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Em Medicilândia, um dos municípios mais desmatados do Brasil, ‘gente de fora vai para morrer’ e assassinos tentam reviver. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA

Era o plano perfeito. Depois de ter seu rosto, ainda jovem, estampado nos jornais por ter matado um dos maiores defensores da Amazônia no Brasil, Darci Alves Pereira resolveu retomar a vida com outro nome e uma personalidade inventada. O assassino confesso de Chico Mendes virou “pastor Daniel”, mudou-se para um pequeno município de 27 mil habitantes na Transamazônica, no estado do Pará, e entrou para a política. Em Medicilândia, cidade que leva no nome uma homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici, camuflou-se entre os seus – destruidores da Amazônia.

Um entre muitos, negociava bois e vacas, cacau e terra. Nos intervalos, liderava cultos de uma igreja falida. Imagem perfeita do bolsonarismo ruralista que cresceu nos últimos anos, sua nova vida velha o colocou na presidência local do PL, partido do extremista de direita Jair Bolsonaro. Virou pré-candidato a vereador nas eleições deste ano. Dava, talvez, um dos primeiros passos de uma trajetória que poderia acabar no Congresso Nacional, em Brasília, não fosse o site ((o))eco mostrar ao mundo que “pastor Daniel”, líder do partido de direita na cidade, e Darci Alves, assassino de Chico Mendes, eram a mesma pessoa.

Darci (à dir.) foi condenado pelo assassinato de Chico Mendes ao lado do pai, Darly. Depois, virou pastor em Medicilândia. Fotos: AFP/Facebook

O repórter Bruno Abbud e o fotógrafo Christian Braga estiveram em Medicilândia em abril e reconstruíram para SUMAÚMA a transformação de Darci em “pastor Daniel”. Na cidade em que “gente desconhecida vem de fora para morrer”, o homem que interrompeu a luta do líder seringueiro foi para reviver. E teve passe livre para isso numa Amazônia onde assassinos de corpos-gente e de corpos-floresta se misturam. Numa das cidades mais desmatadoras do Brasil, onde Bolsonaro teve quase 7 de cada 10 votos na última eleição.

Tirado à força do armário de “cidadão de bem” pela imprensa, Darci acabou expulso do PL por um Valdemar Costa Neto que não pode pisar em falso. O dono da principal legenda de direita do país, que abriga o ex-presidente extremista, tem suas próprias pendências com a Justiça. Condenado – e depois perdoado – por envolver-se num dos maiores escândalos de corrupção do Brasil, o Mensalão petista, ele agora é investigado por suspeita de ajudar a orquestrar uma tentativa de golpe que perpetuaria Bolsonaro no poder com a ajuda de militares, em 8 de janeiro de 2023.

Em seu rincão na Amazônia, Darci é apontado por seus vizinhos como um dos possíveis financiadores do ataque à democracia. Ele esteve com sua mulher em manifestações pró-golpe e, na véspera do 8 de janeiro, vendeu muitos bois e vacas, segundo contam por lá. “Dizem por aqui que apoiou as manifestações pró-golpe com 60 mil reais. Outros falam em 30. O fato é que nesse período pós-eleição eles venderam muito gado”, relataram moradores da cidade a Bruno e Christian. Em todo o país, pessoas associadas ao agronegócio são investigadas por suspeita de apoio à tentativa de golpe. Darci nega esse e os outros crimes, inclusive o assassinato de Chico Mendes, que havia confessado em detalhes à polícia na época.

Medicilândia e Brasília estão a mais de 2 mil quilômetros de distância, mas são ligadas por um fio invisível. O fio da morte. A elite grileira de cidades como Medicilândia depende da elite política de Brasília para continuar destruindo e lucrando. Com frequência, são a mesma elite. A Brasília da extrema direita, que deixou por ora a Presidência mas povoa o Congresso Nacional, depende também de cidades como Medicilândia, da destruição da floresta e da eliminação das vidas que atrapalham o caminho da ganância para perpetuar os seus clãs de poder. São duas pontas que se retroalimentam. Não era à toa que o bolsonarismo pretendia “passar a boiada”.

Com a inelegibilidade de Bolsonaro, a Amazônia está em disputa. E garantir os palanques municipais será importante para as eleições presidenciais de 2026. Quem controla a política local controla esses palanques. Políticos experientes como o ex-comunista Aldo Rebelo, atualmente secretário de Relações Internacionais da prefeitura de São Paulo, sabem disso. Entre o final de 2022 e o início de 2023, ele fez base em Altamira, no Pará, um dos municípios mais desmatados do país, para costurar alianças com grileiros e defender garimpeiros ao longo da Transamazônica. Dedicou-se a palestras em diferentes estados da Amazônia, mas também marcou presença em clubes militares no Sudeste. No mês passado, o ex-comunista, que defende um projeto nacionalista “agromilitar”, lançou um livro sobre a Amazônia no qual seguiu sua cruzada sem provas contra organizações não governamentais nacionais e estrangeiras que atuam na floresta para proteger os seres humanos e mais-que-humanos. Contou no lançamento com a presença de Jair Bolsonaro e de um de seus principais braços militares na época da Presidência, o general reformado Eduardo Villas Bôas.

Em sua cruzada ‘agromilitar’, o ex-comunista Aldo Rebelo lançou livro sobre a Amazônia e recebeu o extremista de direita Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução Youtube TV 22

Esse mesmo fio da morte conecta ainda Medicilândia e Brasília ao Sul do Brasil. O Rio Grande do Sul sofre há mais de um mês com um dos principais eventos climáticos extremos já ocorridos no país. As vítimas são pessoas como o cacique Timóteo Karay e seu sobrinho Pablo, que contaram a SUMAÚMA como sua aldeia Guarani foi dizimada pelas águas do Guaíba e todos perderam tudo, menos a terra, de onde não podem sair nem mesmo para um abrigo público: precisam enfrentar o risco de morrer afogados para não ficar sem o chão – que pode ganhar prédios ou ir parar nas mãos do agronegócio. São vítimas, também, as centenas de mais-que-humanos resgatados da morte por afogamento pela voluntária Isis Pacheco Brancher, retratada nesta edição por Pablito Aguiar, repórter-quadrinista.

O que acontece em cidades como Medicilândia afeta pessoas como o cacique Timóteo e Pablo, como os mais-que-humanos salvos por Isis, e o meio milhão de pessoas desalojadas por uma chuva que não para de cair em um estado despreparado para a nova realidade climática provocada por uma minoria dominante de humanos. A bala de famílias como a de Darci ajuda a agravar eventos como esse. O fogo colocado por eles na floresta para dar lugar a pasto também modifica o clima. A destruição da Amazônia não fica só na Amazônia.

Darci acabou expulso do PL, mas parece não ter desistido da política. Ao repórter Bruno Abbud afirmou estar sendo procurado por “vários partidos”. Não é de duvidar que sua nova velha fama agora o cacife até para cargos maiores nas eleições municipais de outubro. Para parte da extrema direita brasileira, matar quem defende a floresta é o mesmo que matar a floresta: apenas parte do negócio.

As eleições municipais deste ano serão ainda mais cruciais para o nosso futuro. A tragédia do Sul nos mostra que não temos mais muito tempo para conseguir desacelerar o colapso climático que já chegou. A Amazônia é chave para isso e, por esse motivo, seus municípios não podem continuar nas mãos dos grupos de poder que operam a grilagem no país, que fazem as leis que ajudam a acabar com o clima, que financiam golpes contra a democracia para perpetuar a destruição impunemente.

A reportagem sobre Darci e Medicilândia dá início em SUMAÚMA à cobertura dessas eleições municipais. Nos próximos meses, vamos contar como a política local opera na Amazônia e como ela está conectada para muito além dos limites das próprias cidades. Em SUMAÚMA, acreditamos que a democracia brasileira, ainda tão recente, está incompleta. Ela precisa incorporar todas as pessoas humanas e mais-que-humanas e suas futuras gerações. Em 2024, o que está em voto é a própria vida – a dos seres que já nasceram e a dos que ainda vão nascer.

Reportagem em quadrinhos de Pablito Aguiar conta a história dos resgates de mais-que-humanos na enchente de Porto Alegre


Texto: Talita Bedinelli
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Editora de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum

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