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Não há maior roubo das pessoas mais pobres do que a perda de água limpa, ar fresco, solo fértil, Natureza abundante e clima estável.
Esse deveria ser o mantra de todo líder do século 21 que afirma se preocupar com a justiça social. Era também uma expectativa para o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que venceu a eleição de 2022 com promessas de cuidar dos desfavorecidos, intensificar a ação climática e proteger a Amazônia e os outros biomas no Brasil.
No final de maio, porém, o líder do Partido dos Trabalhadores traiu essas promessas com uma rendição abjeta aos negócios extrativistas e a um Congresso controlado pelos interesses do agronegócio. Seu governo passou por cima da ciência ao autorizar um passo decisivo para a exploração de petróleo pela Petrobras na Bacia da Foz do Amazonas.
Essa capitulação será ruim para o clima e potencialmente devastadora para a Natureza. Mas algo ainda pior está por vir, com o Congresso abrindo as portas para uma nova lei que, se seguir como está, vai destruir o licenciamento ambiental.
Como mostramos nesta edição de SUMAÚMA, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, decidiu ignorar preocupações de que a perfuração no bloco 59 da Foz do Amazonas representa uma ameaça para a região ecologicamente sensível do Oiapoque, no estado amazônico do Amapá. O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, abriu caminho para a Petrobras contra o parecer de 29 técnicos, que recomendaram que a negação da licença fosse reafirmada, porque a Petrobras não havia apresentado um plano viável de proteção à vida selvagem em caso de vazamento. Mas Agostinho passou por cima dos técnicos, curvando-se à pressão de Lula e de senadores da região – especialmente Davi Alcolumbre, do União Brasil, presidente do Senado e um aliado fundamental para Lula num Congresso bastante hostil, e Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso, que rompeu com a Rede, de Marina Silva, por causa do petróleo, e filiou-se ao PT.
Agora, o pedido de perfuração pela Petrobras está a apenas um obstáculo da aprovação. Se for adiante, o Brasil também estará ignorando as recomendações da Agência Internacional de Energia e da Organização das Nações Unidas. Ambas dizem que a abertura de novas frentes de exploração de combustíveis fósseis não é compatível com os compromissos internacionais de manter o aquecimento global a um nível relativamente manejável de 1,5 grau Celsius. A queima de petróleo, carvão e gás natural representa mais de 75% das emissões responsáveis por aquecer o planeta.
Não para por aí. A exploração do bloco 59 seria apenas o começo. O objetivo do governo é aquecer o interesse pelo leilão de 17 de junho, no qual outros 47 blocos da Bacia da Foz do Amazonas estarão na mesa.
O momento não poderia ser pior, já que um novo relatório mostra que o número de incêndios florestais no Brasil subiu no ano passado a um nível que superou até os piores momentos da era Bolsonaro. A organização Global Forest Watch reportou que o Brasil foi responsável por 42% de todas as perdas de florestas primárias nos trópicos, com a destruição de mais de 25 mil quilômetros quadrados em 2024, principalmente como resultado de uma seca recorde agravada pela crise climática. Pela primeira vez, os incêndios, a maioria provocada pelos humanos, destruíram mais da Floresta que o desmatamento. É uma ameaça direta à Floresta e aos seus povos.

No ano anterior à COP de Belém, o número de incêndios florestais no Brasil subiu e destruiu mais floresta que o desmatamento. Foto: Mayangdi Inzaulgarat/Ibama
No entanto, algo muito pior está no horizonte. O Senado aprovou a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, uma nova legislação que ameaça todos os biomas do Brasil – a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga e o Pampa. O Projeto de Lei 2159/2021, apelidado de PL da Devastação, permitiria que estradas, barragens, plantações de soja, fazendas de gado e outros grandes projetos avançassem com regras simplificadas, como autolicenciamento ou até mesmo sem licenciamento.
Esse projeto vai agora para a Câmara dos Deputados, e em seguida para o presidente Lula, que poderá vetar o texto total ou parcialmente. Mas será que Lula terá coragem de fazer isso, depois de colocar a perfuração de petróleo acima da Floresta e do seus povos? De qualquer forma, o veto seria simbólico, porque o Congresso tem votos suficientes para derrubá-lo. Se Lula quisesse de fato frear o avanço do PL, teria atuado antes da votação no Senado.
Além disso, o espaço de manobra do presidente em relação à sua base política está encolhendo. Dominado por interesses do agronegócio e da mineração, o Congresso nunca foi tão forte nem mais predatório como agora. Mesmo aqueles que estão no partido de Lula, como o senador Randolfe Rodrigues, defendem os benefícios econômicos que viriam com novos campos de petróleo – e que, na experiência brasileira, não têm resultado em avanços das condições de vida da maioria da população. A economia brasileira está cada vez mais dependente das exportações de petróleo e produtos agrícolas.
Enquanto isso, a comunidade global segue fraturada pela ascensão de líderes nacionalistas como Donald Trump e Vladimir Putin, que estão virando as costas para os acordos multilaterais sobre o clima. A ordem mundial dominada pelos Estados Unidos, com um legado de 80 anos, está morrendo. E uma nova ordem ainda não nasceu. O Brasil sediará uma cúpula do Brics no Rio de Janeiro em julho, reunindo China, Índia, África do Sul e outras nações, mas não está claro até agora se as questões ambientais estarão no topo da agenda.
Lula parece estar revivendo um antigo papel. Ex-líder sindical de metalúrgicos, ele ainda se mostra mais à vontade ao falar sobre empregos e renda do que ao abordar emissões e ecossistemas. Em seus mandatos anteriores como presidente, dependia dos funcionários da Petrobras para inflar a plateia de seus comícios e equilibrar o balanço da economia nacional. Mais de uma década atrás, Lula abandonou sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, porque, ao fazer o trabalho de zelar pela Natureza, ela tornou-se uma barreira para os planos desenvolvimentistas do governo. Agora, mais uma vez, Lula deixou Marina numa posição isolada e vulnerável.
A atitude terá um custo para a reputação internacional do presidente – e do Brasil. Depois de conquistar o terceiro mandato, ele recebeu reconhecimento global por seus compromissos climáticos, pela promessa de desmatamento zero até 2030 e pela nomeação de Sonia Guajajara para chefiar o novo Ministério dos Povos Indígenas. A postura ambiental de Lula foi positiva para o país: ajudou a pôr fim ao status de pária herdado dos anos Bolsonaro e contribuiu para que o Brasil garantisse o direito de sediar a COP30 em Belém – a primeira cúpula do clima na Amazônia. Essa deveria ser uma oportunidade para mostrar liderança no cenário global.
Mesmo assim, se Lula acha que pode voltar à antiga cartilha, ele ignora os impactos da crise climática em sua base. A classe trabalhadora, as comunidades periféricas e as organizações sociais serão as primeiras a sofrer com as inundações e secas, o abastecimento de água interrompido, o desaparecimento de polinizadores e a contaminação de peixes por mercúrio ou petróleo. Não se trata de uma ameaça futura. Ela já está acontecendo – como vimos nas trágicas enchentes que arrasaram o Rio Grande do Sul em 2024 e nas estiagens recorde que secaram rios e vastas áreas da Floresta Amazônica. Mais petróleo só vai piorar o problema.
O novo “Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental”, mais conhecido como PL da Devastação, representa a maior transferência de poder das mãos do Estado para as do mundo corporativo desde a redemocratização do país. Ele libera os últimos vestígios da Natureza para exploração e mercantilização. Os resquícios dos bens comuns do planeta seriam rapidamente apropriados por empresas privadas. A população teria um clima e uma democracia menos estáveis. E a captura do Estado seria concluída sob a vigilância de um homem que já foi a grande esperança de democratas e progressistas. O que, então, Lula deixaria como legado?
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Seca histórica na bacia do Rio Negro em 2024 é exemplo de como os danos à Natureza já têm impactos atuais. Foto: Suamy Beydoun/Agif
Texto: Jonathan Watts
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o português: Denise Bobadilha
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum