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Protesto indígena, em Brasília, contra a garimpo ilegal em abril de 2022. Foto: Tuane Fernandes/Greenpeace

O genocídio em curso dos Yanomami – e também as atrocidades contra os Munduruku, os Kayapó e outros povos indígenas em cujos territórios há ouro – não é nem acidente do destino, nem fruto exclusivo da cobiça irrefreável e desumana de chefes de garimpo. É sobretudo o resultado mais do que esperado da política adotada pelo governo de Jair Bolsonaro em seu (felizmente) único mandato. Mas essa política foi facilitada, e muito, pela regulação extremamente falha desse setor, em especial seis artigos da Lei 12.844, de 2013, que tornaram o comércio de ouro ilegal praticamente impossível de ser detectado e punido. Como se tornou de conhecimento público na coluna do economista Marcos Lisboa na Folha de S. Paulo de 8 de fevereiro, esses artigos foram propostos por um deputado do PT de Minas Gerais, Odair Cunha, com apoio do presidente da Câmara Arthur Lira (PP – AL) e contrabandeados para dentro do texto de uma medida provisória (MP) que tratava de agricultura pelo relator Eunício Oliveira (MDB – CE). Tudo foi sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff (PT) sem qualquer veto. Esses artigos estão agora sendo questionados no Supremo Tribunal Federal (STF). O Partido Verde (PV) pede que sejam invalidados por inconstitucionalidade.

Há, porém, uma forma muito menos demorada e mais eficaz de estancar os efeitos nefastos dessa lei: basta Lula editar uma MP para revogar esses desastrosos artigos imediatamente.

Esse é um poder que apenas o presidente da República possui e que deve ser usado em caso de relevância e urgência, segundo o artigo 62 da Constituição. O que pode ser mais relevante e urgente do que eliminar um dos principais incentivos à atividade que está matando crianças e velhos de desnutrição, contaminando todos com mercúrio e devastando a floresta? Poucas vezes uma medida provisória teria tanta consonância com os critérios constitucionais.

É dever moral e jurídico do presidente fazer tudo ao seu alcance para impedir que esse sofrimento imposto injusta e ilegalmente aos povos indígenas continue. E o fato de a vergonhosa lei ter sido gerada por um deputado e sancionada por uma ex-presidente de seu próprio partido tornam essa obrigação ainda mais forte. Além disso, será politicamente muito custoso para deputados e senadores tentar rejeitar a nova MP no contexto atual de emergência sanitária declarada.

Não há nada que possa justificar que esses seis artigos continuem em vigor. No Estado Democrático de Direito, espera-se que as leis sejam feitas por um processo minimamente honesto, transparente, representativo e cumpridor das regras estabelecidas pelo próprio Congresso nos seus regimentos internos. Não foi o que aconteceu com a Lei 12.844. Como já mencionado, não se trata de uma lei autônoma, com pretensão de sistematicidade, aprovada após discussão adequada e aperfeiçoamento pelos parlamentares em comissões, como se esperaria em assunto tão importante. Trata-se, ao contrário, do chamado “jabuti” de última hora – um subterfúgio usado para se incluir artigos em lei que trata de assunto diverso, o que é expressamente vedado no caso de medidas provisórias. Em um parecer de 22 páginas, a única referência aos artigos feita pelo relator Eunício Oliveira é um parágrafo de dez linhas. A medida é justificada pela suposta necessidade, pasmem, de “atribuir segurança jurídica” aos garimpeiros e compradores de ouro e levar em conta os “usos e costumes do setor”.

Um dos seis artigos, o mais danoso aos povos indígenas e ao meio ambiente, tenta isentar de responsabilidade o comprador de ouro ilegal com base em uma presunção de boa-fé que o exime de qualquer dever de cuidado em relação à averiguação da procedência do ouro. Bastaria acreditar nas informações prestadas pelo vendedor e arquivá-las por dez anos. Seria como eximir o comprador de um carro roubado de qualquer responsabilidade desde que carregasse no porta-luvas, por dez anos, uma declaração fraudulenta do vendedor criminoso de que o veículo que vendeu não é roubado. Trata-se de verdadeira licença para o esquentamento do ouro ilegal, como demonstrado no excelente estudo Legalidade da Produção de Ouro no Brasil, do Ministério Público Federal em colaboração com a Universidade Federal de Minas Gerais.

Não há, portanto, razão para que o presidente Lula se mantenha inerte e espere que essa monstruosidade jurídica seja, quem sabe um dia, anulada ao final de um longo e penoso processo judicial no STF. A responsabilidade para corrigir essa distorção que está ajudando a causar mortes, doenças e degradação em comunidades inteiras é tanto do seu governo recém-eleito, como do Congresso Nacional, em particular do atual presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, cujas digitais também estão nos artigos a serem revogados.

É positivo que o novo governo busque enfrentar o grave problema do garimpo ilegal na Amazônia, embora seja tarde demais para evitar a tragédia anunciada dos Yanomami e de outros povos indígenas. Mas a retirada dos garimpeiros é apenas uma solução provisória. Sem eliminação dos enormes incentivos existentes, eles voltarão, como já fizeram tantas vezes. Revogar imediatamente a presunção de boa-fé do comprador de ouro por meio de MP é medida simples, rápida e eficaz à disposição do presidente Lula para resolver parte importante do problema. Deixar de usar esse poder é omissão que implica responsabilidade moral, política e jurídica. Aja, presidente.


Octávio Ferraz é professor titular da Faculdade de Direito do King’s College de Londres e diretor do Transnational Law Institute.

Thomas Bustamante é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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