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No mesmo dia em que o STF retomou o julgamento sobre o marco temporal, indígenas queimaram cruzes com o novo número do projeto de lei que será votado no Senado. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

Há inúmeras razões para que a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, chame o projeto de lei do marco temporal, o PL 490, de “genocídio legislado”. A tese de que só têm direito à demarcação os indígenas que ocupavam seu território em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, está no centro do debate, mas é apenas uma das atrocidades do texto. O projeto que pode virar lei é muito mais ambicioso: permite o plantio de transgênicos em terras indígenas, retoma a política da ditadura sobre povos isolados, abre a possibilidade para que estradas e hidrelétricas sejam construídas sem consulta prévia aos indígenas nem a órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas. E, o que é ainda pior: pode tirar dos povos originários territórios que já estão demarcados, a partir de critérios subjetivos sobre o que é “ser indígena”.

Aprovado às pressas pelos deputados federais na Câmara, em 30 de maio, o Projeto do Apocalipse agora está sob análise do Senado. “É uma tentativa de legalizar coisas ilegais”, sintetizou a SUMAÚMA o advogado indígena Eliésio Marubo, procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). “Coloca em extrema fragilidade os povos e as terras indígenas, mesmo as que já estão demarcadas.”

Ameaçada pelo projeto em debate no Congresso, a região do médio rio Javari registra o maior número de povos indígenas isolados da Amazônia. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Há forte pressão de parlamentares ruralistas e bolsonaristas para que o projeto de lei seja votado em regime de urgência também no Senado, isto é, diretamente no plenário, sem passar por análise prévia em comissões temáticas. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro da Casa Civil no governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ), apresentou na terça-feira (6 de junho) um requerimento para sua tramitação em regime de urgência. Caberá ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), decidir se põe em votação o requerimento – ele tem dito que não repetirá no Senado o que aconteceu na Câmara. O pedido do senador do Piauí foi feito um dia antes de o ministro bolsonarista André Mendonça, indicado por Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal por ser “terrivelmente evangélico”, paralisar novamente o julgamento do marco temporal na corte. Diante do vácuo de uma decisão do Judiciário, a bancada articulada no Congresso na defesa de interesses dos latifundiários aumenta a pressão para que se aprove o marco temporal.

O texto aprovado na Câmara é uma aberração que contraria todo o conhecimento de séculos: dá, ao governo federal, a possibilidade de retomar terras originárias já demarcadas em caso de “alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. Com isso, escancara-se a porta para que seja questionado, judicialmente, se um determinado povo “deixou de ser indígena” por usar, por exemplo, automóveis, computadores ou telefones celulares. Esse é um debate totalmente superado por antropólogos – o líder Yanomami Davi Kopenawa, por exemplo, não deixou de ser indígena quando se tornou autor de livros publicados em diversos países ou ao viajar o mundo defendendo a causa de seu povo e da conservação do planeta. Mas a possibilidade está prevista no artigo 16 do PL do Fim do Mundo, em total sintonia com declarações do então presidente Jair Bolsonaro, que chegou a afirmar que “o índio mudou, tá evoluindo… Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.

Caso a União decida que indígenas não são mais indígenas, o texto do projeto permite a retomada de seus territórios, “dando-lhes outra destinação de interesse público” ou para reforma agrária. O deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), relator do projeto, assim defendeu o artigo do texto em conversa com jornalistas: “Naturalmente, se morrerem todos os índios, se por algum motivo as pessoas forem embora, e não há mais ali os elementos que caracterizam a reserva indígena, o que é que deve acontecer?”.

As pautas anti-indígenas e antinatureza em um único projeto

Em encontro no dia 9 de maio, parlamentares ruralistas se articularam para aprovar o projeto de lei do marco temporal. Foto: Frente Parlamentar Agropecuária

O texto que a Câmara aprovou foi produzido pelo deputado Arthur Maia a partir da colagem de 14 projetos de lei, todos com foco na restrição de direitos dos povos indígenas às suas terras. O projeto hibernava na Câmara desde junho de 2021.  Mas quando a presidenta do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, anunciou a retomada do julgamento do marco temporal em 7 de junho, a bancada ruralista agiu para aprová-lo em regime de urgência. Junto com o marco temporal, a bancada enfiou nos 33 artigos do projeto todas as maldades que tenta aprovar há anos no Congresso para passar a motosserra nos territórios indígenas. No Supremo, a análise do marco temporal deve ser retomada somente em outubro.

Vale tudo: de transgênicos a hidrelétricas nas terras indígenas

Criada durante a ditadura militar e treinada para usar técnicas de tortura, a Guarda Rural Indígena atuou como força de policiamento e repressão nas aldeias. Foto: Funai

A sanha predatória sobre as terras indígenas não poupou sequer os 114 povos indígenas isolados no Brasil. Segundo a Funai, são isolados “os grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e intenso com os não-índios”. Desde o fim da ditadura empresarial-militar, nos anos 1980, a Funai, liderada pelo indigenista Sydney Possuelo, adotou a política de não forçar o contato e criou um departamento com o fim específico de proteger a decisão dos povos isolados de permanecerem nessa condição.

O projeto de lei que a Câmara aprovou destrói por completo essa política pública. No artigo 28, afirma que, “no caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito às suas liberdades e aos seus meios tradicionais de vida, e deve ser evitado, ao máximo, o contato com eles, salvo para prestar auxílio médico ou [e aí vem o pé de cabra para arrombar a porta] para intermediar ação estatal de utilidade pública”. Mais uma vez, os parlamentares e seus financiadores tentam avançar sobre as terras daqueles que decidiram que vivem melhor sem manter contato. “É bem ambíguo definir o que pode ser uma ação estatal de utilidade pública. A construção de uma grande hidrelétrica pode ser considerada de utilidade pública, a depender dos argumentos”, alertou a advogada Carolina Santana, que trabalha para o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato.

“O que mais matou índio ao longo da nossa história foram os vírus”, já havia declarado Sydney Possuelo. Entre os séculos 16 e 17, a estimativa dos pesquisadores é que mais de 90% dos indígenas tenham sido exterminados, a maioria por doenças transmitidas pelos invasores europeus. Já no século 20, durante a ditadura, quando Funai e Exército forçaram o contato com povos isolados da Amazônia para arrancá-los de seus territórios e construir obras como as rodovias Transamazônica e BR-174, ocorreram dezenas de casos de epidemias de doenças como gripe e sarampo, com centenas de indígenas mortos.

Ao aprovar o Projeto do Apocalipse, o Congresso escolheu reeditar esses tempos de horror e garantir a prioridade do interesse privado sobre o que está previsto no artigo 231 da Constituição: os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

O artigo 20 do texto já aprovado por 283 deputados federais permite “a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico [que] serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”.

Adiante, o projeto abre a possibilidade de “atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”. Isso significa que empresários rurais poderão fechar acordos com os indígenas – ainda que não de arrendamento – para explorar seus territórios. O projeto aprovado pelos deputados também alterou o artigo da lei nº 11.460, de 2007, que autorizou o plantio de organismos geneticamente modificados no Brasil: desta vez para excluir as terras indígenas da lista de locais em que ele é proibido. Assim, se o projeto passar no Senado, os transgênicos poderão ser cultivados em terras indígenas, com consequências irreversíveis para todos os biomas, inclusive a Amazônia.

No Senado, o projeto, que na Câmara era o PL 490, ganhou novo número. Agora, é o PL 2.903, que já começou a ser analisado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. Ali, terá como relatora a senadora Soraya Thronicke (União-MS), eleita em 2018 pelo PSL, à época o partido de Jair Bolsonaro. Defensora dos latifundiários e da “distribuição de terras para conter o desmatamento”, uma pauta cara a grileiros (ladrões de terras públicas), Soraya ganhou notoriedade, em 2022, como candidata à Presidência da República – com 600 mil votos, foi a quinta colocada.

Em 2019, a senadora foi corrigida numa audiência pública pela hoje ministra Sonia Guajajara após dizer que “os índios continuam miseráveis com 13% do território nacional”. A fala reproduziu um preconceito corriqueiro contra os povos indígenas baseado na ideia de que o único conceito de riqueza é o da acumulação de capital e bens materiais. Fora dessa lógica, todos seriam “miseráveis” ou “pobres”.

Está nas mãos da senadora reduzir – ou manter – o Projeto do Apocalipse já aprovado pelos deputados. Caso Rodrigo Pacheco de fato mantenha a intenção de não votar o regime de urgência, o PL 2.903 ainda deverá passar pelas comissões de Meio Ambiente e de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Se o Senado – casa em que 47 dos 81 senadores se declaram “ruralistas” – aprovar o texto como está, o debate vai desembarcar, mais um vez, no Supremo. “Se esse projeto de lei passar, nós vamos ao Supremo discutir a constitucionalidade dele”, garantiu o advogado Eliésio Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari.

Deputados e senadores sabem que o projeto é quase inteiramente inconstitucional. A questão é que, enquanto assaltam os direitos e as terras dos povos originários, assim como a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, o Pampa, a Mata Atlântica, parte da energia, dos recursos e do tempo que deveriam ser usados para ampliar a proteção da natureza e de seus povos, hoje gravemente ameaçados, é engolida pela necessidade de barrar o pior. É a estratégia bolsonarista que segue ativa e determinando o cotidiano do Brasil, ainda que Bolsonaro esteja fora da Presidência. Mesmo que eventualmente sejam barrados, os predadores vencem a cada dia em que o debate é capturado por seus projetos destruidores e discursos negacionistas enquanto o aquecimento global avança.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago

Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

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