Jornalismo do centro do mundo

Meu nome é Natalha Theofilo, refugiada dentro do meu próprio país. Quilombola, 33 anos, feminista negra, defensora dos direitos humanos, defensora da floresta em pé, sou parte do povo-floresta. Escrevo a você do exílio para o qual fui condenada junto a meu marido, o líder camponês Erasmo Theofilo, e nossos quatro filhos pequenos. Exílio não em Paris ou Londres, Nova York ou Berlim. Nosso exílio é dentro do Brasil, escondidos para que uma bala não arrebente nem a nossa cabeça nem a de nossas crianças. Foi assim que passamos essa eleição. Escondidos para não morrer. E, quando vimos o resultado, descobrimos a dor de saber que 51 milhões de brasileiros votaram naquele que nos condena ao horror de viver com um alvo desenhado em nossas cabeças por defender a Amazônia e a reforma agrária.

Para mim existe o Brasil de antes do golpe e o Brasil de depois do golpe. Antes, estávamos experimentando um fio de democracia. Não era nem de longe o ideal, mas, sim, era democrático. Sabíamos que tínhamos muito trabalho pela frente, mas estávamos prontos. Eu comecei a ministrar oficinas para meninas negras, levava nossas tranças como forma de fortalecimento. Palestrava sobre o empoderamento das mulheres pretas e dizia: ninguém vai nos dar poder, temos que tomá-lo. Precisamos estudar. Precisamos abrir as portas e janelas. Precisamos ficar juntas. Precisamos ser fortes, mas não fortes pra aguentar trabalho braçal, não. Isso nós já fazemos. Precisamos chegar aos lugares de tomada de decisão.

E veio o golpe. O Brasil perdeu sua primeira presidenta e eu perdi todos os meus trabalhos. E comecei a receber ajuda pra comprar comida e remédios.

Em dezembro de 2019, com menos de um ano do mandato de Jair Bolsonaro, a barbárie já estava escancarada. Minha comunidade, o lote 96 de Anapu, no Pará, já havia enterrado dois grandes líderes da luta camponesa por reforma agrária. Aconteceu então a primeira tentativa de invasão da nossa casa e a primeira tentativa de assassinato de Erasmo, meu companheiro. Profundamente machucados pelas mortes recentes, estávamos ali, dentro de uma casa frágil, tentando proteger nossas vidas. Lembro que ele falou: “Fica comigo?”. Eu respondi: só se for pra viver. Não faço plano de morte, só de vida. Então saímos de Anapu pela primeira vez, pra não morrer. Era 17 de dezembro de 2019.

Pela primeira vez na vida, Erasmo passou o Natal e o Ano-Novo longe de seus pais. Erasmo chorou tanto que meu peito aperta sempre que revisito essas lembranças. Depois daquela, foram mais quatro retiradas. E, hoje, estamos aqui, refugiados. Nossos filhos pouco foram à escola. Sentimos muito medo de que façam algo contra eles. Recentemente recebemos mensagens dizendo que “tocariam no coração de Erasmo”. Deixariam ele “vivo, mas sem coração”. Quando se fala em tirar o coração de alguém, na nossa região isso significa matar os filhos.

Quando recebeu essa ameaça, Erasmo perdeu o chão. “Se tocarem em um dos meus filhos, eu não sei o que faço da minha vida”, me disse. Pedimos uma reunião com o Programa de Proteção a Defensores dos Direitos Humanos do Estado do Pará e com o Ministério Público Federal (MPF).

E cá estamos. Refugiados, enquanto os criminosos estão soltos. Qual é o nosso crime? Qual é o crime de nossos filhos? Terem nascido pobres, terem pais que lutam pela reforma agrária e pela floresta em pé? E cá estão nossos filhos, sem direito à escola, encarcerados junto com os pais quando deveriam estar brincando e socializando com outras crianças.

Erasmo olha pra mim com os olhos marejados e pergunta: “O que vamos fazer das nossas vidas? Nós perdemos tudo”. Eu respondo, cheia de força: vamos ficar vivos. Nossos filhos precisam de nós vivos.

A verdade é que, dentro de mim, eu preciso repetir isso como um mantra. Precisamos acreditar que nossas vidas são preciosas e que não podemos morrer sem deixar nossos filhos salvos. Mas como deixar nossos filhos seguros se estão queimando tudo o que somos?

Em cativeiro, como estamos, as dores só aumentam. Os dias são preenchidos pela correria das crianças pela casa; hora e outra eu vejo Daniel, 8 anos, sentado em algum cantinho triste. Pergunto: qual é o problema? E a resposta é direta: “Estou com saudades de casa, queria ir pra casa. Queria pescar com a vovó”.

Daniel é muito ligado à avó, eles pescam juntos, são companheiros de aventuras, como ele gosta de dizer. Eu baixo a cabeça e digo que entendo a saudade dele, digo que logo vamos estar todos juntos novamente.

É uma grande mentira. Primeiro, não sou o tipo de pessoa que pensa conhecer a profundidade do sentimento alheio. Eu só imagino que seja muito grande essa saudade que ele sente, pois o sorriso no rosto dele é escasso. Segundo, não sei para onde vamos quando acabar o tempo de acolhimento provisório que agora vivemos. O mais provável é que nunca mais possamos voltar, é que tudo o que construímos e pelo qual lutamos tenha que ser deixado pra trás.

Entre brincadeiras e conflitos com Nathan, 6 anos, a pequena Nathally, de 4, diz: “Mãe, quero pegar o avião logo, eu quero ir pra casa. A vovó já deve tá com saudades, e o vô também”.

Se nossos dias são preenchidos pelas crianças e seus sentimentos, brincadeiras e questionamentos, minhas noites são rasgadas por choro e crises de ansiedade. Fico caminhando pela casa, vigiando o sono de todos. Erasmo me chama, e eu corro pro quarto e não demoro a responder: oi!

Ele então pergunta: “Tá tudo bem?”. Sim, fui só ver as crianças, respondo. E outras tantas noites se vão nessa rotina insana de angústia e ansiedade.

Na sexta-feira anterior às eleições, eu faço Dudu, nosso bebê, dormir. Ele nasceu em outro refúgio. Era uma gravidez de risco e tivemos que sair às pressas por causa dos atentados contra a nossa vida. Depois disso, ele já se refugiou com nós outras três vezes. Dudu dorme e eu pergunto pra Erasmo: o que tu acha que vai acontecer se Lula ganhar?

Ele fica sério e, me olhando diretamente nos olhos, diz: “Vai ser muito difícil, o poder vai ser distribuído aos aliados e grande parte dos aliados dele são inimigos da Amazônia em pé. No último debate quase não foi falado nada sobre a Amazônia, nós estamos fora. Tomara que Sonia [Guajajara] seja eleita e tomara que não seja só ela. Muita luta, preta, muita luta”.

Perdemos tanto nesses anos de Bolsonaro. Paulo foi assassinado na frente do filho, Márcio deixou quatro órfãs. Tudo está sendo queimado, uma menininha foi estuprada até a morte. Eles queimaram casas e até a escola foi incendiada. Tantas desgraças, isso tudo não vai parar? Eu pergunto a Erasmo, já com meu coração acelerado e mais uma crise de ansiedade engolfando meu corpo. “Não sei preta! Tomara que sim. Mas como tu mesma fala, isso tudo já acontece desde a invasão do Brasil”. Erasmo continua: “Tu foi pra São Paulo e me falou que as pessoas pra lá falam que a questão do agronegócio é uma coisa simples de resolver. Então é isso, a questão do garimpo, a questão dos indígenas, a questão dos defensores… tudo é colocado como se fosse problema nosso e não de todo o Brasil. Quando ou se Lula for eleito, tudo vai continuar sendo problema nosso, como sempre. Lutar até o fim é o que se espera de nós. Mas o que todos vão fazer, eu não sei. Eu vou lutar, enquanto eu puder me arrastar”.

Dói ouvir Erasmo falar, mas não é dor de quem deu uma topada ou imprensou o dedo na porta, não é esse tipo de dor. É um sentimento que nasce da realidade da incerteza da própria existência. Ao mesmo tempo, é a dor de viver pra lutar, porque só a luta é certeza.

Olho pra Erasmo e digo que vai ficar tudo bem, porque eu não quero que ele sinta o que eu sinto. E, ao mesmo tempo, imagino que ele também pode estar pensando o mesmo. Longos e profundos abraços é o que nos envolve. Sinto que é nesses momentos que falamos tudo um ao outro. Quando, sussurrando em meu ouvido, enlaçados num abraço, ele diz: “Tenho medo de te perder e de me perder em dor”.

Nesses momentos nos quebramos em um abraço, feito uma sucuri. Quando caímos na cama, adormecemos porque o corpo já não aguenta mais acordado.

Acordada os pesadelos reais se repetem na minha cabeça. É a dor de uma mãe que viu o desespero de uma menina de 4 anos, mesma idade de Nathally, chorando e dizendo que iriam tocar fogo em sua casa e matar sua mãe e por isso o seu pai não podia deixar elas nem por um instante. É a dor de uma mulher preta que vê outra tendo que abandonar tudo que construiu com as próprias mãos por não suportar mais tanta injustiça. “Se fosse eu que tivesse queimado a casa de alguém poderoso, eu seria presa”, ela me disse em lágrimas. “Isso se eu não fosse morta”, completou.

Sim, é verdade. Dói! Uma dor que rasga a garganta e tira a vontade de comer. Eu sinto revolta por viver em um país onde meus filhos estarem fora da escola é dos males o menor, porque poderiam estar mortos. Agora, com minhas mãos trêmulas enquanto escrevo, eu sinto horror. É terrível ter que escrever sobre coisas que jamais deveriam ter acontecido e ainda estão acontecendo. Mas essa é a realidade. Tenho muita dificuldade de escrever sobre o sentimento de Erasmo e das crianças, porque eu tenho consciência que não vou encontrar as palavras certas. Como vou descrever os sentimentos dos meus filhos que vivem esse horror junto a nós? O mais arrasador é que eu não sei como diminuir a dor deles. Ir à escola, passear, fazer amizade com as crianças próximas de onde estamos. Nada disso é possível.

Eu queria escrever tantas coisas a você, mas sei que não vou conseguir, porque fui construída pra esconder meus sentimentos, pra que eu não possa ser vista como a mulher frágil que sou. Porque fragilidade nas mulheres pretas é fraqueza. Porque de nós, mulheres pretas, é exigido que sejamos fortes. Mesmo que eu queira falar, e eu quero, mas essa exigência é mais forte ainda nesse momento. Meus filhos precisam de uma mãe forte, meu companheiro precisa de uma mulher forte. Eu repito isso em voz alta enquanto escrevo e penso, eu sou forte mesmo sendo frágil, mas isso é só um pensamento. As lágrimas escorrem como um ato de rebelião e fico pensando por que não consigo chorar mesmo quando Erasmo diz que eu posso, por que quando ele chora eu não choro? Porque as lágrimas só vêm quando chega a noite e eu me sinto segura na solidão. “Amor, eu também tô assim”, Erasmo fala, “eu também tô me sentindo mal”. Acho que ele espera que eu receba suas palavras como um sinal de que eu posso mostrar a ele toda a minha fragilidade, mas eu bravamente engulo o choro. E é exatamente isso que tô fazendo agora.

Por que eu deveria descrever nossas vivências pra você? Por que, dia após dia, nós, negras e negros, originárias e originários, temos que provar o valor de nossas vidas? Por que nossos corpos negros, assim como os dos parentes, não têm o mesmo valor de corpos brancos? Por que nossos corpos mutilados, jogados em valas, afundados nos rios, ninguém vê? Por que, quando falamos do horror vivido nos assentamentos de Anapu, antes temos que falar que foi naquela terra que foi assassinada a Irmã Dorothy Stang, uma religiosa branca? Por que Dom Phillips é referência de comoção quando, por dentro de mim, grita a certeza de que o corpo de Bruno Pereira estaria sumido até hoje se ele não tivesse Dom como companheiro de expedição, um inglês, um branco? Este é o meu lugar de fala, o de mulher preta refugiada, lembrando a você que existo, que meu companheiro existe, que minhas crianças existem, que queremos viver.

Erasmo tem uma vivência de superação, pois apesar da paralisia infantil que não lhe permite caminhar, ele é amável e forte. Eu, por outro lado, sou uma mulher preta, feminista, que vive questionando os lugares que já estão ocupados e não por acaso por pessoas brancas. Nós nos encontramos em nossas dores. Porque não importa se estamos nas florestas, nos rios, nas palafitas ou nas lajes da cidades, nós, pretas quilombolas ou originárias, nós nos aproximamos nas nossas dororidades.

Que o Brasil nunca mais será o mesmo é fato. Se o Brasil vai parar de desovar nossos corpos nas valas e rios, é pra isso que vamos lutar muito, como sempre. Juntas, negras e negros, originárias, originários e os brancos que souberem qual é seu lugar nesta luta. E principalmente saber entender que essas lutas só existem por causa, sim, dos brancos. E nós, os pretos, em todos os lugares temos que saber que, enquanto nossas mortes e vidas não tiverem o mesmo peso, não causarem a mesma comoção e indignação que a morte ou a vida de pessoas brancas, enquanto nossos corpos e nossos modos de vida não forem vistos com a mesma importância, ainda não estaremos no caminho certo.

E então, sim, chega o domingo da eleição, esta em que nos abrigamos no refúgio para as balas dos partidários de Jair Bolsonaro não nos alcançarem, e 51 milhões de brasileiros votam para reeleger Bolsonaro, porque a minha vida, a de Erasmo e a de nossas crianças não importam.

Se eleger Lula no primeiro turno significava termos o direito de lutar por direitos com riscos menores de sermos assassinados, imaginar que Bolsonaro pode ser reeleito é aterrorizante. Se Bolsonaro vencer, é isso. Será o fim pra muitos de nós, defensores dos direitos humanos. Nós, povos-floresta, seremos aniquilados rapidamente, antes mesmo de nossa mãe queimar até a morte. Preciso, porém, dizer a você: todos sentirão as nossas mortes, porque quando o mundo perder o ar, saberão que os povos-floresta eram o caminho da vida.

Aqui, no exílio, nesse exílio dentro do meu próprio país, eu afirmo: eu não posso suportar mais quatro anos como esses. Eu não posso mais suportar cinco refúgios. Eu não posso mais suportar escolas queimadas. Eu não posso mais suportar crianças com as armas de pistoleiros na cabeça. Eu não posso mais suportar ver meus filhos sem escola. Eu não posso mais suportar a dor do meu companheiro. Eu não posso mais suportar.

Eu. Não. Posso. Mais

Natalha Theofilo. Quilombola, feminista negra, líder camponesa em Anapu (PA) e afrotrancista

Ilustração: Cacao Sousa

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