Jornalismo do centro do mundo

A magia acontece atrás dessa porta, em Manaus, onde é possível encontrar desde livros recém-lançados até raridades que poderiam estar em museus. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA

É um mistério. Há anos eu tento desvendá-lo – e fracasso. Vizinho do Teatro Amazonas, no quadrilátero mais charmoso e burburante do centro de Manaus, ele tem o tamanho de uma banca de revista. Inclusive é uma banca de revista. Há, porém, uma placa: “Banca do Largo, livraria especializada em Amazônia, Amazon Bookstore”. Entro. Dentro, há um homem que fala baixo e tem gestos pausados. É Joaquim Melo, um amazônida do rio Solimões. Olho pra ele e sei que em suas funduras Joaquim se incinera em paixões pela floresta e pela vida, mas tudo isso é entre ele e seus interiores. Joaquim “costura para dentro”. O mistério é o que acontece entre aquelas paredes e que Joaquim nunca vai contar o segredo. Nem deve.

A banca de revista se transforma numa livraria de extraordinários. Não há, que se saiba, nenhum outro conjunto de livros sobre as Amazônias, assim mesmo, no plural, como o da Banca do Largo. É possível encontrar desde livros recém-lançados até raridades que poderiam estar em pedestais nos museus. O mistério é este: tem o tamanho de uma banca, mas abriga uma biblioteca. A banca cresce, ganha corredores invisíveis, tem labirintos sobre as nossas cabeças, alçapões secretos sob nossos pés, se abrir uma porta você tem certeza de que haverá outra logo em seguida.

O livreiro Joaquim Melo nutre, dentro de si e da Banca do Largo, a paixão pela floresta e os livros. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA

Adivinho, mas não vejo. Desde a primeira vez que entrei meio desavisada e tive uma crise de arritmia por emoção extrema, me veio a imagem da caverna de Ali Babá e seus tesouros infinitos. Não sei se Joaquim gosta dessa imagem que o associa ao maior de todos os ladrões da ficção. Quando eu a expresso, ele só faz “hum”, ou eu imagino que faça “hum”. É que só encontro explicações na ficção da minha infância, porque para mim as livrarias sempre vão estar associadas a descobertas que só encontram tamanho em olhos de criança.

Quando entrei lá pela primeira vez, eu buscava uma raridade há décadas e já sem esperança. O que eu desejava mais do que qualquer outra coisa naquele momento da minha vida não estava em exposição. Nem podia estar. Perguntei a Joaquim. Ele então desapareceu. É preciso avisar. Joaquim de repente desaparece na praça. Não se sabe para onde vai. Mas volta de lá com o desejo na mão. Escrevo e ainda posso sentir. Êxtase. O que eu buscava eu queria tanto que coloquei numa gaveta e só abro pra espiar. Tenho medo de folhear porque meus dedos podem ferir as páginas, abusar de alguma palavra, esmagar uma vírgula. Não consigo. Se Joaquim não puder achar no lugar misterioso para onde vai, ele silencia. E um dia, você está em sua casa e recebe um pacote. Abre e… Joaquim achou. Como, ele não conta.

A menor maior livraria do mundo abriga uma biblioteca das Amazônias. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA

Eu deveria perguntar e fazer uma reportagem sobre Joaquim e a Banca do Largo. Mas não quero. Prefiro ficar com o mistério. E o melhor que posso dar aos leitores de SUMAÚMA é o mistério. Nem tudo a gente precisa esmiuçar. A Banca do Largo e a alma chamada Joaquim que a habita devem permanecer inalcançáveis para que a gente as alcance.

Posso apenas dizer que este é nosso presente de Natal pra vocês: Joaquim Melo acaba de se tornar colaborador de SUMAÚMA. E começa com uma primeira lista de livros, todos possíveis de encontrar em livrarias convencionais, nos sites das editoras ou em sebos virtuais e físicos. Uma lista para quem quer começar a conhecer as Amazônias. Ler pode ser seu primeiro ato de amor pela floresta que salva nossas vidas todos os dias.

Dez livros para (começar a) conhecer a Amazônia. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA

Dez livros para (começar a) conhecer a Amazônia

Joaquim Melo

 

Recomendar livros fundamentais para conhecer minimamente a Amazônia brasileira requer cuidado extremo – além de reconhecer desde o início que escolhas são pessoais, e, certamente, muitas obras importantes ficam ausentes.

Há uma infinidade de trabalhos interessantes considerados “leitura obrigatória” e que não entraram na lista que preparei porque são antigos, raros, difíceis de encontrar e/ou em seu conteúdo estão mais próximos do estudo e da pesquisa especializada do que do interesse do público leitor amplo. É o caso, por exemplo, da narrativa do padre espanhol Gaspar de Carvajal sobre a viagem feita pelo explorador Francisco de Orellana em 1541 e 1542. Esse seria o primeiro documento escrito a respeito de uma descida completa do rio Amazonas até sua foz.

Entre os registros dos viajantes naturalistas, como Charles-Marie de la Condamine, em princípios do século 18, e Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, que produziu um material riquíssimo de 1783 a 1892, há Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, escrito pelo padre João Daniel, As Regiões Amazônicas, do Barão de Marajó, Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará, de Antonio Ladislau Monteiro Baena, As Viagens do Ouvidor Sampaio (1774-1775), Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo da Comarca do Alto Amazonas, de Lourenço Amazonas, publicado em 1852, e Estudos Amazônicos, de José Veríssimo, somente para citar algumas obras importantes produzidas até o século 19.

Importante destacar os ingleses Alfred Russel Wallace, que publicou Viagens pelos Rios Amazonas e Negro, e Henry Walter Bates, autor de Um Naturalista no Rio Amazonas. Suas obras ajudaram a fundamentar a teoria da evolução de Charles Darwin [naturalista britânico autor de A Origem das Espécies].

Já no século 20, podemos citar como indispensáveis Capitalismo autoritário e Campesinato, de Otávio Velho, Antropologia dos Arquivos da Amazônia, de Alfredo Wagner Berno de Almeida e Rondônia, de Roquette Pinto. Por fim, História Econômica da Amazônia, de Roberto Santos, é um estudo muito cuidadoso dos anos 1800 a 1920, período importante da borracha, e que oferece dados importantes sobre a formação social, econômica e política da região. Para leitores especializados ou não.

Feita a introdução, a ideia é indicar 10 livros que possam apresentar a Amazônia a quem deseja começar a conhecê-la. Trabalhos que são encontrados em livrarias e sebos e nos sites das próprias editoras, fugindo, assim, dos muito raros e esgotados.

Procurei títulos que abordam temas importantes e, quem sabe, vão instigar a busca por fontes primárias, livros de referência, um mergulho mais profundo. Reforço que listas assim são pessoais, mas espero que esta ajude a quem desejar explorar caminhos. Os livros estão organizados em ordem alfabética.


Amazônia Colônia do Brasil. Violeta Loureiro

Um tema que, particularmente, sempre pensei e defendi: a Amazônia deixou de ser colônia de Portugal para ser colônia do Brasil e foi utilizada como fornecedora de riqueza, da mão de obra indígena às drogas do sertão. As matérias-primas extraídas de árvores da floresta, a borracha, o ouro. Os projetos implantados aqui pelos governos, em sua maioria apoiados pelas elites locais, não levam em consideração os moradores. Estudiosa da Amazônia, Violeta Loureiro faz uma análise e interpretação da história como poucos. Um livro que eu gostaria de ter escrito. Leitura indispensável.


Banzeiro Òkòtó – Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. Eliane Brum

A meu ver, é um dos livros mais relevantes da atualidade. Eliane Brum conta como foi o processo de morar na Amazônia e, por meio da mudança, como está a região em que vive, denunciando desmandos que vêm ocorrendo na floresta, na vida dos ribeirinhos, dos povos indígenas. Sempre digo que, para quem se preocupa e quer saber da Amazônia hoje e de que forma chegou até aqui, a leitura de Banzeiro Òkòtó é indispensável. A maneira como a autora se posiciona, apresenta os temas e as discussões não permite que nenhuma pessoa saia da experiência do mesmo jeito que entrou. É um livro impactante.

Nota da editora: Muito obrigada, Joaquim! E, aos leitores: juro que não belisquei o braço dele para que incluísse meu livro.


Boca do Amazonas: Sociedade e Cultura em Dalcídio Jurandir. Willi Bolle

Dalcídio Jurandir (1909-1979) foi um grande romancista e, além da qualidade literária, acredito que a leitura de sua obra seja necessária para entender a parte da Amazônia que fica na Ilha de Marajó, em Belém e no Baixo Amazonas. Infelizmente, ao escritor ainda não foi dado o devido reconhecimento, mas o professor e crítico literário Willi Bolle tem um trabalho dedicado a ele. Recomendo. Bolle afirma que optou por estudar a Amazônia à luz da obra de Dalcídio Jurandir, porque seu ciclo de dez romances, com cerca de 3 mil páginas, oferece uma apresentação da história cotidiana e da cultura da região. Boca do Amazonas é uma entrada instigante ao texto original do autor.


Crônicas do Rio Amazonas. Antonio Porro

Reúne uma série de relatos sobre antigos habitantes do rio Amazonas. Quase todas as crônicas, como eram chamados esses registros, são inéditas em português. Elas foram escritas por viajantes e missionários espanhóis ou a serviço da Espanha nos séculos 16 e 17, época em que esse país disputava com Portugal a posse da Amazônia. São fontes importantes para o conhecimento da história e da cultura dos povos indígenas que habitavam as margens no começo do período colonial. Uma curiosidade é que há textos da primeira viagem até a foz do Amazonas (1541-1542) na coletânea.


Órfãos do Eldorado. Milton Hatoum

Nesse que é o quarto livro de Milton Hatoum, Arminto Cordovil narra seu amor por Dinaura, mas não só. Trata-se da crônica de uma família que, em uma região e em uma época específicas, à base da seiva da seringueira, quis encarnar os sonhos seculares de um Eldorado amazônico. Como sempre, a escrita de Milton Hatoum – um autor fundamental – prende e envolve numa teia de mitos e mistérios. Leitura leve e agradável que, a partir de uma paixão desesperada, leva à tona a história de um pedaço da Amazônia.


Paraíso Suspeito: a Voragem Amazônica. Leopoldo Bernucci

Imprescindível trabalho de não ficção do professor de literatura sul-americana Leopoldo Bernucci. A partir da leitura minuciosa do romance La Vorágine (1924), do colombiano José Eustáquio Rivera, e das obras À Margem da História e Inferno Verde – dos brasileiros Euclides da Cunha e Alberto Rangel, respectivamente –, Bernucci percorre um dos períodos mais trágicos da história da Amazônia, durante o ciclo da borracha, quando os seringais amazônicos se transformaram num dos cenários mais horrendos de crimes contra a humanidade.


A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert

Escrito a partir das conversas entre o xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert, traz a visão de um indígena sobre os brancos, os mitos de seu povo, o conhecimento ancestral e sua visão de mundo – tão importante no atual momento em que estamos vivenciando a destruição da Amazônia. Um livro denso, onde Davi Kopenawa conta trechos de sua vida, sua passagem pela Funai e trata de temas ambientais, culturais e políticos. É uma leitura a qual se deve dedicar tempo. Sem pressa. Um Grande Sertão: Veredas [de João Guimarães Rosa, romance fundamental da literatura brasileira] da não ficção. Tem de ler, de verdade, cada frase e pensar muito.


Rebelião na Amazônia – Cabanagem, Raça e Cultura Popular no Norte do Brasil, 1798-1840. Mark Harris

Como destaca o próprio autor, o antropólogo Mark Harris, a rebelião da cabanagem, entre 1835 e 1840, não foi apenas uma luta de oprimidos, análoga a tantas outras lutas ao redor do mundo, entre o final do século 18 e o início do 19; a cabanagem foi, também, potencialmente, separatista. A cabanagem foi uma revolta popular que não foi só de uma categoria. Todos que se sentiam injustiçados e explorados lutaram em um só movimento: indígenas, negros, mestiços. Quem se sentia oprimido lutava contra o colonizador. Em seu trabalho Mark Harris conseguiu levantar documentos e registros dos próprios rebeldes e fazer uma releitura do movimento. O livro pode ser definido como uma etnografia histórica escrita por um antropólogo.


Rio Babel – A História das Línguas na Amazônia. José Ribamar Bessa Freire

Esse livro me fez enxergar o uso predatório da língua como instrumento de poder e de que forma isso acabou com muitas línguas originárias. Algumas desapareceram para sempre; outras são retomadas com dificuldade. Isso faz parte de um processo histórico de dominação do colonizador português. O livro é resultado de extensa pesquisa acadêmica e facilita, sobremodo, o entendimento do processo de integração dos povos indígenas na região amazônica. Nas palavras do autor, “A chegada do europeu no Amazonas, considerado então como ‘rio Babel’, implicou rupturas e um reordenamento catastrófico, que concentrou na língua um dos princípios organizadores”. Um livro fundamental para o entendimento da Amazônia.


Sob os Tempos do Equinócio – Oito Mil Anos de História na Amazônia Central. Eduardo Góes Neves

Resultado de anos de estudo de um arqueólogo que é, na minha opinião, a maior autoridade em arqueologia na Amazônia hoje, esse livro conta uma história de 8 mil anos, onde o autor nos mostra revelações sobre o processo de ocupação humana na região. Ainda que o texto seja fruto de uma pesquisa acadêmica apresentada como tese de livre-docência em 2013, seu objetivo é alcançar uma audiência muito mais ampla, além do público especializado. A escrita de Eduardo Góes Neves aproxima os interessados em história dos povos indígenas das terras baixas e da Amazônia.

Joaquim Melo. Livreiro, é dono da Banca do Largo, uma livraria especializada em Amazônia, na cidade de Manaus, capital do Amazonas. Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), tem pós-graduação em História e Historiografia da Amazônia pelo Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas e mestrado em Sociedade e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – ambos na Ufam.


 

EL LIBRERO AMAZONENSE JOAQUIM MELO (1958-2023) EN LA BANCA DO LARGO, EN MANAOS. FOTO: CHRISTIAN BRAGA/SUMAÚMA

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