Nos últimos meses, a Amazônia e o Pantanal enfrentaram as queimadas mais severas em duas décadas. Rios como Xingu e Iriri secaram em muitos trechos e o Negro, no Amazonas, atingiu seu menor nível dos últimos 122 anos. Biomas inteiros têm sido afetados cada vez com mais intensidade pela mudança do clima. O que significa, na prática, que estamos vendo queimar, morrer de sede ou ter que se adaptar a um novo lar menos adequado animais, árvores, plantas, fungos e inúmeros outros seres mais-que-humanos. A morte desses seres, por sua vez, diminui a capacidade da Natureza de atuar como reguladora do clima e minimizar os impactos da ação humana sobre o planeta. Há uma relação direta entre clima e destruição da Natureza. Quanto mais calor, mais incêndios, mais árvores morrem e, com isso, diminui a capacidade das florestas de tirar gases poluentes da atmosfera – e a temperatura aumenta mais. É um círculo formado por dois assuntos completamente conectados, mas que a diplomacia dos países trata de maneira separada, como se não tivessem conexão. Clima é tema da COP do clima. Natureza é tema da COP da biodiversidade. As duas Conferências das Partes da ONU têm metas e planos distintos e que pouco dialogam, o que prejudica a resposta eficaz para a emergência que vivemos.
Às vésperas do início de mais uma rodada das duas conferências – a da biodiversidade, COP-16, começa em 21 de outubro, em Cali (Colômbia), e a do clima, COP-29, em 11 de novembro, em Baku (Azerbaijão) –, SUMAÚMA conversou com pesquisadores que acompanham o tema para entender por que as duas COPs são separadas e quais as implicações disso para a vida do planeta.
Já faz algumas décadas que cientistas de diversas partes do mundo vêm chamando a atenção sobre essa conexão entre Natureza e clima, que se torna cada vez mais clara à medida que a Terra aquece, espécies são impactadas e o planeta vai perdendo a sua capacidade natural de regular o clima. “Há décadas a comunidade científica vem fazendo pressão para que a crise climática e a perda de biodiversidade sejam discutidas conjuntamente no âmbito político, advertindo que um desafio não pode ser solucionado sem atacar ao mesmo tempo as causas do outro. Só que ainda há muitos países reticentes em reunir essas duas agendas, e isso vem atrasando mais a busca por soluções”, alerta o pesquisador Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES).
De acordo com Joly, no âmbito dos regimes jurídicos internacionais, a origem dessa separação entre as áreas está na forma como as agências intergovernamentais ambientais foram estruturadas. Em 1992, quando o Rio de Janeiro sediou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), foram instituídos dois mecanismos específicos para tratar os assuntos: a mudança do clima no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e a biodiversidade no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD). Cada convenção-quadro também passou a reunir os seus especialistas, com metodologias e conceitos próprios.
Thelma Krug, que foi vice-presidenta do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e é pesquisadora titular aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), relembra que, nos textos das convenções-quadro, quando foram instituídas, não havia menção à relação explícita entre clima e biodiversidade. Além disso, quatro anos antes da Rio-92, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente havia criado, junto com a Organização Meteorológica Mundial, o (IPCC), um comitê composto por centenas de cientistas de todo o mundo que passou a avaliar periodicamente o conhecimento científico do tema e a publicar relatórios para dar suporte às decisões políticas sobre o aquecimento do planeta. “Note que naquela época não existia um equivalente do IPCC para a biodiversidade, então naturalmente as políticas sobre os temas evoluíram em ritmos diferentes. A Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU, que passou a cumprir uma função semelhante, só foi criada em 2012”, explica Joly.
Os grandes compromissos internacionais também progrediram em tempos distintos. No regime jurídico climático foi firmado, em 2015, o Acordo de Paris, em que 194 países e a União Europeia se comprometeram em limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2 graus Celsius em relação aos níveis pré-industriais, com esforços para limitar o aumento a 1,5. Já o Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, que seria o equivalente para a biodiversidade, foi assinado somente em 2022, quando 196 nações acordaram em assegurar, entre outras coisas, que pelo menos 30% das áreas terrestres e marítimas do mundo sejam conservadas e restauradas até 2030. Mas a preocupação de muitos pesquisadores é que a falta de um olhar mais integrado para esses compromissos prejudique o cumprimento de ambos os acordos.
O Acordo de Paris, assinado em 2015 por 194 países e pela União Europeia, estabeleceu a meta de aumento da temperatura global para 1,5 grau Celsius. Foto: UN/Mark Garten
A ciência avança com velocidade
Thelma Krug entende que a forma com que os temas vêm sendo comunicados pela imprensa também afeta a falta de percepção sobre sua conexão. “A urgência climática, a meu ver, é muito mais bem comunicada na mídia, por entender-se que o aumento da temperatura média da superfície, as secas prolongadas, as ondas de calor, as inundações têm um impacto direto sobre o sistema humano. Mas a relação da perda da biodiversidade afetando o sistema climático, incluindo o ciclo hídrico, é bem menos explorada. Não entender a Natureza inseparável entre clima, biodiversidade, qualidade de vida e desenvolvimento sustentável implica em continuar a buscar soluções para cada tema separadamente, não reconhecendo as retroalimentações inevitáveis”, explica.
Essa relação já vem sendo bem detalhada pela ciência há um bom tempo. Um estudo publicado em 2022 na revista Global Change Biology trouxe uma revisão de pesquisas das últimas duas décadas que mostraram como ações de conservação que interrompem, desaceleram ou revertem a perda de biodiversidade têm o potencial de, simultaneamente, desacelerar significativamente as mudanças climáticas causadas pela ação humana. Redução do desmatamento e restauração de ecossistemas (especialmente ecossistemas capazes de absorver mais carbono, como florestas e manguezais) estão entre as ações de conservação com o maior potencial para mitigar o aumento da temperatura global, indica o estudo. “As estreitas interligações entre biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas (…) raramente são tão integradas quanto deveriam na gestão e nas políticas”, alertam os autores no estudo.
Conclusões semelhantes foram publicadas em 2024 na revista BioScience, em um artigo assinado por pesquisadores brasileiros e americanos que detalha seis pontos-chave nos quais a conservação da biodiversidade pode contribuir para a mitigação das mudanças climáticas: conservar ambientes naturais, que são estoques e sumidouros de carbono; restaurar adequadamente áreas degradadas; conservar fauna e flora locais de maneira integrada; trocar a expansão de áreas agrícolas pelo aumento de produtividade; incorporar a biodiversidade aos modelos de negócios; e unir as COPs de biodiversidade e clima. No estudo, os autores afirmam, por exemplo, que os compromissos firmados pelos países signatários do Acordo de Paris, de zerar emissões líquidas de gases poluentes até metade do século, provavelmente fracassarão se questões de biodiversidade não forem totalmente integradas à agenda climática internacional. “Nesse sentido, a integração das conferências ambientais aumentaria as sinergias entre os acordos ambientais multilaterais e as instituições internacionais. Isso promoveria a colaboração entre especialistas em tópicos relacionados, alinhando métodos e modelos e levando a uma melhor avaliação das compensações e interações entre diferentes tipos de impactos ambientais e políticas”, descreve o artigo. Atualmente a ONU classifica a biodiversidade como “a mais forte defesa natural contra as mudanças climáticas”.
Ao mesmo tempo que as mudanças climáticas afetam a Natureza, a destruição das florestas reduz a capacidade desses ecossistemas de regularem o clima. Foto: Ahmad Jarrah/SUMAÚMA
Mas a confluência política se dá a passos lentos
Ainda que a percepção sobre a conexão entre as áreas esteja se dando de forma lenta no âmbito político, alguns avanços que vêm sendo observados nos últimos anos têm animado os pesquisadores. Krug explica, por exemplo, que com o correr do tempo e o avanço da ciência sinalizando a relação mútua entre clima e biodiversidade, o tema passou a ter um espaço maior nas análises do IPCC. “O primeiro relatório de avaliação do IPCC, que é de 1990, menciona de forma muito resumida que uma ‘rápida mudança no clima pode não permitir que as espécies se adaptem e, assim, a biodiversidade poderia ser reduzida’”, destaca a pesquisadora. Já no sexto e mais recente Relatório de Avaliação (AR6) do comitê, de 2023, há uma descrição mais abrangente sobre os impactos do aquecimento global na biodiversidade, como a projeção de que um aumento de temperatura de 2 graus Celsius até 2100 colocaria até 18% de todas as espécies da Terra em alto risco de extinção; que são necessárias medidas de adaptação para evitar o declínio substancial da biodiversidade, como, por exemplo, a expansão de áreas totalmente protegidas e práticas de restauração e uso sustentável da terra; e que nos ecossistemas oceânicos e costeiros o risco de perda de biodiversidade varia de moderado (1,5 grau Celsius de aquecimento global) a muito alto (2 graus Celsius).
Para a professora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo Maria Gasalla, um dos marcos nesse processo de conexão entre as áreas foi a publicação, em 2021, de um relatório conjunto entre o Painel Intergovernamental sobre Mudança no Clima (o IPCC) e a Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU (IPBES) sobre biodiversidade e mudança climática.
Resultado de um workshop realizado durante quatro dias com 50 dos maiores especialistas mundiais nos dois temas, o documento analisou a conexão entre a proteção da biodiversidade e a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e trouxe como principal conclusão o fato de que as mudanças sem precedentes no clima e na biodiversidade têm se combinado e aumentado as ameaças à vida em suas mais variadas formas e ao bem-estar da população mundial. A única maneira de detê-las, explicita o documento, é por meio de uma abordagem conjunta. O relatório também mostrou como ações estritamente focadas no combate às mudanças climáticas podem causar prejuízos diretos ou indiretos à Natureza se não considerarem, por exemplo, características dos biomas.
Um exemplo são os projetos de plantio de árvores em larga escala, muitas vezes de reflorestamento com monoculturas, que visam aumentar o sequestro de carbono, gás que ajuda a aquecer a atmosfera, mas que são frequentemente prejudiciais à biodiversidade, principalmente quando feitos com espécies de árvores exóticas para a região. De acordo com o documento, muitos cenários até então usados pelo IPCC que consideravam essas práticas não diferenciavam entre regeneração natural de florestas, reflorestamento com plantações e florestamento de áreas não cobertas anteriormente por árvores, o que dificultava a avaliação dos impactos à biodiversidade.
Atualmente, destaca a pesquisadora, é possível observar um esforço cada vez maior de aproximação das áreas, como a declaração conjunta entre vários países sobre Natureza, clima e pessoas, publicada durante a 28ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas , a COP-28, que ocorreu no final de 2023, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, estabelecendo caminhos para ações coordenadas e destacando a importância de uma aliança entre o Acordo de Paris e o Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal. Poucos meses depois, em janeiro de 2024, foi feita uma declaração de intenção dos secretariados da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), propondo, entre outras coisas, resultados colaborativos, ampliação de financiamento para clima e Natureza e uma maior troca entre fontes e coleta de dados, métricas e metodologias.
Na COP-28, que aconteceu em 2023 nos Emirados Árabes Unidos, foi assinado um documento propondo ações coordenadas voltadas para o clima e para a biodiversidade. Foto: Anthony Fleyhan/COP-28
Entidades da sociedade civil como o think tank colombiano Transforma, focado na promoção da ação climática, entendem que esse é um momento estratégico para que os próximos passos sejam dados, já que os países signatários do Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal estão elaborando seus novos Planos de Ação e Estratégias Nacionais de Biodiversidade, que devem ser apresentados ainda durante a COP-16, enquanto os países que assinaram o Acordo de Paris têm até fevereiro de 2025 para submeter à UNFCCC suas novas versões das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês, que representam as metas de cada país para se alinhar ao acordo climático). Em um documento de recomendações recentemente divulgado, a instituição defende a ideia de que a COP-16, que acontecerá em outubro na Colômbia, pode ser a primeira oportunidade para que haja um convite formal às Partes para que revisem seus planos de ação nacionais tanto de clima como de biodiversidade de forma coordenada e colaborativa.
O think tank indica ainda que outra estratégia com potencial de ser eficaz para aproximar as agendas é uma colaboração maior entre a Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU (IPBES) e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o que vem acontecendo, na maioria das vezes, informalmente. Uma maneira de estimular essa colaboração, indica a instituição, seria o convite para um trabalho conjunto entre a IPBES e o IPCC no texto de decisão da COP-16.
Por essas e outras propostas que têm circulado às vésperas dos próximos encontros de líderes, as expectativas para as conferências da ONU que se aproximam são otimistas: “Acredito que se a presidência da COP-16 mantiver uma política integradora, ou seja, orientando que todas as intervenções reflitam e considerem o nexo clima-biodiversidade, poderemos ter avanços importantes nas soluções e também nas negociações”, opina Gasalla. O doutor em zoologia Bráulio Dias, atualmente diretor do Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e membro da comitiva do governo que estará presente na COP-16, reconhece que há uma necessidade de maior cooperação nas agendas, mas explica que o governo já está trabalhando internamente com uma interligação entre os temas tanto no Plano Clima como na Estratégia e Planos de Ação Nacionais para a Biodiversidade, documento que deverá ser apresentado na Colômbia em novembro. Segundo ele, a relação clima-biodiversidade deverá ser objeto de outras duas das decisões a serem adotadas na COP-16. “Mas as minutas dessas decisões estão repletas de colchetes indicando a dificuldade de chegarmos a consensos”, resume o especialista.
Ainda não se sabe se as próximas conferências realmente trarão avanços significativos ou se a chance de uma maior conexão entre as agendas ficará para 2025, quando o país mais biodiverso do mundo, o Brasil, sediará a trigésima edição da principal conferência mundial sobre clima, a COP-30. Independentemente da velocidade com que a conexão entre as agendas avança, o que invariavelmente tem ficado cada vez mais claro para pesquisadores, líderes e para a sociedade em geral é que a mentalidade que gerou a crise climática não é a mesma que vai nos ajudar a sair dela.
Este artigo foi produzido com o apoio de Climate Tracker América Latina e FES Transformação
As queimadas, agravadas pelo aquecimento global, estão consumindo também os territórios Indígenas, onde vivem os guardiões da Natureza. Foto: Mayangdi Inzaulgarat/Ibama
Reportagem e texto: Jaqueline Sordi
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Gustavo Queiroz e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum