Jornalismo do centro do mundo

Mulher, negra, lésbica, criada no Complexo da Maré, Marielle simboliza as forças emergentes do Brasil que passaram a disputar os centros de poder neste século. Foto: Mateus Bonomi/Agif/Folhapress

“Quem possui a terra possui o homem.” Essa frase do abolicionista André Rebouças (1838-1898) foi lembrada por Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, em suas redes sociais, quando os suspeitos de ordenar o assassinato de Marielle Franco foram finalmente revelados e presos. Realidade no Brasil do Império, a sentença de Rebouças permaneceu e se atualiza no Brasil de hoje. Ela é determinante para compreender por que as perguntas “Quem mandou matar Marielle? E por quê?” ficaram suspensas sobre o país por mais de seis anos. Só exatos 2.202 dias depois, em 24 de março, um domingo, a Polícia Federal prendeu como mandantes os irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, e Chiquinho Brazão, deputado federal – eleito pelo União Brasil, ele foi expulso do partido depois da prisão. Também foi detido Rivaldo Barbosa, chefe da polícia do Rio de Janeiro na época da morte, suspeito de ser mentor intelectual do crime e responsável pela obstrução das investigações. O motivo da execução: como vereadora, Marielle estava atrapalhando a apropriação ilegal de terras no Rio de Janeiro, apontada como um dos negócios da família Brazão e das milícias que dominam vastas porções do território. Na mais emblemática cidade do Brasil, Marielle morreu pelo mesmo motivo da execução de uma longa – e contínua – lista de lideranças na Amazônia, entre elas Chico Mendes (1944-1988) e Dorothy Stang (1931-2005).

A quem pertence a terra e qual é a sua destinação são as questões que fundaram o Brasil e atravessaram mais de cinco séculos de genocídios e destruição avassaladora da natureza. Com o fortalecimento da extrema direita, hoje representada pelo bolsonarismo, o impasse se radicaliza. Os fios que revelam os envolvidos no assassinato de Marielle apenas começaram a ser puxados. Espera-se que exista coragem política para chegar até o fim das entranhas desse crime que, ao final, revelam as entranhas de um país.

“Grilagem” é uma palavra gestada no Brasil para determinar o crime que inaugura a nação – e que até hoje determina a destruição de biomas como a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pampa. É nascida de uma experiência tão particular que muitos tradutores e acadêmicos de outras línguas a reproduzem sem tentar traduzi-la. No passado, os criminosos colocavam o documento falso de posse da terra numa caixa com os insetos chamados “grilos”, para que o papel ficasse amarelado e com pequenos buracos, ganhando uma aparência de antigo. Com a cumplicidade bem remunerada dos donos de cartórios, a espinha dorsal da burocracia do Brasil, o que era falso ganhava uma primeira camada de legalidade. Assim começava o crime de roubar terras públicas para posse e lucros privados.

Com as décadas – e a internet – a grilagem foi se tornando mais e mais sofisticada. Hoje, por exemplo, como SUMAÚMA já mostrou, há notórios grileiros se engajando em projetos para o mercado de carbono e se apresentando como “verdes”, num novo capítulo do avanço sobre a floresta.

O ponto de virada decisivo para a grilagem são as leis – o momento em que as terras públicas que os criminosos se apropriaram são legalizadas sob a justificativa maliciosa da “regularização fundiária”. Projetos de lei apresentados e aprovados nas Câmaras de vereadores, no caso das áreas públicas dos municípios, nas Assembleias Legislativas dos estados, no caso das terras públicas estaduais, no Congresso Federal, no caso das terras públicas federais. Na esfera federal, só neste século foram aprovados dois projetos, batizados por ambientalistas de Leis da Grilagem: uma no segundo mandato de Lula (PT), outra no de Michel Temer (MDB). Bolsonaro tentou emplacar um projeto que levava a legalização dos grilos a níveis assombrosos, em especial na Amazônia, mas não conseguiu aprová-lo.

Largamente associada às elites brasileiras, a grilagem atravessa várias camadas de uma rede que obrigatoriamente infiltra seus agentes nos três poderes – Legislativo, Judiciário e Executivo. Infiltra em tal profundidade que em muitos casos se torna difícil – talvez impossível – separar essa rede criminosa do próprio Estado. Nessa mágica do crime, a área roubada se torna então loteamentos privados, no caso das cidades; fazendas, no caso dos biomas. E os grileiros passam de bandidos a empresários, nas zonas urbanas; proprietários rurais, “homens do campo”, representantes do agronegócio em regiões como a Amazônia.

Vale reforçar que os presos pela execução de Marielle, pela morte do motorista Anderson Gomes e pela tentativa de homicídio da então assessora Fernanda Chaves são um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Rio de Janeiro, um deputado federal e um policial que ocupou a cúpula da segurança pública. E também vale lembrar o fato, que pode ou não ter conexão, de que Rivaldo Barbosa assumiu o cargo máximo da polícia civil do Rio de Janeiro um dia antes do crime. Naquele momento, o estado do Rio estava sob intervenção federal, comandada pelo general Walter Braga Netto, que nos anos seguintes se tornaria ministro da Casa Civil e depois ministro da Defesa no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL). E, em 2022, finalmente candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, que buscava a reeleição. Hoje investigado por envolvimento na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, com o objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e perpetuar Bolsonaro no poder, Braga Netto emitiu uma nota apontando o general Richard Nunes como responsável pela nomeação de Rivaldo Barbosa para a chefia de polícia. Nunes, por sua vez, confirmou que a responsabilidade era dele.

‘Urbanismo miliciano’

Em geral, a grilagem está mais relacionada no imaginário a regiões que as populações urbanas da porção sul do Brasil consideram distantes, como a Amazônia. A partir deste século, porém, pesquisadores têm alertado para o crescimento do que chamam “urbanismo miliciano” em cidades como Rio de Janeiro. Miliciano porque ligado a grupos criminosos armados e composto em parte por ex-policiais civis e militares e ex-bombeiros (ou mesmo ainda ativos nas corporações), associados a representantes eleitos e funcionários da burocracia do Estado para dominar e explorar favelas e comunidades pobres, grilar terras e controlar a gestão da cidade.

Chiquinho e Domingos Brazão, suspeitos de serem os mandantes do crime, e o policial Rivaldo Barbosa (à dir.), que teria sido o mentor intelectual do assassinato. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Como vereadora do PSOL, partido à esquerda no cenário político brasileiro, Marielle se opunha à legalização dos “grilos”, como são chamadas as áreas públicas roubadas, transformando-se num obstáculo para grileiros e milicianos que atuam na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Na eleição que a tornou vereadora, ela foi a quinta mais votada da cidade – e Chiquinho Brazão viu diminuir seus votos.

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, um grupo de urbanistas renomados, entre eles Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e coordenadora do LabCidade, chama atenção para o urbanismo miliciano, alertando sobre o fato de que o fenômeno se acentuou e profissionalizou neste século:

“Os negócios que envolvem a produção da cidade, especialmente a captura de terras, os mercados imobiliários, a regularização fundiária e o fornecimento de serviços e equipamentos urbanos, são estratégicos para a ampliação e manutenção deste sistema político perverso. Parte dos vereadores possui relações com esse mercado, participando, inclusive, como empreendedores do ramo. No limite, legislando pela ampliação e respaldo de práticas criminosas, dando uma roupagem legal a processos de apropriação de terras públicas, negação da função social da propriedade, além de degradar o meio ambiente.

Trata-se mais do que uma fonte de extração de renda, mas de uma mercadoria política por meio da qual melhorias no território – regularização fundiária, obras de infraestrutura, empreendimentos habitacionais – ampliam o domínio político-eleitoral e o controle territorial e populacional inclusive, em alguns casos, por grupos armados. Por isso, trata-se de um dos objetos centrais da atuação das Câmaras Municipais, que regulam o tema e direcionam investimentos públicos”.

O corpo de Marielle foi perfurado a balas porque ela e seu partido ousaram se contrapor a esse negócio altamente lucrativo e enraizado nas instituições do Estado. E tudo isso agravado pelo fato de que aquela que ousou desafiar os grileiros e milicianos do Rio de Janeiro e suas conexões criminosas era mulher, negra, lésbica e da favela – representante das vozes emergentes que nos últimos anos deixaram as margens para ocupar os centros.

Chico Mendes e Dorothy Stang, mortos por lutar contra a grilagem. No centro, área afetada por desmatamento no Pará. Fotos: Antonio Scorza/AFP, Pedro Ladeira/Folhapress e CPT/Anapu

A cada ano as eleições municipais se tornam mais e mais estratégicas para os grupos de poder que operam a grilagem. Em grande parte da Amazônia, seus representantes dominam os Legislativos municipais e as prefeituras. Na maioria dos estados, o controle também é deles. O Congresso brasileiro está coalhado de grileiros e operadores da grilagem que se apresentam como representantes do agronegócio. A grilagem une os pontos do mapa do Brasil, porque até hoje a disputa pelas terras que os portugueses tomaram dos povos originários em 1500 não terminou – como a perversão chamada “marco temporal” acabou de mostrar.

A disputa do futuro

Há, porém, um elemento novo e decisivo. O que era (mais) uma curiosidade para aqueles que viam o Brasil desde a Europa, uma espécie de faroeste contemporâneo, tornou-se uma questão central a partir do momento que o superaquecimento global e a perda brutal de biodiversidade passaram a ameaçar a própria sobrevivência humana no planeta. A grilagem abre espaço e se conecta aos empreendimentos que, além de violar a função social da terra, violam a própria Terra. E isso diz respeito a toda a humanidade.

Marielle se contrapôs ao projeto de lei de Chiquinho Brazão, segundo testemunha em depoimento à Polícia Federal, porque não “atendia áreas carentes, mas regiões de classe média e alta”. Também os conflitos que na Amazônia já mataram 553 pessoas neste século, segundo a Comissão Pastoral da Terra, são marcados pela disputa entre a terra para muitos viverem e a terra para poucos lucrarem. Os conflitos viram massacres, já que são os grileiros e suas milícias de pistoleiros, com frequente envolvimento das polícias, que ameaçam, incendeiam casas e escolas, expulsam e matam lideranças das ocupações e assentamentos de camponeses. Quando um grileiro morre, é por disputa entre iguais.

Parte dos ambientalistas brasileiros considera os camponeses invasores da floresta, o que é um equívoco perigoso. Os agricultores familiares estão na floresta e lá ficarão. É preciso que os assentamentos sejam reconhecidos e apoiados, desde que seus moradores se comprometam com os princípios da agroecologia e o cultivo sem agrotóxicos. Enfrentando os grileiros com seus corpos, com frequência sem apoio das organizações socioambientais e ignorados pelo Estado, aos agricultores restará, se nada for feito, se unir à grilagem ou às facções do crime organizado que avançam aceleradamente sobre a Amazônia.

É também pelo destino da terra que extremistas de direita como Bolsonaro insistem que tudo o que os Indígenas querem é ser “proprietários”. Porque então a terra deixa a condição de ser vivo para se tornar mercadoria, que pode ser apropriada por grileiros e milicianos, esvaziada e comercializada. Seduzida por bens materiais e pelo consumo, parte das lideranças Indígenas e de comunidades tradicionais tem se deixado cooptar pela grilagem, pelo comércio de madeira e pelo garimpo, mudando radicalmente seu modo de vida e sua compreensão do mundo.

Sem reforma agrária e demarcação de Terras Indígenas não haverá floresta em pé – e, sem respeitar a função social da moradia nas cidades, as milícias continuarão avançando e controlando porções cada vez maiores dos territórios. É esse o grande tema das eleições municipais deste ano. Enquanto a sociedade não expulsar grileiros e milicianos da estrutura do Estado, o Brasil continuará usurpado e tomado por clãs como o dos Brazão. E mais lideranças como Marielle Franco, Chico Mendes, Dorothy Stang e milhares que morreram no anonimato vão tombar.

Seja no Rio de Janeiro ou no Pará, a grande disputa é sobre o domínio da natureza, a quem pertence a terra e qual o destino dos territórios. Terra para propriedade privada, para o lucro de uma minoria rica e predatória – ou casa a ser partilhada em nome da vida de todos os habitantes do planeta?

É esse o impasse que determinará a qualidade de vida das crianças. Que a imagem de Marielle, brutalmente arrancada do território de afetos, nos lembre de onde está o centro da luta. E convença aquelas e aqueles que ainda esperam sentados por um milagre a levantar e resistir.

Marielle presente.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum

Marielle Franco enfrenta um corredor de policiais militares durante protesto na saída da Câmara de vereadores do Rio, em 2017. Foto: Bárbara Dias/Zimel Press/Folhapress

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