesmo de amadurecer.

Estar no programa, para Socorro e todas e todos os outros que escutamos, não significa ter mais proteção para continuar lutando. Não há mais segurança em suas casas nem há mais cobertura policial. Aqueles que os ameaçam seguem ao lado, mesmo após o registro de uma coleção de boletins de ocorrência. Continuam a ameaçá-los livremente, até que não seja mais possível lutar. Se não conseguem matar o corpo, eles matam a luta. E obrigam os defensores desprotegidos a se refugiarem longe do próprio território.

É aí que a humilhação ganha contornos ainda mais cruéis, porque parte do próprio Estado. As famílias são colocadas em casas que alagam e onde o esgoto sobe pelos canos; convivem com geladeiras vazias, porque a verba da ajuda de custo do programa não chega ao fim do mês; e precisam suplicar, com dor, para ser levadas ao médico em cidades onde não conhecem nada. Aqueles que defendem o mundo não são defendidos por quase ninguém. Mas, ainda assim, continuam na luta. E querem agora discutir, junto ao governo, maneiras de garantir que sejam tratados com respeito. Formaram uma associação para isso e vão levar suas demandas a Brasília no próximo mês.

O governo federal afirmou a SUMAÚMA que vai reformular a política de proteção aos defensores neste mandato. Algo urgente, mas que não funciona por si só. É preciso investigar, julgar e punir quem destrói os corpos e a alma da floresta. É preciso retomar a reforma agrária e resolver com celeridade os conflitos que escalam no campo.

Faixa exibida em marcha do Acampamento Terra Livre 2023, em Brasília. O tema do encontro foi ‘O futuro indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia!’. Foto: Fernando Martinho/Sumaúma

Resolver esses conflitos também passa pela demarcação de terras indígenas. Depois de seis anos sem que novas áreas fossem efetivamente demarcadas, o presidente Lula assinou, no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, decretos de homologação de seis novas terras indígenas – um passo sem dúvida importante, mas ainda pequeno diante de um passivo enorme. SUMAÚMA acompanhou atenta, com uma equipe de cinco pessoas, entre repórteres e fotógrafos, as discussões do ATL. Contamos em uma reportagem especial como, neste ano, o principal encontro dos povos indígenas do país foi uma celebração cultural e política, diante da representatividade efetiva no poder de mulheres-terra, mulheres-semente. Mas também a expressão do equilíbrio entre as promessas governamentais e as frustrações dos povos que não se viram atendidos.

O sim para os povos originários é um importante teste para os compromissos ambientais do novo governo Lula. Outro teste é o não para a Petrobras, que quer abrir uma nova fonte de exploração de petróleo em uma das regiões biodiversas mais ricas e inexploradas do mundo. Nesta edição, trazemos um furo sobre esse tema, caro a SUMAÚMA. A repórter Claudia Antunes, que, em fevereiro deste ano, pôs na pauta da imprensa brasileira e global a discussão sobre a exploração de petróleo na foz do Amazonas, contou com exclusividade que a área técnica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) recomendou agora negar a licença para o empreendimento. A Petrobras precisa da autorização do órgão ambiental para furar um poço em busca de petróleo no chamado bloco 59, a cerca de 160 quilômetros de Oiapoque, uma região de espécies endêmicas ameaçadas e pouco estudadas. O parecer técnico serve para embasar a decisão do presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, sobre a permissão de exploração.

Em outra reportagem, agora sobre Belo Monte – o teste ambiental em que os governos petistas do passado foram reprovados –, Claudia relata como o Território Ribeirinho, aprovado em 2019 para compensar a população tradicional que perdeu suas terras com a construção da hidrelétrica (e que até hoje não foi criado), agora é alvo de uma ação política orquestrada entre a Norte Energia, empresa concessionária, políticos de extrema direita no Congresso e ruralistas da região de Altamira para evitar que ele saia do papel.

Completamos a edição com uma reflexão da psicanalista Ilana Katz, especializada em infância e doutora em educação. Ilana escreveu um artigo sobre como a violência contra a escola é também uma tentativa de esvaziar os espaços de educação depois dos ataques dos últimos anos. É preciso aprender com os povos originários a construir pertencimento comunitário para sermos capazes de proteger a escola.

É preciso aprender com os povos originários – e com quem defende a floresta – a construir um novo mundo.

Um mundo repleto de vida a todas, todos e todes.

Talita Bedinelli
Cofundadora e editora de SUMAÚMA


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

Indígenas marcham no Acampamento Terra Livre 2023. Foto: Matheus Alves/Sumaúma

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