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A capitoa Miriam Tembé diz se sentir prisioneira dentro da Aldeia I’Ixing, onde Indígenas ergueram um muro em busca de proteção. Foto: Anderson Barbosa/ SUMAÚMA

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Beirando a estrada de chão batido de Vila Socorro, a 20 minutos do distrito de Quatro Bocas, em Tomé-Açu, nordeste do Pará, um muro de tijolos sem reboco, com portão eletrônico e vigia na entrada, guarda as famílias Tembé da comunidade Indígena Tenetehara I’ixing.

Guarda e prende. “É assim que eu me sinto: prisioneira dentro da minha própria aldeia.”

A parte da frente do território da capitoa Miriam Tembé virou um cativeiro murado e monitorado por câmeras, situação imposta pelo cerco violento do agronegócio de dendê que se instalou nas terras de ocupação ancestral do Vale do Acará. Na parte dos fundos ainda não há muros. E restam a Floresta e os Igarapés.

“Para nós, território é liberdade. É por isso que a gente luta. Fui obrigada a colocar esse muro”, lamenta a capitoa da Aldeia I’ixing, que também é presidenta da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará (AITVA). Em dezembro de 2023, dentro de sua terra, a liderança indígena afirmou a SUMAÚMA que era vigiada. “Semana passada, um drone estava aqui no portão, voando em cima de casa. É uma perseguição constante.”

O muro começou a ser erguido pelos Indígenas quatro meses antes, em agosto, logo depois de quatro jovens Tembé terem sido baleados. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e as associações Indígenas e Quilombolas locais denunciaram publicamente seguranças do Grupo Brasil BioFuels (BBF), gigante do cultivo de palma, como responsáveis pelos disparos. Eles foram vistos atirando por um grupo de Indígenas. Tropas da Força Nacional de Segurança Pública foram enviadas à região após os ataques. A Polícia Federal abriu um inquérito, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), que tramita em sigilo. O objetivo, diz o MPF, é “investigar a prática de tentativa de homicídio doloso”, além de “outras condutas supostamente criminosas, ocorridas no contexto do histórico conflito entre a Brasil BioFuels e os povos originários da região”. Em abril de 2023, outro ataque, registrado em Boletim de Ocorrência, já havia deixado três Quilombolas feridos. Mais uma vez, agentes armados da empresa foram apontados pela comunidade como responsáveis.

Entrada do Grupo BBF, em Tomé-Açu (à esq.), e pichações contra a empresa em uma antiga fazenda retomada pelo quilombo de Amarqualta. Fotos: Anderson Barbosa/SUMAÚMA

O Vale do Acará é um território que reúne diversos povos da Amazônia, localizado entre os municípios de Acará, Bujaru, Concórdia do Pará, Tailândia e Tomé-Açu, estes banhados pelos Rios Acará, Acará-Mirim e Guamá. Há registros sobre uma antiga ocupação de Indígenas Turiwara no Alto Acará em 1775 e em 1898, encontrados pelo professor Elielson Pereira da Silva, da Universidade Federal Rural da Amazônia. Os antepassados de Miriam Tembé fazem morada nesse chão pelo menos desde seus trisavós, que vieram das bandas do Rio Gurupi. Quilombolas e Ribeirinhos também vivem e têm histórias plantadas nessa mesma terra há gerações.

Mas, nos anos 70, a região passou a ser ocupada por grileiros que se apropriaram das terras. Depois, vieram as grandes empresas de palma, como a Agropalma, que desde os anos 80 acumula terras nesse pedaço da Amazônia. É da palma que se extrai o óleo de dendê, usado na produção de alimentos, cosméticos e biocombustíveis. Nos últimos 20 anos, o governo federal passou a incentivar a produção de biodiesel, o que levou a um avanço das plantações na região. Era como se não houvesse comunidades tradicionais ali. Os povos foram expulsos, divididos ou espremidos em porções dos territórios. Parte de suas áreas passou a ser infestada por dendezais, que lá permanecem como intrusos. Algumas plantações acabaram sobrepostas a Terras Indígenas e Quilombolas e o conflito pela disputa das terras escalou. A partir de 2020, afirmam os moradores, a situação piorou. Eles relacionam o aumento dos ataques com a expansão da BBF na região, que naquele ano comprou da Vale a empresa Biopalma, criada em 2007.

No limite dos municípios de Tomé-Açu, Acará e Tailândia, há trechos em que o deserto de dendê — a terra sem vida onde impera a monocultura — parece não ter fim. Surgem corredores intermináveis de palmeiras de dendê, com seus troncos marcados por cicatrizes. A paisagem é tão repetitiva que é fácil se perder no meio daquelas fileiras de dendezeiros infindáveis.

Entre esses caminhos tomados pelas empresas, há pelo menos oito Terras Indígenas Tembé e Turiwara e quatro comunidades Quilombolas que lutam para ter seus territórios homologados ou ampliados. Diante da morosidade do Estado, eles veem as empresas de palma avançar cada vez mais sobre a morada de seus ancestrais e poluir seus Rios e Igarapés. Como resposta, algumas comunidades passaram a fazer o chamado processo de retomada das áreas — quando reocupam a terra ancestral para pressionar a decisão do poder público sobre a titulação. As empresas de dendê afirmam que são as donas das terras e pedem a reintegração de posse das áreas ocupadas, mas apresentam aos órgãos públicos uma documentação insuficiente para comprovar a titularidade.

Valas abertas entre fazendas de dendê e a margem do Rio Acará, em Tailândia. Os buracos, perigosos para os animais, cortam o acesso de Indígenas e Quilombolas ao rio para pescar e, em dias de chuva, acumulam agrotóxicos. Fotos: Joaquim dos Santos

Nos últimos 13 anos, quatro Indígenas e cinco Quilombolas foram assassinados nessa disputa, segundo um levantamento feito pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e atualizado por SUMAÚMA.

O caso mais recente foi a execução do Indígena Turiwara Agnaldo da Silva, em novembro de 2023, no município de Tailândia, cujo inquérito na Polícia Federal tramita em sigilo.

‘Morra um, morram dois, morram três, não vamos correr

As dores de muitas gerações cabem nas remadas do Quilombola Lucivaldo da Silva Tavares, de 55 anos. Ao sair do Rio Acará e entrar no estreito Igarapé Turé, ele passa a conduzir a rabeta lentamente rumo ao antigo engenho, onde o bisavô escravizado trabalhou. “Mestre, a dor é grande. Você não sabe. Tem hora que a gente fala e dá vontade de chorar. O que nós já passamos no nosso lugar…”

Está tudo ali. Na mata, nas águas, na memória. O Quilombola se lembra de um castanhal derrubado por grileiros, de pistoleiros que o ameaçavam e também a seu irmão, de quando incendiaram a casa de seu filho, dos parentes que tombaram nessa guerra. Um deles foi Nazildo dos Santos Brito, primo de Lucivaldo e liderança da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta), executado de tocaia em 2018. “Morra um, morram dois, morram três, nós não vamos correr. É nosso. O senhor vai correr da sua casa?”, indaga ele.

O Quilombola Lucivaldo Tavares conduz sua rabeta pelo Rio Acará até o antigo engenho onde seu bisavô foi escravizado. Foto: Anderson Barbosa/SUMAÚMA

O mapeamento das violências contra as comunidades tradicionais por causa da guerra do dendê, feito pela Associação Brasileira de Antropologia, pontua, além dos assassinatos, outros fatos e agressões iniciados em 2007. A lista é longa: perseguição e repressão por seguranças patrimoniais das empresas e pelas polícias Civil e Militar do Pará; tentativas de criminalizar e difamar Indígenas e Quilombolas, com mais de 800 boletins de ocorrência feitos pela BBF; reintegrações de posse e artifícios processuais concedidos por autoridades que não podem atuar em casos de conflitos agrários; fragilidade da proteção a defensores de direitos humanos.

Em agosto do ano passado, depois de os Tembé terem sido alvo de tiros, a Associação Brasileira de Antropologia pediu às autoridades federais e estaduais uma apuração sobre a atuação de milícias na região e a suspensão das licenças da vigilância patrimonial armada das empresas de dendê, além do reconhecimento dos direitos territoriais das populações tradicionais.

Por causa dos conflitos, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos fez uma série de recomendações ao governo federal, ao governo do Pará, a órgãos ligados à Justiça, a bancos — incluindo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — e ao próprio Grupo BBF. O documento recomendava, entre outros pontos, que a Brasil BioFuels cessasse “imediatamente o uso indiscriminado de armas letais por suas forças de segurança privada”. Pedia, ainda, a retirada da autorização de funcionamento da empresa MTS Segurança, que prestava serviço à produtora de palma, a troca das forças policiais de Tomé-Açu e Acará e a suspensão de financiamentos e empréstimos à empresa.

Ao Ministério da Justiça e Segurança Pública  foi recomendada a criação de um gabinete de crise, com a participação de diversos órgãos públicos. Uma reunião interministerial ocorreu ainda em agosto de 2023 para definir ações. A equipe do ministério determinou a participação de vários órgãos — Polícia Federal,  Advocacia-Geral da União, Secretaria de Patrimônio da União, entre outros — na apuração de situações de violência contra Indígenas Tembé, Turiwara e Quilombolas de Nova Betel. Representantes do Departamento de Mediação de Conflitos do Ministério do Desenvolvimento Agrário visitaram a região para negociar um diálogo entre as forças de segurança, o sistema de Justiça e as lideranças. Em novembro, o caso foi incluído na agenda de missões da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo. Recentemente, em maio, essa comissão esteve no Vale do Acará para ouvir depoimentos dos povos afetados. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não respondeu aos pedidos de SUMAÚMA com informações sobre a visita da comissão e novas providências sobre os conflitos.

Como os conflitos não cessaram, em junho deste ano o Ministério da Justiça autorizou novo envio da Força Nacional de Segurança à região. Os agentes permaneceram no local até o fim de agosto. “O apoio da Força Nacional de Segurança Pública no Vale do Acará começou em agosto de 2023, atendendo a um pedido da Procuradoria da República. A ação foi autorizada após manifestação da Polícia Federal e anuência do Governo do Estado do Pará, com o objetivo de garantir a proteção e segurança dos povos Indígenas Tembé e Turiwara, além das comunidades Quilombolas da região”, informou o Ministério da Justiça, em nota enviada a SUMAÚMA. O envio também tinha como objetivo “proteger os funcionários, contratados e terceirizados, da empresa Brasil BioFuels (BBF) nos municípios de Tomé-Açu e Acará, devido ao agravamento dos conflitos territoriais no nordeste paraense, que são históricos, complexos e progressivos”.

Os conflitos que envolvem Indígenas e Quilombolas da região com o Grupo Brasil BioFuels, a maior empresa de óleo de palma das Américas,  são significativos. Um relatório com dados de 2023 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostra que 26% dos casos (5 de um total de 19) de violência contra Indígenas no Pará tiveram relação com a guerra do dendê ou envolvimento direto da BBF. Os casos de violência englobam abuso de poder, ameaças, ​​racismo, discriminação étnico-cultural e tentativas de assassinatos. Atualmente, 637 Indígenas vivem nos municípios de Tomé-Açu, Acará e Tailândia, todos no Pará, segundo dados do Censo populacional de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Relatos dos povos tradicionais feitos ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos apontam ainda abusos da segurança privada do Grupo BBF. O Ministério Público do Pará, em abril de 2023, pediu a prisão do diretor de segurança, Walter Ferrari, e do proprietário da Brasil BioFuels, Eduardo Schimmelpfeng Coelho, suspeitos de comandar ação com características paramilitares em uma comunidade rural do Acará, o Vale do Bucaia, em outubro de 2021. Na ocasião, 11 pessoas foram agredidas ao amanhecer com chutes, golpes de cassetete e práticas de tortura. Segundo o promotor de Justiça Emério Costa, em conflito pela posse da terra, Ferrari e Coelho “ordenaram a derrubada de casas e barracões de todos os integrantes da comunidade”. Em junho de 2023, o juiz Giordanno Grilo, da Vara de Acará, recebeu a denúncia, não acatou o pedido de prisão, por entender que se tratava de uma medida excepcional e extrema, mas advertiu que a decisão poderia ser revista diante de qualquer fato novo.

Sem terra, sem lei

Além das disputas em Territórios Indígenas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconhece casos de sobreposição de fazendas de dendê entre as terras reivindicadas pela BBF e os territórios Quilombolas da Amarqualta e de Nova Betel. “O levantamento fundiário realizado por técnicos do Incra na área identificou que as sobreposições ocorrem em grande parte em glebas públicas federais e terras devolutas do estado do Pará”, informou o órgão. O Incra pontuou ainda que os ocupantes foram notificados e que os documentos apresentados estão em análise. A BBF, provocada pela Ouvidoria Agrária do Tribunal de Justiça do Pará, em 2022, não apresentou documentação fundiária de cadeia dominial, ou seja, a relação dos proprietários do imóvel rural desde a origem.

O Instituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão fundiário estadual, também admite a sobreposição de terras entre territórios tradicionais de Quilombolas e áreas das empresas de dendê. Os conflitos, informou o Iterpa em nota a SUMAÚMA, tramitaram na Vara Agrária de Castanhal. Segundo o órgão fundiário do Pará, tal situação paralisou “o processo de titulação, uma vez que o Instituto também depende das soluções judiciais para orientar a sua atuação administrativa”. Hoje o processo tramita na Justiça Federal, pelo fato de envolver direitos Indígenas e de Quilombolas numa reintegração de posse.

Monocultura do dendê invade o Vale do Acará há décadas, contrastando com a floresta densa e acirrando conflitos fundiários. Foto: Mongabay

Questionada sobre a recomendação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos de cancelar Cadastros Ambientais Rurais (CAR) sobrepostos a comunidades tradicionais na região do Acará, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) respondeu a SUMAÚMA de maneira genérica, citando a suspensão de 5.746 CARs  em Terras Indígenas do estado além de 192 cadastros sobrepostos a territórios Quilombolas. Os dados não envolvem só as fazendas de palma, e são sinais flagrantes da grilagem de terras na região.

Decisões judiciais de 2018 já sinalizaram isso. A Justiça do Pará, em duas instâncias, reconheceu como falsos e nulos os registros imobiliários de duas áreas ocupadas pela Agropalma no Acará, as fazendas Roda de Fogo e Castanheira. A empresa afirma que todas as suas terras “foram adquiridas de boa-fé de seus legítimos proprietários e possuidores, inclusive com a confirmação da documentação pelos órgãos competentes no momento da aquisição”. Em nota enviada à reportagem, a empresa diz ainda que “nunca foi condenada por grilagem de terra”, mas admite que, “infelizmente, décadas após a compra, foram constatadas falhas cartoriais que comprometeram a documentação fundiária de alguns imóveis”. A Agropalma diz que buscou a regularização das fazendas, pois pagou um valor de mercado pelas áreas e acreditava que a documentação era idônea.

I de Indígena, R de Ribeirinho, Q de Quilombola

A guerra do dendê também tem provocado fissuras e conflitos entre os povos tradicionais. Na madrugada de 30 de dezembro de 2023, a capitoa Miriam sofreu um atentado dentro da própria aldeia. A comunidade I’ixing foi invadida por pistoleiros e Indígenas da vizinhança que, segundo a Associação Indígena Tembé do Vale do Acará, tinham interesse em roubar frutos da palma na área da aldeia para vender. Tiros disparados atingiram o barracão do território e o para-brisa do carro, no lado do carona, onde Miriam costuma se sentar. Quinze minutos antes dos disparos, a capitoa tinha se deslocado do barracão para a sede da I’ixing. Dez dias antes, ela havia denunciado às autoridades as invasões de pistoleiros e Indígenas de outras comunidades na terra I’ixing. Comunicou, inclusive, que tinha chegado a seu conhecimento uma trama para assassiná-la.

Por dois anos, o Estado ignorou o pedido para que Miriam Tembé, com 41 anos de vida, 25 deles na luta pela garantia dos direitos de seu povo, fosse incluída em programas de proteção a defensores de direitos humanos. A capitoa, constantemente ameaçada, só conseguiu ser incluída no Programa de Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), do Pará, em 7 de agosto deste ano, a partir de insistentes pedidos do Ministério Público Federal.

A cultura da palma tenta abalar relações entre parentes, mas é unindo forças que as comunidades tradicionais da região conseguem seguir existindo. Sem ter quem os proteja das ameaças e das invasões de suas terras, os povos formaram uma aliança de resistência, o Movimento IRQ: “I” de Indígenas, “R” de Ribeirinhos, “Q” de Quilombolas. A união começou a ser articulada de forma embrionária em 2015, contra os impactos da Biopalma. A partir de 2022, uma comissão do IRQ passou a atuar pelos interesses coletivos.

A capitoa Adelina Maciel Tembé, mãe de Miriam, preside o Movimento IRQ. Adelina foi a primeira mulher a romper o ciclo de caciques homens no Vale do Acará. Senhora miúda de 68 anos, ela é a principal liderança da Aldeia Cuxiú Mirim, na Terra Indígena Tembé. Capitoa Adelina passou a borduna para a filha seguir seus passos na defesa de seu povo à frente de outra aldeia, a I’ixing, em área retomada pelos indígenas.

“Nossas comunidades tiveram mais consciência de que os problemas são comuns e começaram a se unir para se proteger. Nesse processo de estar mais próximo, houve aprendizagem, houve compartilhamento das dores”, conta o Quilombola Josias Dias dos Santos, o Jota, da comunidade Turé III, presidente da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta). Ele é também vice-presidente do Movimento IRQ. “Trabalhando junto, a gente se fortalece. E tem como aprender uns com os outros, porque tem troca de saberes.”

Josias dos Santos, liderança Quilombola, e Adelina Tembé estão à frente do Movimento IRQ, uma aliança de resistência. Fotos: Anderson Barbosa/SUMAÚMA

Segundo Jota, há representantes de pelo menos 15 comunidades com atuação contínua no Movimento IRQ. Em algumas lutas, outros territórios se juntam, chegando a 25 comunidades. O objetivo da aliança é unir forças para se proteger, buscar direitos e exigir políticas públicas. “É um movimento pelo território e pela vida”, afirma o Quilombola. Indígenas, Ribeirinhos e Quilombolas do IRQ não usam armas de fogo, mas sim bordunas e lanças feitas de madeira. Os parentes armados, faz questão de enfatizar a liderança Quilombola, “não representam o IRQ”. As ações e rumos do movimento são definidos em reuniões quinzenais.

Josias é um homem esguio de 36 anos, e desde os 22 está na luta por sua gente. Além do sangue Quilombola, tem ascendência Indígena, dos Turiwara. Ele faz parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas desde 2022, quando denunciou o assassino de Nazildo dos Santos Brito, ex-presidente da Amarqualta, e passou a ter a própria vida ameaçada. Mesmo assim, não se considera protegido. “Eu sou proibido de ir a Quatro Bocas. Não posso tomar sorvete na praça. Se eu sair, tem que ser num carro que não é meu, tem que ter outro carro para ir junto, com guerreiros acompanhando. É como se eu fosse um fugitivo.”

A erosão dos elos entre os povos

Após o atentado contra Miriam no fim de 2023, o Movimento IRQ apontou os Indígenas Paratê e Marquês Tembé, lideranças da Terra Indígena Turé Mariquita, ligados à Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu (AITTA), como os responsáveis pelo ataque à I’ixing. O movimento sugere haver indícios de que o bando era financiado pela Brasil BioFuels, que prometia comprar deles os frutos roubados. No dia 29 de janeiro, os dois indígenas suspeitos de envolvimento no atentado contra a capitoa foram presos pela Polícia Federal. Eles são investigados, entre outros crimes, por tentativa de homicídio, associação criminosa, milícia privada e posse ilegal de arma de fogo. O advogado Jorde Tembé, que atua na defesa de Paratê e Marquês, afirmou a SUMAÚMA que não há provas concretas sobre a participação dos Indígenas nos casos em que são acusados. Jorde avalia que o objetivo das prisões em massa de Indígenas é desarticular o movimento das comunidades tradicionais e marginalizar lideranças. O advogado disse, ainda, que o conflito interno não teria ocorrido se o Estado cumprisse suas responsabilidades, avançando no processo demarcatório das terras.

“O veneno do capital tem erodido as ações coletivas e colocado em risco a luta dos povos e comunidades tradicionais dessa região. É uma rede de relações que envolve outros agentes políticos e econômicos”, avalia o professor Elielson Pereira da Silva.

No dia 3 de janeiro de 2024, ao procurar a delegacia de Quatro Bocas para denunciar as invasões e ameaças, Miriam Tembé foi pega de surpresa. Numa reviravolta, acabou presa sob a alegação de coação e fraude processual em um enredo paralelo: a morte de seu irmão, Manuel Tembé. O fato ocorreu em outubro de 2023, e o filho da capitoa, Ítalo Maciel, foi considerado suspeito de ter cometido o homicídio. O irmão da liderança Indígena morreu após uma noitada em um bar, em circunstâncias ainda obscuras e sob investigação. Miriam, que nunca havia sido intimada a depor sobre o caso, foi levada para o Centro de Recuperação Feminino, em Ananindeua, na região metropolitana de Belém.

Após a Justiça de Tomé-Açu negar o acesso ao auto de prisão preventiva, o Ministério Público Federal entrou com um mandado de segurança no Tribunal de Justiça do Pará para obter os documentos que justificassem a detenção de Miriam. A capitoa do território I’ixing foi solta no dia 26 de janeiro, mas a Vara de Tomé-Açu a proibiu de retomar a condição de liderança da aldeia. No dia 19 de março, provocado pelo Ministério Público Federal, o tribunal paraense considerou inadequado o afastamento de Miriam da função de capitoa e revogou a decisão do juiz da comarca.

Quando Miriam foi presa, integrantes do IRQ desceram até a I’ixing para impedir que os invasores dominassem as terras. Um novo ataque a tiros dentro da aldeia ocorreu no dia 4 de janeiro deste ano, contra quatro Quilombolas que protegiam o território, sendo uma das vítimas uma adolescente.

Procurado por SUMAÚMA em março, o Grupo Brasil BioFuels disse, por intermédio da assessoria de imprensa, que não se manifestaria sobre os conflitos fundiários no Vale do Acará e atentados recentes. A reportagem enviou um e-mail à empresa com questionamentos, mas nenhum dos itens foi respondido. Numa nova abordagem, em setembro, a empresa também não respondeu ao e-mail nem à mensagem de WhatsApp.

O governo do Pará alega que “novas medidas” estão sendo organizadas, em diálogo com Indígenas e Quilombolas da região, para construir soluções nas áreas de conflito. Em nota enviada a SUMAÚMA, o governo estadual informa que integra o gabinete de crise montado pelo Ministério da Justiça, no ano passado, para discutir a guerra do dendê. O governo do Pará não respondeu aos pedidos de SUMAÚMA sobre uma atualização das visitas na região e suas últimas ações.. Segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, “a troca de comandos das polícias Civil e Militar no município ocorreu de acordo com o revezamento natural dentro das instituições”. Essa troca também foi uma recomendação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

O BNDES afirma que não há nenhum financiamento ou empréstimo em curso para a BBF e que, a partir das recomendações do Conselho Nacional dos Direitos Humanos e após análise interna, “o grupo encontra-se impedido de realizar operações (diretas ou indiretas) com o banco”.

A Funai informou à reportagem que as demandas dos Indígenas por território estão sendo analisadas.

No protesto contra a morte, mais três tiros…

“Viva Belém, a capital da Amazônia, a capital das discussões da mudança climática! Viva o povo da floresta! Viva o povo do Pará!” Sob aplausos, o governador do Pará, Helder Barbalho, encerrou em Belém, em agosto de 2023, seu discurso na abertura dos Diálogos Amazônicos, programação que antecedeu a Cúpula da Amazônia, com a presença de chefes de Estado. No mesmo dia, a cerca de 200 quilômetros dali, em território da Aldeia Bananal, Kauã Tembé, de 19 anos, foi baleado na virilha. As comunidades, movimentos sociais e Indígenas, além do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, afirmam que o ataque foi promovido por seguranças da Brasil BioFuels — o Grupo BBF disputa a posse da terra. Kauã foi levado à capital e submetido a uma cirurgia. O caso está sendo investigado, confirmou o Ministério Público Federal, e também tramita sob sigilo. A reportagem tentou falar com Kauã, mas ele não respondeu aos contatos.

Kauã Tembé, de 19 anos, foi baleado em 2023 num conflito com seguranças da Brasil BioFuels. Foto: Reprodução internet

O então presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, atual vice-presidente, o defensor público federal André Carneiro Leão, estava em Belém. Diante da gravidade do caso, seguiu para Tomé-Açu. Lideranças Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhas aguardavam a chegada da comitiva do conselho quando mais três parentes foram feridos no polo da BBF, em plena luz do dia, enquanto faziam protesto pelo atentado contra Kauã. Segundo relatos da empresa na mídia, os Indígenas invadiram e depredaram o polo. Daiane Tembé foi atingida no pescoço e no maxilar; Erlane Tembé acabou baleada na coxa e no ombro; Felipe Tembé levou um tiro nas costas.

Felipe foi levado ao hospital. Antes de o atendimento médico terminar, a Polícia Civil conduziu o Indígena até a delegacia para prestar depoimento. No caminho até a delegacia, a Polícia Militar do Pará fez outra abordagem, interceptou o carro da Polícia Civil em que estava Felipe e deu ordem de prisão, acusando-o de depredação do patrimônio da empresa, e o levou algemado para o município de Castanhal. “Ele foi preso de forma abusiva, ilegal, porque não havia nada que justificasse a prisão em flagrante. Por isso, nós decidimos atuar também em relação a essa violência policial feita a esse Indígena”, relata o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

O Movimento IRQ seguiu para a frente da delegacia de Quatro Bocas, onde houve manifestação pela liberdade de Felipe. O jovem Tembé foi solto no final daquele mesmo dia e retornou à comunidade.

Daiane Tembé e Felipe Tembé também foram atingidos no conflito, levando o Conselho Nacional dos Direitos Humanos a viajar até a comunidade. Fotos: Arquivo Povo Tembé

Para os três Indígenas vítimas do ataque de agosto, as consequências se prolongaram no tempo. Em novembro de 2023, Daiane Tembé passou por duas cirurgias para fazer um enxerto no rosto. “Hoje eu não amanheci muito bem. Doendo, inchado”, disse a SUMAÚMA, por mensagem de áudio, nove dias após o procedimento.

O então presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos reuniu-se com o secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, Ualame Machado, ainda em agosto de 2023. Fontes consultadas pela reportagem confirmam que houve concordância dos dois lados — União e governo estadual — sobre a crescente violência contra os povos tradicionais desde a chegada do Grupo BBF na região. O defensor André Carneiro Leão pediu à presidenta da Funai, Joenia Wapichana, que fosse acelerada a análise dos pedidos de demarcação e ampliação dos territórios indígenas dessa região conflagrada. Joenia se comprometeu a dar uma resposta.

Sustentável com sangue

Em maio de 2010, no último ano de seu segundo mandato na Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Tomé-Açu para lançar o Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo. “O que nós estamos fazendo aqui é o começo de uma revolução nesta região. Eu peço a Deus para estar vivo daqui a uns sete, oito anos, para poder voltar aqui, para a gente ver o que aconteceu.” O que aconteceu, desde então, foi um acirramento dos conflitos agrários, agravados pela política de não demarcação de terras e violação dos direitos humanos na gestão do extremista de direita Jair Bolsonaro (2019-2022), como lembra um relatório da organização Global Witness.

De acordo com o professor Elielson Pereira da Silva, o projeto da dendeicultura no Pará buscou vender três ideias: “Que essa seria uma região economicamente estagnada, e por esse motivo demandaria investimentos externos; que seria uma região ambientalmente degradada e os responsáveis pela degradação eram os povos; e que seria uma região socialmente empobrecida”. Essa combinação entre o econômico, o ambiental e o social tenta legitimar o projeto desenvolvimentista da palma, explica o professor.

O Vale do Acará, território de ocupação ancestral e onde vivem diversos povos da Amazônia, foi dominado por infindáveis palmeiras de monocultura. Foto: Anderson Barbosa/SUMAÚMA

A propaganda verde da operação agroindustrial exalta a recuperação de áreas degradadas e a produção de combustível com biomassa. Mas, para quem vive nos territórios, sobram rastros de bala e destruição. “Não é possível falar em sustentabilidade quando se derrama sangue dos povos Indígenas”, afirma o defensor público federal André Carneiro Leão. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos recomendou em agosto de 2023 a suspensão do Selo Biocombustível Social concedido à BBF, que certifica a inclusão de agricultores familiares no mercado do biodiesel. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, responsável pela emissão do selo, informou a SUMAÚMA que a empresa AmazonBio, do Grupo Brasil BioFuels (BBF), teve o Selo Biocombustível Social cancelado. O primeiro questionamento da reportagem foi feito em 5 de fevereiro. O aviso de cancelamento do selo só foi publicado no Diário Oficial da União no dia 5 de março de 2024.

Entre 2025 e 2026, o Grupo Brasil BioFuels, junto com a Vibra Energia, antiga BR Distribuidora, promete produzir, do óleo de palma, combustível de aviação — hoje um dos maiores responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa — sustentável e diesel verde. “A BBF está apostando nesse esverdeamento do discurso, que passa pela descarbonização e pela bioeconomia, e por intensificar a repressão, acreditando em uma aliança política com o governo do estado [do Pará]”, avalia Elielson.

Milton Steagall, presidente da BBF, publicou um artigo no jornal Correio Braziliense, em setembro do ano passado, sobre a COP-30, que será realizada em Belém, e a bioeconomia na Amazônia. No texto, o executivo compara o dendê às reservas de petróleo abaixo da camada de sal: “Nosso país tem potencial de ser líder global na produção de óleo de palma. Costumo dizer que temos um verdadeiro ‘pré-sal verde’ no nosso país ainda a ser explorado”.

Mas para as comunidades do Vale do Acará a produção do dendê é insustentável. Elas sentem todos os dias o ar e o solo envenenados pelos agrotóxicos pulverizados nos plantios. Há dez anos, ainda no tempo da Biopalma, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação na Justiça pedindo a realização de perícia científica para medir os impactos dos agrotóxicos no meio ambiente e na saúde das famílias Tembé de Tomé-Açu. Após idas e vindas, em 2022 o Tribunal Regional Federal da Primeira Região acolheu o pedido. O MPF aguarda até hoje o resultado da perícia. As comunidades também sentem e denunciam a poluição das águas dos rios pela tiborna, o resíduo fétido gerado pelas indústrias que esmagam o fruto da palma. “E a gente bebe. Porque de onde bebe se não for daí?”, questiona o Quilombola Lucivaldo da Silva Tavares.

A capitoa da I’ixing tinha 6 anos quando a Terra Indígena Tembé foi declarada, em 1989. Miriam lembra que ainda havia uma Floresta imensa, águas abundantes, fartura e riqueza. Aí veio a ocupação de madeireiros e fazendeiros no entorno, vieram as empresas de palma. Agora, os povos fazem com tijolo e massa um grito por proteção. Mas, quando sobem os muros,  algo no território e em sua gente se perde.

Enquanto Miriam almoçava e conversava com a reportagem de SUMAÚMA, Messias, de 10 anos, rondava a mesa de olho na jarra de açaí. Mais cedo, na manhã daquele domingo de inverno, o pequeno Tembé, filho de Miriam, queria ir pescar no Igarapé. Sozinho, nada feito. “Não tenho coragem de deixar meu filho ir, dentro do próprio território. No passado, a gente saía pra pescar, pegava uma canoa, ia pro Rio, ia pro Igarapé. Nossos pais, nossos irmãos saíam pra caçar, e a gente sabia que iam voltar em segurança. A gente não pode mais fazer isso, porque a gente também está sendo caçado.” No início deste mês, em nova conversa com SUMAÚMA, por videoconferência, Miriam se desconectou de forma repentina. Teve que deixar a sala virtual porque foram ouvidos tiros na comunidade Indígena Tenetehara I’ixing, contou depois.

As vidas caçadas e desmatadas que resistem, ensina o Quilombola Jota, carregam a “brabeza de uma capoeira”, a vegetação que renasce. “Nós somos natureza. Se você derrubar uma área, fizer uma queimada, a vegetação que vem é diferente. Ela não faz aquela sombra, é uma vegetação braba. É jurubeba, é tiririca. Ela é espinhosa. Aquilo ali é um mecanismo da natureza de defesa. Você entra numa Floresta, por baixo das grandes árvores. Mas eu quero ver você entrar numa capoeira, aquela vegetação nova, de um, dois anos.” “Somos natureza e, quando provocados, reagimos.”  O Movimento IRQ é isto: Indígenas, Ribeirinhos e Quilombolas do Vale do Acará virando capoeira.

Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhos carregam a brabeza da capoeira, a vegetação que renasce mesmo após a destruição. Foto: Anderson Barbosa/SUMAÚMA


Reportagem e texto: Guilherme Guerreiro Neto
Edição: Malu Delgado e Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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