O clima é uma expressão da vida. Esquecemos disso por nossa conta e risco. As enchentes e os deslizamentos que causaram destruição no litoral norte de São Paulo no feriado de carnaval são bem mais do que desastres naturais – precisam ser reconhecidos como acontecimentos provocados por seres humanos, porque quanto mais nós devastarmos a Amazônia e outros pilares vivos do mundo natural, menos estáveis serão o céu acima e o solo abaixo de nós.
Agora que entramos na era das rupturas climáticas, calamidades tão ou mais perturbadoras vão ocorrer mais vezes e alcançarão mais gente de todas as camadas sociais. Moradores das periferias pobres já conhecem essa realidade, porque historicamente são empurrados para as paisagens mais degradadas e vulneráveis. As pessoas urbanas, da classe média, até há pouco tempo podiam viver em suas bolhas de ar-condicionado fingindo que nada mudou, enquanto os super ricos bem informados conseguiam se antecipar aos problemas, agindo como indivíduos egoístas, e construir os próprios bunkers para se esconder do apocalipse.
A última tragédia mostrou que nem mesmo o dinheiro pode garantir uma fuga segura. A enchente monstruosa – choveu o dobro da média para o mês inteiro de fevereiro em apenas nove horas – inundou e fez desmoronar barrancos desmatados sobre a estrada que liga a capital paulista às praias de São Sebastião, Ilhabela, Ubatuba e Bertioga, no litoral norte do estado de São Paulo. Ao menos 65 pessoas morreram, 4 mil foram forçadas a deixar suas casas e inúmeros paulistas ricos viram o feriado se transformar em pesadelo. Turistas em pânico começaram a comprar, houve problema de abastecimento e os moradores relataram que os preços da água e de outros itens essenciais dispararam.
Limpar a lama desmoronada e reconstruir a estrada não resolve os problemas. Catástrofes assim continuarão a ocorrer, e em frequência maior, a não ser que a sociedade brasileira reconheça que precisa restaurar a desgastada infraestrutura natural do país. No estágio atual da história da humanidade, esse desafio urgente se impõe a todos os países – se o século 20 foi o do concreto e aço, o 21 deve ser o do plantio de árvores e da proteção dos biomas essenciais para a estabilidade climática.
Casas destruídas em deslizamento na Barra do Sahy após tempestade no litoral norte do estado de São Paulo no fim de semana de carnaval. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
A Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal, o Cerrado, a Caatinga e os Pampas não apenas absorvem dióxido de carbono, eles ajudam a regular as chuvas, a temperatura e a composição química do ar que respiramos. Árvores, claro, cumprem um papel nisso, mas a maior parte do trabalho é feita por minúsculas formas de vida, bactérias – trilhões e trilhões de criaturas que estão constantemente reciclando, liberando gases e assegurando que a atmosfera da Terra seja excepcionalmente habitável. Sempre que drenamos um pântano, derrubamos uma floresta e construímos sobre uma planície, nós enfraquecemos essa capacidade, enfraquecemos o suporte que essas criaturas dão à existência de vida no planeta.
Por outro lado, quem protege e cuida das florestas e de outros centros de vida contribui para a estabilidade desse sistema global e essencial de suporte. Isso é um princípio fundamental da biogeoquímica moderna e da Ciência do Sistema Terra, embora muitas comunidades da floresta já saibam disso há muito mais tempo. Não é à toa que o intelectual indígena Davi Kopenawa Yanomami reivindica que seu povo “sustenta o céu”. O não indígena, a pessoa de fora, pode enxergar os povos originários simplesmente como guardiões das árvores, mas eles veem a si mesmos mais como parte da floresta e matéria orgânica desse pilar de vida.
Assim, a luta pela Amazônia seria entre, de um lado, os que dilapidam a floresta em nome do curto prazo, dos interesses individuais, do mercado e, do outro, os que querem fortalecer a floresta para o bem de uma biossociedade viva, interdependente e sustentável. Tudo o que acontece na Amazônia é, portanto, uma história climática, uma história política e uma história de sobrevivência.
Isso ajuda a enquadrar o que, de outra maneira, talvez pudesse ser considerado mero equívoco, acidente, ou incidente. Veja a mais recente reportagem exclusiva de SUMAÚMA, sobre a emergência humanitária no território Yanomami invadido por garimpos ilegais. A editora especial Talita Bedinelli revela que o governo Jair Bolsonaro foi avisado por profissionais de saúde – ainda em 2020 – que aldeias Yanomami estavam sendo destruídas por doenças, violência, abuso de álcool e drogas e prostituição que chegaram junto com os garimpeiros. Sua negligência deliberada, que levou a uma investigação por genocídio, contribuiu para as mortes evitáveis de pelo menos 570 crianças, denúncia feita por SUMAÚMA e agora coberta pela mídia do mundo inteiro. Talita também acompanhou os primeiros passos do governo Lula para expulsar os garimpeiros ilegais da TI Yanomami e os problemas enfrentados pela juventude indígena que hoje vive sob o domínio dos criminosos.
A muitos quilômetros dali, em outra parte da Amazônia, a mesma negligência maligna do Estado pôde ser detectada nos assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no ano passado. Em entrevista publicada nesta edição, a viúva de Bruno, Beatriz Matos, disse à diretora de redação de SUMAÚMA, Eliane Brum , que seu marido não teria sido assassinado se o governo bolsonarista não tivesse desmantelado os sistemas de vigilância ambiental e dado passe livre às gangues criminosas. “Deixaram as coisas chegarem àquele ponto [no Vale do Javari] por negligência, porque o governo de Bolsonaro não fez coisas básicas. É o mesmo que estamos vendo agora com os Yanomami, a negligência dele está ficando clara para o mundo inteiro”, afirma Beatriz.
Recém-nomeada diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas, a antropóloga voltou pela primeira vez à região onde Bruno e Dom foram mortos em 27 de fevereiro. Um dos objetivos da viagem liderada pela ministra Sonia Guajajara, e da qual participou também Alessandra Sampaio, viúva de Dom, era levar uma mensagem: o Estado vai retomar a região das mãos do crime organizado.
Dom e Bruno hoje fazem parte de uma perturbadora e longa lista de mártires da floresta, que se tornam símbolos de luta para ativistas ambientais e dos direitos da terra. A missionária estadunidense Dorothy Stang, assassinada 18 anos atrás, é agora retratada no imaginário popular tanto como onça quanto como santa. O antropólogo Edimilson Rodrigues de Souza faz uma análise de seu legado e fala de sua transmutação iconográfica.
A Amazônia parece atrair e nutrir personagens maiores que a vida – e nem todos, de forma alguma, estão do lado da restauração da floresta. Alguns dos políticos locais são bastante explícitos em defender práticas destrutivas e negar o dano que elas causam às pessoas, à terra e aos rios. O prefeito pró-mineração de Itaituba, Valmir Climaco, por exemplo, insiste – contrariamente a qualquer conselho médico e evidência científica – que o mercúrio, poluente tóxico da mineração, faz bem para a saúde. Colaboradora de SUMAÚMA, a jornalista Catarina Barbosa perguntou ao prefeito garimpeiro por que ele assinou tantas licenças de mineração e ignorou o impacto delas nas comunidades indígenas.
Em um nível mais amplo, um dos principais problemas no Brasil está na regulamentação escassa e frouxa que permite aos garimpeiros ilegais misturar seu ouro ao ouro legal. Em um artigo de opinião, os professores de Direito Octávio Ferraz, do King’s College de Londres, e Thomas Bustamante, da Universidade Federal de Minas Gerais, pedem ao presidente Lula que feche uma das maiores brechas legais revogue uma determinação que facilita a compra de ouro extraído de terras indígenas.
O novo governo também precisa mitigar os catastróficos impactos de outras políticas postas em prática pelas administrações anteriores. O mais concreto símbolo de erros do passado é a hidrelétrica de Belo Monte – a maior da Amazônia – que foi aprovada por Lula e construída por Dilma Rousseff e está agora devastando o rico ecossistema da Volta Grande no Rio Xingu.
A pedido de SUMAÚMA, a repórter Helena Palmquist explica como, perturbado pelos níveis de água do Xingu, um antigo berçário de peixes virou um cemitério. Ainda nesta edição Helena conta a comovente história de perda de uma sumaúma bicentenária em Belém do Pará. A tristeza vivida pela cidade foi mais uma prova de que as pessoas amam, valorizam e dependem da natureza muito mais que os mercados e a maior parte da mídia apreciam ou compreendem. Ao lado do clima, as árvores e outras manifestações vibrantes de vida fortalecem nosso espírito.
Agradecemos por estar conosco nesta 11a edição e esperamos que aproveite a leitura,
Jonathan Watts
Idealizador e diretor de relações internacionais de SUMAÚMA
Tradução: Thiago Leal
ÁREA DESMATADA NA FLORESTA AMAZÔNICA PERTO DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU, NO MATO GROSSO. FOTO: PABLO ALBARENGA/SUMAÚMA