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Houve uma época em que a parte mais perigosa do trabalho de Hugo Loss era circular pelo difícil terreno da Floresta Amazônica e encontrar homens armados explodindo leitos de rios e derrubando árvores para obter lucro. No entanto, Loss, analista ambiental do mais importante organismo de defesa do meio ambiente do país – o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)–, descobriu recentemente que ser eficiente em seu trabalho fez dele um alvo, estivesse sobrevoando a Amazônia ou andando pelas ruas de São Paulo.
Loss é parte de um grupo de mais de uma dezena de servidores do governo, jornalistas, juízes e políticos cujos nomes apareceram num relatório da Polícia Federal como alvos de uma campanha de espionagem lançada e mantida pelo governo do ex-presidente extremista de direita Jair Bolsonaro. A lista inclui legisladores federais, um ex-governador de São Paulo e quatro ministros do Supremo Tribunal Federal do Brasil, a mais alta instância do Poder Judiciário do país.
De acordo com um documento de processo tornado público em julho de 2024, a Polícia Federal está investigando uma organização criminosa que supostamente monitorava ilegalmente os computadores e telefones de Loss e dos outros nomes identificados.
A organização teria usado recursos da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. O documento não contém acusações diretas contra Bolsonaro, mas diz que a atuação da “Abin paralela” tinha como objetivo pessoas envolvidas na investigação dos familiares de Bolsonaro e que “causavam problemas” para seu governo.
Com sua personalidade populista e de extrema direita comparada com a do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, Bolsonaro venceu a eleição presidencial do Brasil em 2018 com promessas de “desenvolver” a Floresta Amazônica e usou uma plataforma conhecida como BBB – Bíblia, bala e boi ou carne bovina, que é o principal motor do desmatamento do Brasil. Essas políticas puseram Bolsonaro em rota de conflito com órgãos do próprio governo, incluindo o Ibama, onde Loss trabalha desde 2013.
No Ibama, o analista ambiental ajudou a planejar e executar operações em estilo militar destinadas a monitorar e desmantelar as vastas redes de madeireiros, garimpeiros e caçadores ilegais, além de grileiros e, cada vez mais, traficantes de drogas que impulsionam desmatamentos, ataques e outros crimes contra os povos Indígenas.
Pouco mais de um ano após o início do governo Bolsonaro, servidores de carreira do Ibama foram sumariamente demitidos ou transferidos de posições no campo para cargos em escritórios. Hugo Loss foi exonerado dos cargos que ocupava na Amazônia, ficou proibido de entrar na Floresta Amazônica e passou a ser lotado no estado de Minas Gerais.
As trocas de pessoal e as demissões foram vistas sobretudo como retaliações. Loss havia liderado investigações que implicaram altas autoridades do governo Bolsonaro, incluindo o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ligado a uma rede de tráfico de madeira da Amazônia para os Estados Unidos e a Europa. Salles renunciou em 2021 e negou irregularidades. Ele permanece sob investigação.
Depois disso, Loss voltou a exercer funções operacionais no Ibama e seu trabalho aumentou no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu a Presidência no início de 2023.
Mas, embora Lula tenha prometido proteger os territórios Indígenas e reduzir as taxas de desmatamento, segundo Hugo Loss, o Ibama e outros órgãos do governo estão ainda muito defasados para atingir esses objetivos e não foram reconstruídos em um ano e meio de mandato. A pauta Bolsonaro, semelhante às políticas conservadoras do Projeto 2025 elaboradoras para uma futura Presidência Trump, deixou uma marca duradoura.
Ao mesmo tempo, as redes criminosas que floresceram sob o governo de Bolsonaro organizaram-se e tornaram-se mais sofisticadas: no ano passado, o Brasil declarou uma crise humanitária no território Indígena Yanomami devido à fome grave e às doenças pioradas pela mineração ilegal de ouro.
Hugo Loss conversou com a Amazônia Latitude e a Inside Climate News sobre a montanha-russa dos últimos anos e as lições para defensores de instituições democráticas em todo o mundo. A entrevista, conduzida em português, foi levemente editada por questões de tamanho e igual compreensão em todos os idiomas em que está publicada (português, inglês e espanhol).
Já sob Lula, Loss voltou a coordenar operações importantes, como as de combate ao garimpo na Terra Indígena Yanomami. Foto: Arquivo/Amazônia Latitude
AMAZÔNIA LATITUDE E INSIDE CLIMATE NEWS — Você trabalhou no Ibama nos governos Lula e Bolsonaro. Quais as principais diferenças entre as duas administrações?
HUGO LOSS – No governo Bolsonaro, tínhamos uma dificuldade muito grande de trabalhar, porque existiam as perseguições. Não tínhamos liberdade para fazer as operações que deveriam ser feitas. No governo Lula é totalmente diferente. Não existe mais a perseguição em torno dos servidores. Não existe mais essa dificuldade para conseguir fazer operações de fiscalização.
No entanto, hoje os problemas são outros. O governo Bolsonaro desmantelou e remodelou a estrutura do Ibama, reduzindo o número de servidores e recursos financeiros, e essas mudanças não foram totalmente revertidas no governo Lula. Continuamos precisando de melhores condições para aumentar e intensificar as operações de vigilância e fiscalização.
Atualmente, um fiscal, técnico ambiental, do Ibama ganha por volta de 5 mil reais por mês. Então, os fiscais novos são pessoas que se colocam em uma situação de risco e não ganham um salário justo se comparado ao das demais carreiras federais. Por exemplo, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal têm salários muito superiores aos do Ibama. E desde 2022 não houve nenhum concurso.
O governo exige grandes ações, principalmente na proteção dos territórios Indígenas, como Yanomami, Kayapó, Munduruku, Apyterewa, e na derrubada da taxa de desmatamento. Essas demandas não existiam no governo Bolsonaro, mas agora sim. No entanto, a estrutura do Ibama é a mesma e nós não podemos atender aos pedidos crescentes.
Não temos pessoal nem recursos suficientes para grandes operações simultâneas em Terras Indígenas. Se um órgão se retira de uma área, os criminosos voltam. Então, em cada TI em que é feita a desintrusão, deve-se manter equipes fazendo a manutenção daquela situação, contendo qualquer nova tentativa de invasão.
Como as atividades de madeireiros e garimpeiros ilegais, narcotraficantes e outros grupos criminosos na Amazônia mudaram na última década?
A Amazônia mudou muito depois da chegada de Bolsonaro ao poder. Os grupos criminosos se fortaleceram e se organizaram, e esse legado permanece. Existe também uma presença maior de armas.
No governo Bolsonaro, madeireiros e garimpeiros se organizaram em cooperativas e associações. Eles conseguiram eleger vereadores e prefeitos em cidades pequenas e até senadores e deputados, pessoas que defendem seus interesses nas esferas centrais do poder. Mesmo sem Bolsonaro na Presidência, existe agora um poderoso grupo de políticos que defende a lógica de que não há necessidade do Ibama ou da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai. O maior desafio que temos é superar essa lógica. Hoje, não estamos sendo diretamente perseguidos ou enfrentando represálias como ocorreu no governo Bolsonaro. Mas está longe de ser uma situação ideal. E não sei como isso vai ser resolvido.
A criminalidade na Amazônia fica cada vez mais sofisticada, se ramifica e cresce em estrutura. Nossas estruturas de governo não acompanham esse crescimento, porque não foram reconstruídas desde que o governo Bolsonaro as desmantelou.
Em julho de 2024, a Polícia Federal publicou o relatório que ficou conhecido como “Abin Paralela”. O documento afirma que, no mandato de Bolsonaro, os serviços de Inteligência do governo fizeram operações de espionagem e assédio contra jornalistas, juízes e outras pessoas. Você leu o relatório?
Eu só tive acesso às partes que foram tornadas públicas. Não tive acesso ao documento completo. Ele pertence a um inquérito policial e está sob sigilo.
Seu nome aparece várias vezes na versão pública do relatório como uma pessoa que foi monitorada pelo governo Bolsonaro em 2020 e 2021. Como você reagiu diante dessa informação?
Eu desconfiava que estava sendo monitorado. Meu telefone celular, por exemplo, sofreu uma pane por superaquecimento. Percebia movimentações estranhas em frente à minha casa, com veículos e pessoas suspeitas. Só que nunca imaginei que fosse parte de uma estrutura tão grande.
Fico realmente com receio do que vai acontecer se Bolsonaro ou seus aliados vencerem as próximas eleições. Não sei o que vou fazer. Devo traçar algum plano de proteção, porque tenho certeza de que vou voltar a ser um alvo. Continuo a pensar nisso, na minha família, no que fazer.
O relatório da Polícia Federal dá a entender que você estava sendo vigiado por causa do trabalho no Ibama e da defesa do meio ambiente e dos Indígenas. Outras pessoas mencionadas são juízes, jornalistas ou atuam na política. Por que acha que foram escolhidas?
Acredito que há uma conexão entre nós, as pessoas que foram alvo. Nós desempenhamos um papel em defesa da democracia. Os jornalistas têm como ofício levar à sociedade a informação real, neutra, e isso dá à sociedade mais autonomia de decisão, pensamento e formação de opinião. No caso de quem trabalha no Ibama, à medida que combatemos o crime ambiental, evitamos a usurpação da Natureza, do que é coletivo, por um ente privado. Essa apropriação do coletivo pelo privado vai contra o princípio democrático.
O meio ambiente e o que existe na Natureza estão no centro da discussão da manutenção da democracia, porque governos antidemocráticos usam ouro e madeira extraídos ilegalmente da Amazônia para se perpetuar no poder.
Você foi exonerado do Ibama em 2020. Na época, foi dito que aquela teria sido uma retaliação por você ter acabado com operações extrativistas ilegais envolvendo funcionários do governo. Como foi essa experiência para você?
Em 2020, participei de uma operação na Terra Indígena Apyterewa, quando destruímos todo o garimpo de lá. Um pouco depois, estive na TI Yanomami, onde apreendemos vários aviões e helicópteros que pertenciam a garimpos.
A Operação Akuanduba, que envolveu Ricardo Salles [ex-Ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro], conseguiu impedir que centenas de cargas de madeira fossem exportadas para vários países sem a autorização do Ibama. Minha equipe estava planejando a operação para investigar essa exportação quando fui exonerado. Embora nossa operação não tenha acontecido, a Polícia Federal encontrou provas de conversas entre Salles e madeireiros ilegais.
Depois da minha exoneração, em 30 de abril de 2020, passei 414 dias “na geladeira” [do Ibama]. Estava proibido de ir à Amazônia e também fui demitido de outros cargos que ocupava na Diretoria de Políticas de Proteção e Reparação dos Direitos Humanos e no Conselho Brasileiro de Licenciamento Ambiental. Pedi para ser transferido para Mato Grosso, em vez de ser demitido; o pedido foi negado. Pedi para ser transferido para o Pará; o pedido foi negado. Tentei outras partes da Amazônia, e não deu certo.
Só consegui uma transferência para Minas Gerais e, quando cheguei, o superintendente me ajudou a sair da geladeira. Ele disse: “O que sabemos é que você não pode ir para a Amazônia. Pode fazer as operações aqui, mas não pode ir para lá”.
Só pude voltar para a Amazônia quando o Supremo Tribunal Federal destituiu o então presidente do Ibama, Eduardo Bim; o diretor de proteção ambiental, Olímpio Magalhães; e o coordenador de operações de fiscalização, Leslie Tavares. Isso foi em maio de 2021. E foi então que começaram a me monitorar novamente.
Loss liderou investigações que implicaram altas autoridades do governo Bolsonaro, como o então ministro Ricardo Salles. Foto Antonio Cruz/Agência Brasil
Você já pensou em deixar seu trabalho no Ibama por medo de sofrer mais represálias?
Não. Por medo, não. Seria como um alpinista deixar de escalar montanhas. Meu trabalho é criar e executar operações de fiscalização na Amazônia. Então, eu invisto tudo: estudo muito o terreno, o território, converso com as pessoas. Para trabalhar na Amazônia, não adianta ler diversas teses e livros. É preciso conhecer o terreno. E aí você tem de ter contato com as pessoas, ter consciência situacional a partir dos mapas e do conhecimento empírico. E tudo isso fui construindo ao longo desses anos de trabalho no Ibama. Não consigo me imaginar fazendo outra coisa, entende? Eu tinha vontade de, no futuro, fazer um trabalho com os povos Indígenas, de formação, em que eu conseguisse transferir esse conhecimento para que eles próprios fizessem a proteção do território.
Qual a situação atual das atividades ilegais na Amazônia?
Eu acho que os criminosos estão muito mais organizados e articulados com os canais oficiais de poder, incluídos os governos federal, estadual e municipal. Para combatê-los, o Brasil precisa reforçar as instituições públicas e fortalecer sua independência. É preciso fortalecer a democracia como um todo. Isso significa não só comprar mais helicópteros, mas também contratar mais gente e poder desenvolver medidas efetivas contra criminosos que desejam aparelhar o governo. As instituições públicas precisam ser capazes de realizar um trabalho estritamente técnico e centrado no cumprimento da lei.
Depois das revelações feitas pelo relatório da Polícia Federal, você adotou alguma medida de proteção?
Estamos sempre alertas. Antes de saber que estava sendo observado, eu já prestava atenção em pessoas suspeitas. Mantenho minhas contas em redes sociais fechadas e, para me proteger, não publico nada.
Como você vê atualmente os problemas do garimpo ilegal e do desmatamento na Amazônia?
Facções criminosas têm se associado fortemente à atividade do garimpo no Brasil. Isso é, de certa forma, novo. Ajustar a regulamentação à nova realidade pode ajudar a enfrentar a situação. O garimpo de ouro precisa de um controle urgente sobre as vendas e sobre o comércio de máquinas e equipamentos pesados de mineração.
Outro aspecto importante é fazer com que somente funcionários de carreira possam dirigir órgãos como o Ibama. Isso protege a instituição. Do jeito que está agora, qualquer um pode ser presidente do Ibama. Se a pessoa é funcionária de carreira, ela terá passado por treinamento, processo seletivo, e terá se desenvolvido dentro de uma cultura institucional. Mas se qualquer pessoa do Brasil pode ser presidente de um órgão técnico como o Ibama, sempre serão colocados naquela posição indivíduos que atendam a interesses políticos.
O que você espera do governo Lula nos próximos dois anos e meio?
Assim como Bolsonaro deixou um legado, Lula deixará um legado. E tem de ser bom: um legado duradouro de proteção do meio ambiente.
O que acontece atualmente é que a gente consegue fazer a desintrusão de algumas Terras Indígenas, consegue fazer operações de fiscalização, mas ainda não chegamos a todos os lugares em que precisamos estar. E eu não vejo dentro do Ibama nenhum movimento que possa garantir que as operações vão continuar se Bolsonaro voltar ou se aliados dele chegarem ao poder. Portanto é preciso criar formas de controle e monitoramento efetivas e perenes e que continuem a existir e a funcionar não importa quem esteja no poder.
A proteção da Amazônia não se sustenta só com as operações que temos feito. É necessário um aparato jurídico mais robusto, com instituições mais sólidas. Precisamos ter a capacidade de executar operações de longo prazo que não sejam descartadas a cada dois anos por causa de uma mudança política.
Operações como as do território Yanomami aumentaram no governo Lula, mas a estrutura de fiscalização permanece a mesma. Foto: Arquivo/Amazônia Latitude
Reportagem, texto e edição: Marcos Colón e Katie Surma
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o português: Marcos Colón y Denise Bobadilha
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum