Jornalismo do centro do mundo

Liderança indígena dos Awa Guajá, Tatuxa’a leva um tucano para a aldeia junto com as crianças. As penas do pássaro serão usadas em um cocar. Foto: Awa Guajá

A única verdade é que a floresta está sendo assassinada. Anoto isso no meu caderno e ando pelas ruas de Auzilândia, uma cidade com poucos habitantes que parecem ter sido isolados pelo barulho e a poluição de um trem de mineração. Essa cidade também era mata e agora é um lugar feito de calor e detritos: palmeiras magras; algumas raras vacas brancas, pacíficas e ao mesmo tempo de aparência demoníaca, pobres animais, comendo o capim que sobreviveu por entre a terra seca e revolvida; e homens, mulheres e crianças esquecidos à margem de negócios cada dia mais prósperos  – campos de soja, pecuária e mineração.

Aqui no Maranhão, estado do Nordeste do Brasil, 80% da floresta já não existe. Isso significa muita coisa, mas principalmente que 20% da mata ainda resiste, respira, pulsa, sonha, cria e existe. Ela é bonita, feroz e avassaladora; cheia de folhas, cipós, raízes, fungos, penas, escamas, pele, presas, ferrões, cheiros, zumbidos, arbustos, suor, cantos, gritos, sangue, corações pulsando e olhos.

A floresta viva corre perigo enquanto a pós-verdade que causa seu desaparecimento  – o agronegócio  – anuncia muitas exportações e dólares, ao mesmo tempo em que agrava a pobreza e a violência.

Auzilândia fica a 350 quilômetros de São Luís, a capital do estado, esta uma ilha que é frequentemente inundada porque, durante sua construção, uma imensa faixa de mar foi coberta por cimento. A cidade abriga um dos maiores portos da América do Sul e é para lá que são transportadas as colheitas que saem dos campos que antes eram mata, em um trajeto desviando das casas coloniais malconservadas. Os caminhões passam chacoalhando e deles caem grãos de soja que estão a caminho da China para alimentar porcos criados de forma intensiva em granjas industriais. Na beira da estrada, no calor escaldante, famílias inteiras com vassouras e sacolas juntam os grãos e os levam para casa para comer.

O agronegócio é dono do poder no Maranhão, dominando a maioria das bancadas legislativas, dos supermercados, dos shopping centers e dos meios de comunicação. O agronegócio é apoiado por milícias (grupos armados) e outros criminosos da região e de São Paulo, Mato Grosso, Estados Unidos e Argentina. São redes poderosas que escondem a destruição da floresta e de suas muitas vidas com a força do fogo e das escavadeiras.

Hoje, 11 de setembro de 2022, enquanto escrevia este artigo, Antônio Cafeteiro Silva Guajajara, que morava na Terra Indígena Arariboia, foi morto a tiros. Foi a terceira pessoa desse grupo étnico a ser assassinada nos últimos 10 dias.

Esses homens agora mortos faziam parte do grupo indígena Guardiões da Floresta. Eles vigiam e defendem os 20% restantes da mata. Resistem. Alguns morrem porque o que está acontecendo aqui e no resto do planeta é uma guerra travada não de um país contra outro, mas do empresariado rural e das corporações contra a natureza e, portanto, contra as pessoas que vivem nela. É uma guerra pelo domínio e o controle da terra, de suas forças vivas e ecossistemas, que, nas planilhas de Excel, são chamados simplesmente de “recursos”. Uma guerra pela posse de cada árvore transformada em madeira, cada subsolo transformado em metal, cada metro de terra de onde foram tirados animais, flores, frutos e idiomas nativos. Uma terra esvaziada de si mesma, despedaçada e posta para produzir.

Quando você joga a palavra “Maranhão” no Google, duas coisas aparecem: as opiniões dos economistas, para quem esse modelo de produção parece ser um sucesso, e os Lençóis Maranhenses, um deserto de dunas brancas que é inundado por chuvas 3 meses por ano, formando lagoas verdes e azuis com peixinhos graciosos. O turismo explora essa região desértica, o único território que sobrevive à voracidade que consome árvores, animais e pessoas, mas ignora o resto do estado. Os turistas também não estão cientes nem da floresta destruída nem da floresta viva e da resistência dos povos indígenas.

Os Awa Guajá vivem nessa mata ameaçada. Cerca de 520 homens e mulheres que, apesar de tudo, se protegem (e nos protegem) da extinção. Desde a década de 1970 eles foram forçados a entrar em contato com o mundo branco e a viver em 4 aldeias às margens de rios caudalosos, entre enormes árvores, macacos, tartarugas, cobras, aranhas, flores, borboletas e invasores.

Entrada da comunidade rural de Auzilândia, no estado do Maranhão. Foto: Soledad Barruti

O Maranhão é um estado gigantesco, do tamanho da Noruega. Os caminhos para o interior são cheios de buracos, sem garantia de chegada ao destino. Por isso, o transporte mais seguro é o trem da Estrada de Ferro Carajás, operado pela Vale. A mineradora chegou aqui há cerca de 50 anos, durante a ditadura militar, com uma missão de ordem e progresso que resultou em muitas mortes e desflorestamento. Com o trem da Vale chegaram homens que hoje se chamam empresários, mas que, em sua maioria, obtiveram o título de dono se apropriando da terra que era indígena e matando muitos que aqui viviam. Desde então, o trem atravessa a floresta abrindo caminho para doenças e matadores de aluguel. Espalha resíduos de poeira tóxica e perturba a vida de 130 povoados e comunidades.

Pego o trem às 7 horas da manhã na estação Anjo da Guarda, nos arredores de São Luís. O vagão está cheio, limpo, e o ar condicionado é forte. Devido ao calor do lado de fora, os vidros das janelas fechadas estão cobertos por gotas de umidade, embaçando as tristes imagens da floresta atacada: árvores caídas, rebanhos de vacas e muitos vagões feitos de ferro vermelho parados na beira da estrada. Embora exista um serviço para o transporte de passageiros 3 vezes por semana, a finalidade dos 10.756 vagões e 217 locomotivas que percorrem 900 quilômetros por dia continua a ser a mesma de quando a ferrovia foi inaugurada: transportar o material extraído da maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, Carajás, no estado vizinho do Pará, até o porto de São Luís. De lá, a carga é levada principalmente para a China.

Placa de boas-vindas na entrada da comunidade rural de Auzilândia, no estado do Maranhão. Foto: Soledad Barruti

Meus companheiros de viagem estão calados, com posturas humildes, como se estivessem viajando de favor. São trabalhadores, avós e famílias carregadas de bagagens. De vez em quando, abrem uma marmita, olham pela janela ou espiam os televisores que estão passando no volume máximo o filme infantil Alvin e os esquilos 3, em que os personagens visitam uma floresta.

São 5 horas de viagem até Alto Alegre do Pindaré, cidade de escala rumo ao meu destino na Terra Indígena.

O itinerário e o encontro com os Awa Guajá foram possíveis graças à ajuda de Inês, cujo nome não é realmente este mas não posso revelar porque a colocaria em risco. Defender os indígenas durante a presidência de Jair Bolsonaro é perigoso, mesmo para quem ocupa cargos públicos: foi o que aconteceu com Bruno Pereira, integrante da Fundação Nacional do Índio (Funai) assassinado este ano no Vale do Javari com o jornalista inglês Dom Phillips.

A estação Alto Alegre do Pindaré fica em um pequeno morro cercado de grama. Há cavalos e cachorros magros por perto e corvos pretos voando pelo céu. O calor é úmido e pegajoso.

A cidade é formada por pequenas colinas de casas humildes e um centro de cerca de 5 quarteirões vendendo roupas e bugigangas baratas. Em muitas casas, há gaiolas com pássaros coloridos, canteiros de flores e motocicletas. O mais surpreendente para um lugar que não tem nada de turístico são os 10 hotéis criados para abrigar os trabalhadores da Vale.

Estação de trem em Alto Alegre do Pindaré. Foto: Soledad Barruti

A empresa, que somente em 2021 gerou R$ 24 bilhões a mais que o PIB de todo o Maranhão (R$ 121 bilhões contra R$ 97 bilhões, segundo o último comunicado oficial, em 2019), traz todos os seus trabalhadores de fora. São homens e mulheres jovens que enchem a cidade vestidos com macacões cinza e azul. Durante o dia, ocupam os restaurantes de comida por quilo e de vez em quando compram alguma coisa no comércio local.

Eu me hospedo no hotel Betsan, em frente à praça principal, que é apenas um quadrado de cimento. Em um arco, sob o sol, um pássaro engaiolado canta desesperadamente. O hotel tem 8 quartos modestos ocupados em sua maioria por trabalhadores da Vale. De acordo com a recepcionista Karen, sou uma hóspede incomum. “Que engraçado você estar aqui!”, ela diz.

Maicon que será meu motorista está hospedado em outro quarto. Um homem de 36 anos, inteligente e corpulento, pai de 2 filhos que estão em São Luís. Maicon também trabalhou como funcionário terceirizado da Vale, dirigindo caminhões pelo país, mas agora é motorista da Fetaema, federação que representa 7 mil trabalhadores rurais maranhenses que estão sob constante ameaça no campo.

Conheci Maicon graças a Diogo Cabral, que é advogado da federação e sabe mais do que qualquer outra pessoa sobre os conflitos nessas terras. Sempre trabalham juntos: Maicon percorre milhares de quilômetros para que Diogo chegue até as pessoas que querem ficar na floresta, no rio e nas áreas rurais e correm perigo por isso. Diogo tem 38 anos, olhos da cor do rio, raízes indígenas do povo Tapuio e uma suavidade ao falar que contrasta com a intensidade de seu trabalho. Maicon também é sensível, curioso e acredita que um mundo melhor pode surgir a qualquer momento. Ele e Inês são pessoas que nos devolvem a esperança.

Viajar com a ajuda deles é como carregar um amuleto da sorte.

Além de mim, não há outros estrangeiros em Alto Alegre. As pessoas acham que sou algo exótico, me apontam, pedem fotos, convidam para bater papo. Parece um lugar tranquilo.

“Mas não quero que você fique confiante demais”, diz Maicon enquanto jantamos algumas das únicas coisas que vendem por aqui: feijão, arroz, tomate e salada de alface; um pouco de carne, peixe e tripas de porco. “Também há prostituição, roubo e drogas. Muita gente de fora, solitária e procurando diversão.”

Trem da maior mina de minério de ferro do mundo, Carajás. Foto: Soledad Barruti

A primeira vez que conversei com os Awa Guajá foi durante a pandemia, quando decidiram fazer uma denúncia pública sobre a falta de ação por parte do governo diante da covid-19. Fiquei fascinada com vários aspectos da vida deles. Por exemplo, eles são caçadores-coletores, e praticam relacionamentos interespécies como amamentar filhotes de diferentes animais que adotam como se fossem mais um filho até se tornarem adultos. Além disso, são nossos contemporâneos, mas comem, criam e vivem de maneira radicalmente diferente. Outro fato curioso é que eles têm parentes isolados, cerca de 100 pessoas vivendo na mata sem vínculo com o mundo branco. Os grupos indígenas denominados “de recente contato”, ou seja, os que foram obrigados a sair e negociar com o “nosso” mundo, cuidam dos que estão isolados enquanto cuidam de si mesmos e da floresta para todos.

Nos últimos anos, os Awa Guajá se organizaram internamente e estabeleceram líderes. Conseguiram algumas motos e quadriciclos motorizados para uma movimentação mais rápida e telefones celulares para pedir ajuda, apesar de os números destes serem mudados com frequência por falta de pagamento. Construíram também postos de vigilância nos locais mais altos da floresta e exigiram um sistema de educação que os ensine rapidamente o português – idioma no qual sua sentença de morte é escrita repetidas vezes.

Awa Guajá protestam por direitos na educação. Foto: Awa Guajá

A escola, porém, tornou-se um lugar de conflito. Apesar da legislação e das normas que garantem uma educação diferenciada, específica, bilíngue, intercultural e comunitária, essas diretrizes não são respeitadas. Os Awa Guajá quiseram aprender para saber como funciona o Estado e seus direitos e também para registrar a própria cultura antes que os mais velhos morram, mas agora entendem que o sistema educacional não forma pessoas capacitadas para isso.

Exceto pela vontade de algum outro professor que decidiu acompanhá-los com amor e cuidado, o sistema educacional é como se fosse mais um trator. Tudo que os indígenas propõem recebe respostas negativas: aprender na selva, ter professores indígenas, aprender sobre nosso mundo sem perder o deles. Este ano, 10 professores não indígenas, sem nenhum tipo de capacitação, ingressaram nessas escolas. E não há planos estaduais para oferecer cursos de formação de professores.

É por isso que muitos dos Awa Guajá estão se tornando professores em suas aldeias e decidiram visitar São Luís para fazer uma apresentação de seus rituais. Mostrar-se, incluir-se, reconhecer-se no olhar e nas histórias dos outros: é isso que eles também querem para não desaparecer.

Meses depois das entrevistas remotas, levantei a possibilidade de visitá-los. A resposta foi entusiástica porque querem conversar e ser ouvidos. Então segui os passos necessários: pedi autorização à Funai – que foi negada em poucas horas. Inês propôs uma alternativa: poderíamos realizar o encontro na entrada da aldeia, na margem do rio.

Faltam 2 dias para essa reunião, e Tatuxa’a, um dos líderes, me manda uma foto feita com um drone. A imagem revela que fazendeiros abriram um campo no meio da mata, na Terra Indígena Arariboia, onde moram seus parentes. A foto mostra vacas pastando em um enorme buraco entre as árvores, como se uma bomba tivesse sido lançada ali.

Escola na Terra Indígena Caru. Foto: Awa Guajá

“Estamos com medo. Os invasores estão em todos os lugares. Encontramos muitos animais de caça mortos e árvores derrubadas. E agora isso. É muito sério”, diz Tatuxa’a.

Sem a floresta não há oxigênio, alimentos nem remédio. Sem a floresta, desata-se a teia da biodiversidade que contém o que seriam mil pandemias. Sem a floresta não há chuva: as árvores que compõem a Amazônia exalam diariamente 20 milhões de toneladas de vapor que se transformam em rios voadores viajando entre ventos e nuvens por toda a América do Sul. Sem a floresta não há nada.

Esse é o tamanho da gravidade do problema.

Compartilho a foto com Diogo, e ele me mostra as estatísticas: de acordo com seu grupo, de 1º de janeiro a 31 de julho de 2022, 3 líderes camponeses foram mortos na mata, 118 pessoas foram diretamente ameaçadas e 183 conflitos agrários como despejos e invasões foram registrados.

“No Maranhão há uma licença para praticar como chegar ao fim do mundo de forma mais rápida, e isso é uma ameaça para toda a humanidade”, diz Diogo.

Maicon compra as coisas que vamos levar para conhecer os Awa: 10 galinhas frescas, 3 melancias grandes, 5 quilos de bananas, 2 galões de água, copos, sinalizador, fósforos, faca e guardanapos. E eu vou até o rio Pindaré.

O céu está carregado de nuvens cinza-azuladas. Quando o sol surge, queima a pele. O centro da cidade está deserto. Sons e cheiros de almoços de família saem das casas. Na rua há apenas uma fila muito longa de pessoas esperando para comer por R$ 1 (20 centavos de dólar) os pratos feitos da Fetaema. É a agricultura do campo contra a fome que não para de crescer no Brasil: 33 milhões de pessoas sofrem com isso todos os dias.

O rio é brilhante e calmo, como uma cobra adormecida. Profundo e prateado. Uma criatura que sustenta a terra e recebe sua destruição na forma de sedimentos cada vez mais espessos, porque sem árvores as margens desabam e o rio se alarga, perdendo vitalidade e nutrientes até ficar como um corpo vazio de água derramada.

Sento na areia ao lado de algumas árvores baixas. Sinto cheiro de chuva. Uma senhora se aproxima de mim – Regina. Tem 62 anos que parecem mais, cabelos acobreados amarrados com uma presilha, saia vermelha e avental azul-claro por cima. A voz é aguda e estridente: “De onde você é? O que está fazendo aqui? Tão longe, tão bonita, que bom que tenha se interessado por este lugar. Posso tirar uma foto sua? Ninguém vai acreditar! Se você precisar de alguma coisa, é só dizer”.

“Eu gostaria de fazer um passeio pelo rio. Você conhece alguém que possa me levar?”, pergunto. Sem sair do lugar, Regina grita: “Neto, Neto, vem aqui!”.

Aparecem 2 homens: um magro, alto, de pele muito fina é o Neto; o outro, grisalho e mais encorpado, levanta a camisa para coçar a barriga e revela uma velha pistola de cabo branco que acaricia como se fosse um cachorro bravo.

“Que estranho ver pessoas de fora por aqui”, diz ele e sai sem esperar minha resposta.

Margem do rio Pindaré no município de Alto Alegre do Pindaré, no Maranhão. Foto: Soledad Barruti

Neto tem um sorriso estático e luminoso. Concordo em dar uma volta pelo rio com ele, parar na outra margem e olhar um pouco a floresta. Em seu barco motorizado, avançamos sozinhos pelas águas. O vento fica mais frio, o povoado se desvanece, e Neto começa a me contar o que há do outro lado do verde que vemos.

“Fazendas, vacas, vacas e mais vacas. E depois tem Bom Jardim, é assim que se chama o lugar de onde venho. Antes morava em uma plantação, na roça.”

Ele me conta tudo o que tinha: feijão, tomate, frutas e galinhas. Também criava um porco, mas vendeu para ir para a cidade. Diz que era um homem rico sem ter dinheiro e que nunca foi ao supermercado. Mas também que só sente saudade às vezes e que não se arrepende de ter mudado.

“Sou mais livre aqui”, afirma.

Paramos, descemos do barquinho, coloco os pés na água fresca e transparente. Neto me pergunta a mesma coisa que Regina: como cheguei aqui vindo de tão longe, para fazer o quê, quanto tempo vou ficar? Quando digo que ficarei por vários dias, ele sugere que eu faça uma viagem para outro lugar.

“Para o paraíso.”

“Como assim? O que tem lá?”

“Tem de tudo. Jacarés, jiboias, macacos, pássaros e catetos. Também tem onças. E na água, você não vai acreditar… Tartarugas, arraias e muitos tipos de peixes.”

“Muitos”, ele diz alongando o “u” com os olhos negros brilhando como se estivesse vendo ouro cair do céu. Ele fala sobre peixes e surubins e jura que podem chegar a ter 2 metros de comprimento. Finalmente, Neto revela que o paraíso fica em terras indígenas. Ele fala sem emoção, como se estivesse se referindo a um bairro qualquer, mas logo entendo o que ele quer dizer: Neto é um dos invasores que levam os animais de caça dos Awa Guajás.

“Não podemos entrar nas terras indígenas”, afirmo. “Pertencem a eles.”

“Eu entro. Posso entrar, sim”, responde Neto. “Sei quando eles não estão por perto, e lá está tudo o que não tem aqui: caça e pesca. Eles têm toda a floresta por isso, porque os índios são inteligentes.”

“Você gosta dos índios?”

“Hummmm… não tenho nada contra, mas eles ficaram com tudo.”

Gotas grossas e pesadas começam a cair. Voltamos ao barco e não falamos mais. O ar com chuva é doce como flores e frutas.

Cabanas de pescadores às margens do rio Pindaré. Foto: Soledad Barruti

O caminho para a Terra Indígena Caru é curto em distância, mas longo devido às condições da estrada. Há buracos e lama, temos que cruzar os trilhos do trem e desviar das vacas.

Avançamos em silêncio. De vez em quando ouvimos pássaros e cigarras. E de vez em quando também o trem passa, fazendo um barulho que lembra lâminas riscando metal. Todos os vagões transportam o ferro que a Vale extrai da mina, como se fosse uma vala sacrificial aberta para fazer carros, vigas, materiais: coisas, coisas e coisas.

Maicon tem o dom de encontrar lugares para tirar fotos e fazer vídeos, principalmente onde é possível constatar a ideia de que o trem é um monstro. Ele não me conta muito sobre sua experiência de trabalho na mineradora no passado, mas identifico uma sutil forma de vingança no seu empenho em fazer denúncias.

Contornamos o vilarejo de Auzilândia e descemos em direção à diminuta margem do rio em frente à vila.

Somos recebidos por pequenas borboletas amarelas, depois por outras enormes azuis e prateadas. O rio é o mesmo, o Pindaré, mas aqui está cheio de bichinhos que pousam na superfície e redemoinhos que imagino serem feitos pela respiração das criaturas sobre as quais Neto me falou. Há mosquitos de um tamanho que nunca vi antes.

O plano é que eu atravesse o rio e Maicon, que não sabe nadar, fique deste lado. Maicon acende o sinalizador para anunciar que chegamos. O barulho reverbera pela floresta como um tiro de canhão. Tiramos tudo o que trouxemos do porta-malas e esperamos.

Arapio Awa Guajá finalmente aparece e cruza o rio a nado. Para mim, ele aparenta ser apenas um adolescente, no entanto mais tarde descobri que nasceu em 1999 e já tem 3 filhos, sendo considerado um homem por sua tribo. Ele mal fala português, mas nos entendemos por meio de sinais, sorrisos e sons que fazemos em palavras que não existem. Carregamos a canoa com nossas coisas e atravessamos o rio.

Da esquerda para a direita: Panỹxa’a Awa Guajá, Arawyta’ĩa Awa Guajá, Petua Awa Guajá, Amaxika Awa Guajá, Piranẽ Awa Guajá, Hajkaramykỹa Awa Guajá, Irakatakua Awa Guajá, Arapio Awa Guajá, Amiria Awa Guajá, Takwarakỹa Awa Guajá, Takwariratỹa Awa Guajá, Itaxĩa Awa Guajá, Tatuxa’a Awa Guajá, Arakari’ĩa Awa Guajá, Takwarixika Awa Guajá e Jaharoa Awa Guajá. Foto: Soledad Barruti

Do outro lado, 16 pessoas esperam por mim: Panỹxa’a, Arawyta’ĩa, Petua e sua esposa Amaxika, tão jovens quanto Piranẽ e Hajkaramykỹa. Irakatakua, um dos mais velhos, chega de óculos escuros. Um dos melhores caçadores da aldeia, Takwarixika, também veio com a esposa Jaharoa. E Arakari’ĩa, uma das duas esposas de Hajkaramykỹa. Além dos líderes, também vieram Amiria, filho de Hajkaramykỹa, Itaxĩa e sua esposa Takwariratỹa, Tatuxa’a e seu filho Takwarakỹa. Todos têm o mesmo sobrenome, o de sua etnia: Awa Guajá.

As roupas foram especialmente desenhadas para hoje, com penas e colares. Também estão presentes Inês, que será intérprete, e as crianças, que nos observam enquanto se banham no rio. Estamos cercados pelo verde mais intenso que já vi.

Os jovens arrumam tapetes de folhas verdes no chão para nos sentarmos. Eles se acomodam na minha frente em um semicírculo de homens apenas e se apresentam um a um. Mantemos a distância que o coronavírus ainda exige, usando as máscaras faciais necessárias.

“Olá. Meu nome é Tatuxa’a Awa Guajá. Sou cacique da aldeia e moro aqui na Terra Indígena Caru.”

Então Itaxĩa e Irakatakua, o homem mais velho de óculos escuros que fala baixinho e ninguém traduz, se apresentam. Amiria continua, mas mal consegue dizer algo quando começamos a ouvir o trem. O som metálico cresce até se tornar uma presença absoluta, como uma besta feita de barulho. Todos se olham e param de falar enquanto o trem infernal passa. Eles ficam em silêncio pelo que pareceu ser uma eternidade, mas quando transcrevi a gravação descobri que foram 12 minutos.

Um som desse tipo, repetitivo e agudo, que nos faz parar até de falar, é conhecido em inglês pela expressão mind worm, um verme que se entranha na mente, um estímulo que entra pelos ouvidos e corrói o cérebro. Há um conjunto de evidências científicas mostrando que a exposição repetida a algo assim afeta o sistema nervoso central e o cérebro, contribuindo para um risco aumentado de distúrbios neuropsiquiátricos, como acidente vascular cerebral, demência e declínio cognitivo, transtornos do neurodesenvolvimento, depressão e ansiedade. Tais problemas são especialmente delicados na infância: bebês e crianças não têm a capacidade de prever esse fator de estresse e sofrem as consequências de uma forma ainda em estudo.

Os Awa Guajá sabem o que esse barulho causa aos felinos, macacos, pássaros e peixes, ao rio que sente suas encostas caírem, alargando-o um pouco mais a cada dia. “A terra está desmoronando, os animais fogem, escapam… Não podemos caçar e estamos com fome”, explica Tatuxa’a. Desde que chegou, o trem representa uma vida pior para todos aqui.

A situação é ruim mesmo com a Vale tendo que pagar uma indenização. O Observatório da Mineração explica que a empresa paga uma alíquota de 3,5% à Agência Nacional de Mineração (ANM). Desde 2017, por lei, 15% desse valor deve ser destinado aos municípios afetados pela mineração, ou seja, aqueles que possuem ferrovia, mineroduto ou qualquer outra infraestrutura. Esse valor é considerado migalhas quando comparado à evasão calculada em US$ 1,27 bilhão por ano.

Quando o barulho cessa, Inês sugere que contem a sua história. Tatuxa’a é o primeiro a falar. Ele tem olhos pretos pequenos e oblíquos. Usa camiseta azul, pulseira de penas laranja e colar de sementes pretas.

“Este território no qual estamos é e foi território Awa. Antigamente tudo era uma grande mata, floresta vigorosa e sem invasões. Mas quando os Karaí, os brancos, vieram, tentaram destruir os territórios. Tudo isso me foi contado pela minha mãe, que um dia veio para cá fugindo deles. Quando ela quis voltar para lá, tudo estava diferente.”

Tatuxa’a fala “cá” e “lá” marcando tudo ao nosso redor com o dedo, o que ainda existe como floresta e o que hoje é uma cidade e uma estrada.

“Isso tudo era terra dos Awa”, diz ele.

“E o rio podia ser atravessado a pé”, acrescenta Itaxĩa. “Mas à medida que o trem passa, as margens caem na água, e é por isso que o rio está ficando mais largo.”

“Minha mãe foi embora e quando voltou não havia mais floresta”, continua Tatuxa’a. Os Karaís soltaram seus cachorros para nos atacar, tentaram nos dividir. Meu pai também me contava histórias. Tudo isso era nosso território.”

Os mapas de desmatamento da Amazônia maranhense mostram isso. A zona histórica de ocupação dos Awa vai do alto Pindaré (cerca de 500 quilômetros ao sul) até o baixo Pindaré, onde estamos. É um rio com 720 quilômetros de extensão e que coincide com a Amazônia maranhense. Os 80% de floresta que não existem mais eram território deles. Há apenas 50 anos a floresta ainda existia. Na região onde nasceu Itaxĩ, há apenas 35 anos, não há mais floresta. Os pais de Tatuxa’a são 2 órfãos da região onde está localizada a Terra Indígena Alto Turiaçu. Eles perderam toda a família e reconstruíram a vida sozinhos, unindo-se a outras pessoas na mesma situação.

Protesto dos Awa Guajá por melhorias na educação. Foto: Awa Guajá

Na língua Awa, a forma de dizer “território” é a mesma de “o que eu sei”. A mesma palavra. É caminhando sobre o território conhecido que os Awa se identificam, se comunicam e estabelecem relações entre si e com os outros seres que habitam a floresta. Além disso, eles vivenciam um conceito de impermanência sem a mesma linearidade do nosso, o dos Karaí.

Desde a chegada dos primeiros invasores, na década de 1970, o passado e o presente são desenhados entre a floresta viva e a floresta morta. A violência sofrida por seus pais e avós volta ao presente sempre que apontam a destruição, quando citam os invasores e a mineradora. O horror está acontecendo agora. Mas também quando voltam à floresta viva, a esses passeios, a vivência do presente devolve as possibilidades que seus parentes traçaram para eles.

Algo curioso também acontece em relação ao futuro. De acordo com a cosmologia Awa, os mortos não saem da terra: seus ancestrais foram para o céu, mas descem para comer na floresta, aonde eles também descerão quando morrerem. O futuro então rodopia nessa espécie de tempo atemporal de seus bebês e anciões, com sua fragilidade e necessidade de cuidados e reparação.

“Aqueles que atacaram minha avó atacaram minha mãe também. Os Karaí atiram pelas costas, atacam por trás. Os Karaí matam os pais de muitos e nos matam.”

Quando Tatuxa’a termina, é a vez de Itaxĩa.

“Descobriram nossos parentes e os forçaram a fazer contato. Aí trouxeram os parentes para cá e os obrigaram a ficar quietos, a viver em aldeias. Aquela rua, esta estrada, tudo era mata fechada, como disse Tatuxa’a. Alguns parentes se perderam, não vieram junto. Então com esses Karaí surgiram as mulas de trabalho e até tratores para desmatar a floresta. Os índios não podiam fazer nada, apenas observar o desmatamento. Quando terminaram, o trem começou. Os parentes então resolveram ir lá ver e encontraram tudo descampado, não havia mais nada. O trem então começou a passar, trouxe os trabalhadores, e muitos de nossos parentes acabaram morrendo. Muitos morreram de tristeza, porque é muito triste pensar e ver como era antes e ver como é agora. Resta apenas este pedacinho de terra onde estamos, que estamos defendendo. Mas a destruição só aumenta. Eles duplicam os trilhos, enviam mais trens e dizem que isso é progresso. Mas qual é o progresso se a floresta é destruída? Nenhum.”

Outro trem passa. Mais uma vez, todos ficamos em silêncio. Agora sinto o barulho reverberando na minha garganta. Os 16 indígenas, homens e mulheres, olham para a frente, onde estou, mas não veem nada. A vida faz suas costas tremerem. Toda aquela vida que eu e aqueles que são como eu nem conhecemos e de alguma forma, apenas mantendo nosso modo de viver, violamos. Um lugar onde não poderíamos comer nem dormir, que precisaríamos de 200 vidas para entender, embora toda a nossa vida dependa disso.

O líder indígena e filósofo brasileiro Ailton Krenak diz que vivemos tempos de violência ontológica. Isto é, tempos em que tudo está pronto para destruir nossa capacidade de viver na poesia, no mito, em uma incerteza criativa e sagrada.

Nas aldeias do povo Awa, o fim do mundo persegue os índios há 50 anos: idosos morrem, rituais são esquecidos, falsas soluções aparecem, vindas até dos mesmos demônios que fazem de suas vidas essa urgência. Como a mineradora Vale – um dia ela oferece cursos para eles, no outro lhes dá menos dinheiro do que deveria ou constrói casinhas diminutas para eles morarem. “São casas onde não podemos colocar nossas redes para dormir, não entramos com nossas famílias, se balançamos a rede batemos nas paredes”, diz Itaxĩa, e alguns riem com graça e cumplicidade. “O pessoal da Vale não entende nada. Eles também construíram um casarão com tijolos de terra crua, com uma cúpula no meio que deixa a chuva entrar. Disseram que seria fresca, que não precisaríamos de ventilador, mas não é fresca e no inverno é muito perigosa. Fizeram essa construção sem nos consultar, como se fosse para um índio genérico, não para os Awa, sem nem saber como vivemos ou como queremos viver.”

A mineradora Vale foi consultada sobre o tema desta reportagem. A respeito da relação com este território, que utiliza como rota de passagem, e com as pessoas que aqui vivem, afirmou: “Atuamos com foco em relações construtivas e mutuamente benéficas, baseadas no respeito à diversidade cultural e aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. O relacionamento da empresa com os povos indígenas é conduzido por profissionais especialistas no assunto, distribuídos em todos os territórios, que interagem com essas populações”.

Indígenas Awa Guajá com armas de fabricação própria para caçar animais grandes. Foto: Awa Guajá

O Estado é considerado mais um demônio, que, se aliando a organizações não governamentais contratadas pela própria Vale para “mitigar os efeitos” de seus negócios, lhes deu animais domésticos para criar e maquinário pesado para lavrar a terra. Os índios que cultivam a terra não têm tempo para caçar – seu modo ancestral de subsistência. Além disso, sua visão de mundo inclui a criação de animais selvagens, acolhendo em suas famílias filhotes de macacos e catetos que se perderam na mata. As mulheres os recolhem, levam para casa, amamentam, criam e depois devolvem à floresta. Quando os homens saem para caçar, elas os seguem e apontam aqueles animais para que não sejam mortos. “Nós não comemos os que mamaram com nossos filhos”, diz Amiria.

O governo trouxe galinheiros, chiqueiros, viveiros de plantas e colmeias para esta aldeia. As atividades tomaram tempo dos indígenas, projetos foram impostos, mas nenhum deles teve continuidade. Hoje todos os projetos governamentais aos quais os Awa Guajá dedicaram seu tempo e entusiasmo se transformaram em coisas, lixo e restos esquecidos em algum lugar.

Há também violência nesse abandono. Nos últimos meses, o Estado descumpriu suas obrigações e compromissos. A construção das salas de aula foi interrompida, e foram designados professores não especializados em educação indígena. Por isso, os Awa Guajá deixaram de assistir às aulas e registraram reivindicações oficiais. Algo semelhante acontece com os cuidados de saúde: somente um médico do Estado está disponível para atender a todas as aldeias, que ficam a centenas de quilômetros de distância umas das outras.

Recentemente, o governo também mudou seu intermediário oficial. Daianne Veras Pereira, coordenadora da Frente de Proteção Etnoambiental, que trabalhava com os indígenas, foi afastada do cargo. No lugar dela, sem qualquer tipo de consulta aos interessados, foi nomeado Elton Henrique Sá de Magalhães – um homem sem nenhuma experiência de trabalho com populações indígenas.

“O governo colocou esse homem, mas ele não conhece nossa comunidade, e nós não o aceitamos. Não queremos recebê-lo. Ele não é uma boa pessoa, já foi processado. Não queremos isso aqui, nossa comunidade não quer. O protocolo de consulta e respeito não foi cumprido”, diz Tatuxa’a.

Um mês depois, pelo WhatsApp, fiquei sabendo que os Awa Guajá usaram arcos e flechas para expulsar o novo coordenador de uma reunião. E mais um mês depois, denunciaram que Elton Henrique Sá de Magalhães entrou em suas terras sem pedir licença e ordenou que ateassem fogo em um galpão onde os indígenas faziam reuniões.

Em 20 de novembro, me contaram que a covid-19 voltou às suas aldeias. Como se, com o tempo que ainda lhe resta no poder, esse governo quisesse exterminá-los, faltam aos Awa Guajá os materiais mais básicos de proteção. Não há nem máscaras nem álcool em gel. Também não há nenhum procedimento para impedir que funcionários contaminados entrem em seu território.

Inês sugere uma pausa para o almoço. Mulheres com bebês e crianças se aproximam. Partilhamos as frutas e comemos em silêncio.

Quando os olhares se encontram, quando falam na sua língua, quando eu e Inês ficamos para trás como se fôssemos um pouco invisíveis, podemos ver os Awa Guajá sendo eles mesmos, com a força do que defendem.

Durante a pausa, Tatuxa’a me mostra os artesanatos que faz. Compro um colar e uma pulseira de contas laranjas, azuis, amarelas e verdes. Tiramos uma foto. Agradeço por confiar em mim e me receber aqui. Ele é tímido, mas é possível notar que está confortável com a situação.

A tranquilidade dura pouco. Um pequeno barco a motor passa pelo rio e fica no meio da água. Só quando os mais novos se aproximam, ele se afasta. Então lhes digo que encontrei um invasor, não um miliciano ou um latifundiário, mas um homem pobre que sente que a floresta também é dele, que ele também tem o direito de entrar. Pergunto o que pensam sobre essas pessoas. Tatuxa’a responde:

“Os Karaí têm suas regras, nós temos as nossas. Você não pode pescar aqui. Não vamos à cidade roubar suas coisas. Se fizéssemos isso, os Karaí nos atacariam. Não atacamos: avisamos, dizemos que estamos fazendo vigilância, sem lutar. É assim que nosso trabalho está sendo feito. É nosso trabalho ser guardiões. Alguns nos ouvem, mostram licenças e dizem: ‘Posso pescar em qualquer lugar’. Eles não respeitam nada, não nos respeitam, jogam suas redes e não deixam os peixes passarem. E precisamos de peixes. Eles matam os animais de caça, colhem frutas em nosso território. Quando estamos frente a frente, eles dizem: ‘Vocês não querem que entremos na sua terra, por que vocês entram nas cidades?’. Mas não é o mesmo. Eles estão aqui roubando, e nós vamos à cidade comprar alguma coisa. Se estivéssemos roubando na cidade, você acha que eles não nos matariam? Certamente sim. Entram, caçam e não entendem. Os brancos não entendem.”

Mulheres e crianças indígenas em aldeia Awa Guajá no Maranhão. Foto: Awa Guajá

“Mas nós entendemos” assegura Itaxĩa. “Entendemos que muitos não querem nos matar. Eles simplesmente não têm nada para comer, não têm dinheiro. Na cidade não se come sem dinheiro. A gente entende que tem muita gente pobre que precisa se alimentar, tem família para sustentar, e que venham fazer isso na terra indígena. Mas aí é o governo que tem que dar ajuda para eles, ou a Vale… A Vale também destrói seus territórios. Ela também invade os povoados, poderia fazer algumas coisas para melhorar a vida dessas pessoas também.”

É hora da despedida. Tiramos uma foto do grupo. Tatuxa’a pergunta o que faço, o que é jornalismo, para que serve.

“Meu trabalho é ouvir vocês e contar sua história para que mais pessoas saibam o que está acontecendo”, respondo. “Não sei se vai funcionar, mas prefiro pensar que sim.”

“Conte que estamos na luta e vivemos na esperança. Que nós, indígenas Awa Guajá, protegemos a terra para viver, para cuidar dos nossos filhos, para viver mais. Não é isso, parentes?”, pergunta Itaxĩa, e todos acenam com a cabeça concordando: “Isso mesmo”.

“Nesta terra que é nossa tem fruta, açaí, bacuri, mel e água para nossos filhos – que é tudo de que a gente precisa. As árvores, a terra, nossa mãe. Se não houver floresta, o rio acaba. A mata é o que garante isso. Água é o que as pessoas bebem, mas sem água as pessoas também não respiram. O que estamos protegendo é isso. Não é, parentes?”

“Se as pessoas acabarem com isso, não terão como viver. Eles também não, embora não entendam.”

Eles continuam a falar até o último momento. É a primeira vez que falam com um jornalista sem intermediários e parecem ansiosos em conversar.

Os indígenas Awa Guajá costumam fazer seus protestos mais importantes interditando os trilhos do trem da Vale. Foto: Awa Guajá

Arapio é novamente escolhido para me levar de volta. Ele conduz o barco sem esforço, como se falasse com o rio, como se também fosse parte da água.

Já no carro, mostro a Maicon as fotos do encontro.

“Gostaram das galinhas que consegui”, ele constata olhando para uma das poucas cenas que retratei, quando as famílias dividiam a comida. Devido ao trabalho com Diogo, o advogado de direitos humanos, Maicon já está acostumado a visitar territórios indígenas, mas ainda fica surpreso com os Awa Guajá.

“Os outros índios que conheço vivem de uma maneira mais parecida com a nossa. Dá para ver que estes são bem diferentes.”

Paramos em Auzilândia, aquela cidadezinha do outro lado da estrada. Há uma estação de trem, mas não há hotéis ou restaurantes, apenas umas poucas lojas. O calor é mais forte aqui, estático e esmagador. Fico com vontade de tomar uma água de coco gelada.

“Espero você aqui”, diz Maicon, que afirma não identificar neste lugar nenhum dos perigos sentidos sempre em Alto Alegre.

Vou pelas ruelas que margeiam os trilhos. As pessoas olham quando passo. Pergunto se há algum lugar que venda cocos e me indicam uma esquina, onde bato em uma porta verde. Sai uma jovem com cara de sono e me diz para perguntar na casa ao lado, de onde vem um homem muito alto com a pele da cor do rio. Pergunto pelo coco novamente e sua expressão de surpresa me faz sentir ridícula. “Sim, acho que tenho um”, ele responde e me convida a entrar.

A esposa está sentada lá dentro em uma cadeira de veludo vermelho. É uma casa sombria repleta de velhas fotos de família: meninos e meninas em idade escolar. O homem vai para o fundo da casa. A mulher parece ser cerca de 15 anos mais velha, com o cabelo todo branco e olhos que se estreitam entre as rugas. Eles moram lá desde a fundação de Auzilândia, mas os filhos foram todos para São Luís.

“A vida aqui é tranquila, exceto pelo trem. O trem passava pouco, agora passa de vez em sempre.”

“E qual é a pior coisa causada pelo trem?”

“Muitas coisas. O barulho e a poeira de ferro. Tem muita doença aqui, mas não tem médico. O trem arruinou nossa vida.”

O marido volta trazendo um coco e um facão. Ele diz que o coco estava alto e me entrega a fruta que acabou de tirar do coqueiro. Tento pagar, mas eles não aceitam. Ele pergunta o que estou fazendo naquele lugar, e conto sobre minha visita aos Awa Guajá.

“Ah, os índios…”, diz o homem. Ouço o tom daquele “ah” e sinto uma fronteira invisível ser erguida, uma distância impossível de ultrapassar. Os índios são corajosos.

Peço que ele abra o coco, e ele pergunta se pode tirar uma foto minha.

“Ninguém vai acreditar em mim se eu não tiver uma prova.”

Tiramos fotos: ele com o facão em suas grandes mãos parecidas com uma árvore velha, eu segurando o coco que ele me deu.

A noite está prestes a cair sobre as ruas de Auzilândia.

O céu é azul com uma luz quase dourada, a grama está comprida e pálida, os carros são velhos e um cavalo magro descansa ali perto. Maicon espera no final do quarteirão. Pego meu caderno e anoto a única coisa que pude escrever em vários meses: A única verdade é que a floresta está sendo assassinada.


Investigação jornalística e texto: Soledad Barruti
Fotografia: Soledad Barruti e cortesia da comunidade Awa Guajá
Edição de texto: Paula Mónaco Felipe
Edição de fotos: Miguel Tovar
Este trabalho foi produzido com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center

Traduzido do espanhol por Bel Murray

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