Quando Rosimar Santos de Oliveira, Indígena Baré, de 45 anos, morreu provavelmente pelas mãos de três Yanomami que também a teriam estuprado, havia algo em comum correndo no sangue dos quatro: álcool. Ao menos grande parte dele foi um presente do prefeito de Barcelos, cidade de pouco menos de 19 mil habitantes na margem direita do Rio Negro, no Amazonas. Radson Rógerton dos Santos Alves, o Radinho, filiado ao União Brasil, tinha prometido distribuir cerveja grátis a quem fosse vê-lo tomar posse. Cumpriu a promessa. Segundo a polícia, Rosimar e seus assassinos bebiam havia pelo menos oito horas quando o feminicídio ocorreu. Neste crime em que Indígenas são a vítima e os autores, as circunstâncias são uma produção dos invasores da Floresta Amazônica. A sociedade que se considera “civilizada” forneceu os elementos que levaram à “barbárie”.
Rosimar passou parte da tarde e a noite de 1o de janeiro de 2025 bebendo na posse de Radinho. Foi vista no local desde as 17 horas – a essa altura, seus algozes também já estavam lá, diriam depois algumas testemunhas. A família da Baré havia votado nele, mas a promessa de bebida grátis é que fez do evento habitualmente protocolar um programa “imperdível”. O Piabódromo, maior prédio público de Barcelos, se encheu de gente. Trata-se de uma arena com piso e arquibancadas de cimento em forma de ferradura e capacidade para 5 mil pessoas, construída para abrigar o Festival do Peixe Ornamental. Principal evento da cidade, é uma competição de música e dança entre duas equipes, a do Acará-Disco e a do Cardinal, pequenos peixes da região, similar à que opõe os bois Caprichoso e Garantido no Festival de Parintins. O prefeito se recusou a informar quanta bebida serviu e quem pagou a conta.

O alerta na Funai (à esq.) não valeu para o prefeito: para encher o Piabódromo (no centro) na sua posse, Radinho (à dir.) distribuiu cerveja grátis
Já era início da madrugada de 2 de janeiro quando Rosimar, embriagada, teria se aproximado de um jovem e igualmente alcoolizado Yanomami. Atraídos, se afastaram para ficarem a sós. Saíram do Piabódromo e caminharam pouco mais de uma quadra até um prédio térreo abandonado e escuro em que, durante anos, funcionou uma empresa telefônica. Mas foram seguidos.
Os perseguidores, segundo a polícia, seriam outros três Yanomami. Muito alcoolizados, eles quiseram fazer sexo com Rosimar. Como ela se recusou, Klesio Aprueteri Yanomami, de 25 anos, Sirrico Aprueteri Yanomami, de 19, e O., de 17, a teriam imobilizado, espancado, estuprado, ferido com facas e matado por estrangulamento. Uma parte do crime chegou a ser registrada pela câmera de um telefone celular. Rosimar está nua e desacordada – talvez já estivesse morta. Um de seus algozes manipula violentamente o corpo da Indígena, inerte sobre o gramado, antes de penetrá-la. Segundo a polícia, o vídeo – que horas depois circulava entre moradores da cidade e de aldeias Yanomami a centenas de quilômetros de distância – não foi produzido para celebrar o crime, mas para denunciá-lo. O Yanomami que o gravou diria, em seu idioma, que os assassinos não ficariam impunes, antes de focalizar o rosto de um deles. Ouvia-se também um dos criminosos dizendo, na língua Yanomam: “Enfia! Enfia!”.
Quase uma semana depois, quando SUMAÚMA esteve no local, o sangue seco de Rosimar seguia visível na varanda do prédio da empresa telefônica. A alguns metros, um bolo de luvas de borracha usadas e uma caixa vazia de máscaras cirúrgicas que os peritos da Polícia Técnico-Científica do Amazonas aparentemente não se deram ao trabalho de levar embora depois que terminaram seu trabalho.

Memória de sangue: na varanda do prédio abandonado pela empresa telefônica, o rastro da violência que ceifou a vida de Rosimar
O governo federal mandou uma equipe da Força Nacional para lá, por temor de conflitos entre os dois povos Indígenas, os Baré e os Yanomami. Na cidade, gerou-se um clamor por punição e – nos casos mais extremos – vingança contra os criminosos. Um dos suspeitos, preso poucos dias depois, foi levado a Manaus para evitar uma tentativa de linchamento. Não se teve notícia, contudo, de alguma reflexão acerca do que levou à tragédia. Na sociedade “civilizada”, considera-se o crime como obra exclusiva de seus autores.
Essa, porém, é apenas parte da verdade. Há outras.
Os napëpë querem dinheiro
Barcelos tem 18.834 habitantes, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Três a cada quatro deles se declaram Indígenas. A maioria é Baré, um povo que travou os primeiros contatos com os não Indígenas no início do século 18. Mas na festa do prefeito Radinho também havia muitos Yanomami, obrigados a ir à cidade para receber benefícios sociais como o Bolsa Família e depois fazer compras.
Fundada em 1728 por missionários católicos, Barcelos foi por algum tempo, durante o período colonial, a capital do Amazonas. É também a sede do segundo município mais extenso do Brasil, que se estende do Rio Negro, ao sul, à fronteira com a Venezuela, ao norte. A maneira mais simples para se chegar à cidade é pelo Rio Negro: de Manaus, são 12 horas de viagem em barco expresso, ou quase o dobro disso nos mais lentos. A mais rápida é um voo de pouco mais de uma hora, desde a capital, em pequenos aviões fretados, preferidos pelos pescadores esportivos. Vindos de várias partes do país, eles usam a cidade como ponto de partida para viagens rio acima durante a temporada de pesca – que vai de setembro a abril, e é especialmente movimentada em seus três primeiros meses.

Infográfico: Ariel Tonglet/SUMAÚMA
Quem chega pelo Rio Negro avista de longe a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição. Construída no século 18, ela tem o teto adornado com uma pintura do Cristo crucificado na floresta tropical. Ao redor, funciona a maior parte do comércio local – pequenas lojas que vendem roupas falsificadas de grifes internacionais, caixas de isopor, farinha de Mandioca, Feijão, fardos de refrigerante, cerveja, bebidas destiladas, salgadinhos ricos em sódio e gordura saturada, bolachas recheadas e todo tipo de alimento ultraprocessado, além de uma variedade de quinquilharias. Rodeada pela exuberância da Floresta Amazônica, Barcelos é pobre: o PIB per capita – a divisão de tudo o que se produz na cidade em um ano pelo número de habitantes – é de pouco mais de 8,8 mil reais, mais de cinco vezes menor que a média nacional. É não apenas um dos números mais baixos do Brasil, mas também do Amazonas, o 57º lugar entre os 62 municípios do estado.
A pobreza está impressa nas construções. Mesmo no centro, há várias casas com a pintura gasta, as paredes cobertas pela umidade, os telhados metálicos enferrujando. As residências maiores e mais bem conservadas nada têm de luxuosas; mesmo assim, são cercadas de grades ou muros revestidos de porcelanato. As ruas asfaltadas são esburacadas. O principal meio de transporte são motocicletas de baixa cilindrada, usadas também como táxis e até como veículos de carga, com caçambas improvisadas, e que dividem a estreita rua principal, que corre paralela ao Rio Negro, com poucos carros, bicicletas, pedestres, cachorros e urubus.
Uma semana após o crime, conversamos com a proprietária de uma casa comercial do centro sobre o feminicídio de Rosimar. A cidade, àquela altura, tem raros Yanomami circulando – algo que a deixa apreensiva. “Só o Exército e a prefeitura não dão conta de movimentar isso aqui”, justifica. Ela se refere aos cerca de 600 militares do 3º Batalhão de Infantaria de Selva, que vivem entre o quartel e a murada e vigiada vila dos oficiais, e aos servidores da prefeitura.
O comércio de Barcelos aguarda com ansiedade a chegada do dinheiro de benefícios e programas sociais do governo – particularmente, do Bolsa Família. Em dezembro de 2024, o benefício colocou 2,74 milhões de reais nas mãos de 3.472 famílias barcelenses. Dessas, 2.246 são Indígenas. E 506 são famílias Yanomami, que não vivem na cidade mas vão até lá às centenas, todo mês, para receber. Em janeiro de 2025, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Bolsa Família colocou 533 mil reais nas mãos dos Yanomami em Barcelos.

Centro de Barcelos, visto da igreja matriz: a pobreza da cidade está impressa na degradação das paredes e na ferrugem dos telhados metálicos
O que deveria ser solução se tornou uma fonte de novos problemas. Nem os governos federal e estadual nem a prefeitura se importaram em preparar qualquer tipo de estrutura para receber e orientar os Yanomami. A política de benefícios foi replicada para a população Indígena sem nenhum respeito a um modo de vida totalmente diverso e sem intimidade com o mundo urbano e as burocracias bancárias. Vários Yanomami nem sequer falam o português, e a maioria pouco entende a cidade e o modo de agir dos não Indígenas. Largados à própria sorte, se tornam alvo fácil para a cobiça e as armadilhas dos napëpë – termo que, na língua Yanomam, originalmente significa inimigo, mas hoje é usado para se referir ao homem branco.
‘Eu já não gostava de índio’
Sempre que chegava da roça que cultivava com o companheiro, Rosimar cumpria uma rotina. Tomava banho e saía para visitar a mãe, Idaíde Bernardo Paixão. Sempre que podia, levava consigo goma de Mandioca para lhe preparar um mingau. Aos 100 anos, dona Idaíde enxerga e ouve mal, mas pressente que algo ruim aconteceu.
“Mamãe chama por ela todo dia. A gente mente, diz que ela ainda não chegou da roça. Como vamos contar o que aconteceu?”, desabafa Zuleide Paiva dos Santos, de 45 anos, irmã de Rosimar. Dona Idaíde criou sete filhas. Uma delas não saiu de seu ventre: era Rosimar, que lhe foi dada aos 7 meses pela mãe biológica, uma Indígena Baré. Nunca fez diferença para nenhuma das duas.

Centenária, Idaíde Bernardo Paixão, a mãe, ainda desconhece o que houve com Rosimar: como lhe contar o que aconteceu?, pergunta uma das filhas
Zuleide conversa conosco na varanda de sua casa, numa comunidade pobre e afastada do centro de Barcelos chamada Mariuá. A varanda, aberta mas abafada pelo mormaço do início da manhã, tem muretas de tijolos aparentes. Pela janela que dá para a sala, vemos um adesivo de campanha do então candidato a prefeito Radinho.
Zuleide veste uma camiseta com a estampa de uma gigantesca garrafa verde de cerveja, coberta de gelo. Ela manda uma das filhas buscar Alberto Viana França. Magro, a boca esticada no que parece um sorriso melancólico que ganhou permanência, ele tem 54 anos e conheceu Rosimar há quase 20. Dia 27 de dezembro, ele tem na ponta da língua, foi quando se casaram. Rosimar era bonita: tinha o rosto mais arredondado, como é comum entre os Baré. Os cabelos negros, divididos ao meio, lhe escorriam pela cabeça. A foto 3×4, a única que a família encontrou dela, sugere uma mulher vaidosa, com as sobrancelhas cuidadosamente delineadas.
“A gente se viu e foi isso”, Alberto explica, relembrando o primeiro encontro. “Nunca se deixemo, nem um só dia. Nada de briga, dessas coisas.” Está abatido. Conta que mal come desde que teve a notícia do crime. Precisou ir ao hospital tomar soro e evitar uma desidratação. Na véspera, começara a melhorar um pouco – deu conta de engolir um caldo de cana. “Sinto muita falta dela.”
Alberto insiste em nos mostrar a casa em que Rosimar e ele viviam com os sete filhos. Localizada nos fundos da casa de Zuleide, ela se mostra assim que cruzamos dois altos matagais que tomaram conta do que a prefeitura chama de ruas. É uma residência ampla, com parte das paredes em alvenaria e parte em madeira, em que a extrema simplicidade contrasta com o cuidado com os detalhes. A cozinha ainda tem chão de barro – um estrado de madeira empresta uma base algo mais sólida para o fogão a gás. Na parede de madeira, as panelas estão penduradas em pregos, escrupulosamente organizadas segundo o tamanho: as maiores ficam em cima, as menores, embaixo. No quarto do casal, também de piso de terra dura e úmida, a cama de molas está encostada à parede e protegida por um cobertor lilás, florido. Alberto senta-se nela para ser fotografado. Duas das filhas pequenas do casal – a mais nova tem 5 anos; a mais velha, 17 – aparecem. Cada uma traz na mão um filhote de gato de poucos dias de vida. Bonitas e sorridentes, ainda são incapazes de compreender a brutal violência que lhes arrancou a mãe.

Alberto, o viúvo, na cama que dividia com Rosimar, e uma das sete filhas deles: jovem demais para entender a brutalidade
Perto dali, Alberto e Rosimar plantavam juntos uma roça. “Mandioca, Abacaxi, Banana, Cará, Batata Cana. A Mandioca, já tamo colhendo. E bem agora que ela não está mais”, desconsola-se. Diz que não se esquecerá, enquanto viver, do dia em que deu pelo sumiço da companheira, na manhã de 2 de janeiro. De cara, não se preocupou: achou que ela pudesse estar na casa de seu pai, Milton Cordovil França, que vive mais perto do Piabódromo. Não estava. Aí a aflição bateu. Alberto chamou um irmão que tem uma moto, e os dois rodaram a cidade atrás de Rosimar. Chegaram a passar algumas vezes defronte ao prédio abandonado da telefônica sem imaginar que o corpo dela estivesse ali. “Daí soube que haviam encontrado uma mulher morta. Falei – é ela. Eu não vi o corpo, mas papai viu. Estava todo quebrado, cortado com faca.”
A lembrança desperta raiva em Alberto. “Queria que o senhor tivesse visto o tanto de Yanomami que tinha aqui [na noite do crime]. E o tanto de droga, cachaça que estão consumindo. Eu já não gostava de índio, agora é que não gosto de nenhum”, dispara. Milton, seu pai, é Indígena Baré – como Rosimar. Zuleide, a irmã dela, contemporiza: “Não é de todos os Yanomami que nós estamos sentindo raiva. Esses [os suspeitos do feminicídio] ninguém conhecia. Porque o povo aqui de Barcelos [se referindo aos que costumam vir à cidade], esses nunca fizeram mal a ninguém”.
O banco que flutua – mas não tem dinheiro
O Chico Mendes é um imenso barco de três andares pintado em branco e tons claros e escuros de azul, com o logo da Caixa em destaque. É uma agência bancária flutuante. Impossível não notá-lo quando aporta em Barcelos. É uma visita aguardada: a cidade tem apenas duas agências bancárias, do Banco do Brasil e do Bradesco. Para quem precisa da Caixa, caso de quem recebe o Bolsa Família, a chegada periódica da Agência Chico Mendes, nome oficial da embarcação, é um acontecimento.

O Chico Mendes, agência flutuante da Caixa que vai periodicamente a Barcelos: os Yanomami não acreditam que ele não leva dinheiro. Imagem: Caixa/Divulgação
A notícia de que a Caixa está para aportar se espalha pelos grupos de mensagens e chega às aldeias. Os Yanomami que vivem nas calhas dos Rios Demini, Padauiri, Marari, Aracá e Preto se amontoam em pequenos barcos a motor e, em viagens que podem durar mais de uma semana correnteza abaixo (a volta, subindo o rio, é ainda mais demorada), rumam a Barcelos para receber seus benefícios e fazer compras.
O Bolsa Família começou a ser pago aos Indígenas no início da década passada. Mas os Yanomami, um povo cujo contato mais frequente com o mundo dos brancos começou entre as décadas de 1940 e 1960, jamais receberam qualquer tipo de educação para lidar com o dinheiro e a cobiça. Indígenas não são obrigados a sacar o Bolsa Família todo mês; podem deixar o benefício acumular por até seis meses no banco. Mas poucos Yanomami sabem disso.
No Chico Mendes, é possível se cadastrar no Bolsa Família, resolver pendências burocráticas, desbloquear os cartões usados para sacar o benefício. Menos sacar os pagamentos – por segurança, os barcos não carregam dinheiro. Os Yanomami são avisados disso, mas muitos simplesmente não conseguem acreditar que o banco flutuante não tem como lhes pagar. A alternativa para retirar os benefícios é a única casa lotérica da cidade. Que, como não é um banco, também não guarda grandes somas em dinheiro. É preciso esperar que alguém apareça para fazer uma aposta ou pagar uma conta para que haja caixa disponível para os benefícios. À porta, famílias Yanomami esperam em filas que podem durar dias, sob sol e chuva.
Quando o Chico Mendes atracou em Barcelos em agosto de 2024, havia 2 mil Yanomami ali, segundo uma servidora da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, que falou sob a condição de não ser identificada. (O barco voltou à cidade entre 13 e 15 de janeiro deste ano. Mas, reflexo do medo que sentem após o feminicídio de Rosimar, dessa vez eram poucos os Yanomami a esperá-lo.) E, quanto mais deles ao mesmo tempo na cidade, mais fácil a vida dos napëpë dedicados a enganá-los e botar as mãos em seu dinheiro.

A família de Minôrio (à dir., sem camisa) preparando-se para as compras: Bolsa Família dos Yanomami injeta mais de meio milhão de reais por mês no comércio de Barcelos
“Os Yanomami passaram a ter independência econômica com os benefícios. Mas é uma população que teve um acesso muito incipiente a programas de educação, que tem total desconhecimento matemático básico”, afirma Marcelo Moura, mestre e doutorando em antropologia social pelo Museu Nacional, instituição vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. “No processo inteiro, eles vão cumprir obrigações como, por exemplo, o acesso ao registro civil, sem entender nada do que estão fazendo, vão acessar o dinheiro sem entender muito de onde ele vem, nem por que ele é distribuído”, diz Moura, que ao longo de cinco anos viveu 20 meses em comunidades Yanomami na calha do Rio Demini para sua pesquisa na área da antropologia.
Com a cidade lotada, como em agosto passado, é costumeiro ver Yanomami – homens, quase sempre – embriagados pela rua. O álcool não é, em si, uma novidade introduzida pelo homem branco na vida dos Indígenas. Mas a bebida destilada, muito mais potente, é – assim como a oferta a rigor infinita de bebida em bares e mercados. Num texto publicado numa coletânea da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, intitulado “O Abuso de Álcool entre os Povos Indígenas no Brasil: uma Avaliação Comparativa”, a antropóloga estadunidense Esther Jean Langdon lembra que os povos originários da América sempre prepararam bebidas fermentadas para consumir em rituais tradicionais e mesmo em festas em que o objetivo era se divertir com a embriaguez. Mas isso mudou.
“Antes do domínio das sociedades Indígenas pela civilização de origem europeia, o uso das tradicionais bebidas fermentadas era marcado pelo controle e pelos limites socioculturais, o que já não ocorre na maior parte dos povos Indígenas sul-americanos”, escreve a antropóloga, que dedicou a vida a pesquisar temas como a cosmologia xamânica de Indígenas, a relação deles com o Estado e com políticas de saúde. Citando os Bororo, um povo que tradicionalmente ocupou um território que se espraiava entre o oeste da Bolívia e o sul do que hoje é Goiás, Langdon lembra que eles “costumavam preparar a chicha [um fermentado à base de Milho, Mandioca ou frutas] para ficar alegres. O comportamento dos que bebem cachaça hoje, ao contrário, é caracterizado por agressão e violência física”. Ela prossegue: “Se historicamente o uso de bebidas alcoólicas contribuiu de maneira positiva para os povos Indígenas, hoje seu consumo foge ao estilo tradicional. Os índios (sic) estão bebendo outras substâncias e o fazem, frequentemente, em novos contextos sociais. Estas mudanças trazem consequências altamente negativas para as comunidades, na forma de violência geral e familiar, desnutrição, danos à saúde das crianças – em casos de síndrome alcoólica fetal –, atropelamentos nas estradas etc”.
No posto da Funai em Barcelos, um cartaz logo na entrada lembra que, segundo a lei de 1973 ainda em vigor e conhecida como Estatuto do Índio, é crime passível de prisão “propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas” entre os povos originários. Um alerta ignorado até mesmo pelo prefeito da cidade. “Oferecer bebida é uma estratégia de cooptação, de vulnerabilização [dos Indígenas]”, lamenta Moura. “Ouvimos muito que os Yanomami vão votar [em determinado candidato] porque ele faz festa, dá bebida, dá coisas [a eles].”
Embriagados, os Yanomami chegam a brigar entre si na rua. Não é raro que saiam feridos. Também se tornam presas fáceis de traficantes de drogas como crack e cocaína, facilmente encontradas em Barcelos. Seduzidos pelas drogas da cidade, mas distantes delas nas aldeias, buscam a embriaguez no que encontram. Segundo integrantes de uma associação Indígena da cidade, na Aldeia Castanha do Marari, onde viviam, os suspeitos de estuprarem e matarem Rosimar se entorpeciam cheirando a gasolina usada para abastecer os motores dos barcos.
No modo de fazer a guerra dos Yanomami, jamais se matam mulheres. A barbárie contra Rosimar não é própria da cultura do povo. A embriaguez extrema e as coisas da cidade também não.

Indígena Yanomami em acampamento na ilha da Praia Grande, em Barcelos: pouco à vontade na cidade, eles preferem alguma distância dos ‘napëpë’
‘Sexo oral é de verdade?’
A internet ainda é uma novidade para os Yanomami. As primeiras antenas da Starlink, empresa do bilionário de extrema direita Elon Musk, hoje também supersecretário do governo de Donald Trump, fornecem conexão de alta velocidade via satélite e provavelmente entraram no território com garimpeiros. Desde pelo menos 2023 organizações não governamentais as instalam próximas a postos de saúde na Terra Indígena Yanomami, para garantir que as lideranças possam informar de emergências de saúde e invasões ao território. Essas ONGs tomam o cuidado de bloquear o acesso a sites de pornografia e de jogos. Adianta pouco.
Nas aldeias Yanomami, o celular e as caixas de som portáteis e potentes se tornaram itens considerados de primeira necessidade. Em Barcelos, SUMAÚMA colheu relatos sobre o fascínio exercido pela novidade. Internet e energia elétrica estão no topo da lista de pedidos feitos às organizações e a agentes do governo. Indígenas que fazem algum serviço ao garimpo preferem ser pagos com celulares ou tablets a receber em dinheiro. Algo que se vê nas ruas da cidade: em cada grupo de Yanomami com que cruzávamos, alguém tinha a cara afundada num celular. Os aparelhos também são dos itens mais buscados pelos Indígenas no comércio local. “Eles compram e muito, amigo”, diz a vendedora de uma loja da cidade. Em épocas de grande afluxo de Yanomami, chega a faltar estoque para dar conta da procura.
O Kwai, uma rede social chinesa de compartilhamento de vídeos curtos que patrocina o Big Brother Brasil e usa o slogan “Aqui Geral Brilha”, faz muito sucesso entre os Yanomami. De moderação precária, a rede é investigada pela suspeita de patrocinar a difusão de mentiras sobre vacinas e eleições e é infestada de conteúdo sexual, inclusive envolvendo crianças e adolescentes. Basta uma busca na internet para surgirem perfis com nomes como “só para maiores” ou “gostosas do Kwai”. A exposição à pornografia altera a maneira como os Yanomami lidam com o sexo. O funcionário de uma ONG, que pediu para não ser identificado, conta que já foi abordado por jovens Yanomami que lhe mostraram um vídeo de uma mulher praticando sexo oral no parceiro. “Eles querem saber se aquilo é verdade, porque é algo que não existe na cultura deles.”

No centro de Barcelos, mulher Yanomami se entretém com telefone celular: o aparelho virou item de primeira necessidade nas aldeias
Arquiteto e antropólogo, Daniel Jabra trabalha na Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana em Santa Isabel do Rio Negro, cidade próxima a Barcelos, e conhece o problema. “Os jovens adultos Yanomami de hoje não participaram de um processo de escolarização e educação politizada dentro da própria óptica Yanomami”, afirma. “Desde 2015 que começamos a ver a desestruturação dos projetos das escolas Indígenas. Elas servem como um microcosmo do mundo branco, que conscientiza sobre os males do nosso mundo. Mas muitos se tornaram jovens sem ter tido essa oportunidade.”
A circulação de conteúdo entre os Indígenas nem sequer depende de existir internet. Aplicativos como o Share It permitem que se troquem vídeos diretamente entre os aparelhos. “Quem vai à cidade ou a algum ponto com internet volta carregado com as novidades, e rapidamente os vídeos estão nos celulares de todo mundo da comunidade. Tudo chega numa velocidade que espanta”, diz o funcionário da ONG. O problema se tornou grave a ponto de virar pauta de eventos de organizações Yanomami. Em agosto passado, um encontro de jovens Yanomami do Rio Marauiá, apoiado pela Hutukara Associação Yanomami, do xamã Davi Kopenawa, e pela Funai, colocou “o uso excessivo de celulares e jogos” e “o uso e circulação de pornografia” na lista de “problemas atuais nas comunidades em relação aos jovens, ao lado do “uso de drogas e bebida alcoólica” e do “consumo excessivo de alimentos industrializados”. Nada disso é da cultura tradicional dos Yanomami. É coisa de napëpë.
‘O pior do nosso mundo’
A importância para a economia local não se reflete nos espaços que Barcelos reserva aos Yanomami. O habitual é encontrá-los acampados em praias às margens do Rio Negro ou em terrenos distantes, na periferia. A cidade já é pobre e precária para a imensa maioria de seus moradores. Ainda assim, reserva o pior de si aos visitantes Indígenas cujo dinheiro faz de tudo para tomar.

Criança em acampamento Yanomami na ilha da Praia Grande, em Barcelos: a cidade reserva aos Indígenas o que tem de pior
“Quando fui viver com os Yanomami, fui muito bem recebido. E sempre penso como nós os recebemos em nosso mundo”, reflete Marcelo Moura. “Nem o consumo eles conseguem acessar com dignidade plena. Oferecemos só o pior do nosso mundo: alimentos de baixa qualidade, drogas, álcool, prostituição.”
É como se os dois mundos, o dos Yanomami e o dos napëpë, se tocassem apenas em suas margens. No caso deles, a “margem mais distante dos padrões de vida e organização da sociedade, com os Indígenas vulneráveis por não terem a sua proteção social, encontrando a margem do nosso mundo, dormindo na rua, em locais insalubres, sem saber acessar a cidadania, sem explicação na língua deles do que são os programas sociais”, analisa o antropólogo. “E aí eles vão falar que na cidade só tem ladrão, só tem bebida, porque é só o que eles veem.”
Em Barcelos, é fácil reconhecer – mesmo de longe – os Yanomami. Magros e pequenos, andam em grupos grandes. É comum que famílias inteiras viajem juntas para receber o benefício e fazer as compras. Minôrio Yanomami levou esposa e dois filhos, além de outros parentes, numa viagem de quatro dias descendo o Demini. No primeiro dia que os vimos, na porção comercial da cidade, ele expressou desconfiança, nos entendeu mal, falou português com dificuldade.
Um dia depois, tornamos a encontrar Minôrio e sua família. Desta vez, numa ilha defronte a Barcelos conhecida como Praia Grande, que costuma lotar de moradores e alguns turistas nos fins de semana. Os Yanomami não ficam na praia principal, mas numa pequena clareira à margem do Rio Negro que é separada por um trecho de algumas dezenas de metros de mata fechada. É uma pequena faixa de areia cravejada de estacas de madeira nas quais os Indígenas estendem suas redes. Pelo chão, estão espalhadas garrafas PET de refrigerante vazias, embalagens de salgadinhos, bolachas recheadas, macarrão instantâneo. (Noutro acampamento, numa ilha ao lado, também havia uma pilha de latas de cerveja vazias.)

O pior do mundo dos brancos: no lixo de um acampamento Yanomami, em Barcelos, latas de cerveja, garrafas de refrigerante e embalagens de salgadinho
A presença de agentes de saúde que trabalham com os Yanomami deixa Minôrio mais à vontade para falar. “Ficar aqui é mais seguro. A cidade é perigosa”, diz, citando o medo que têm de serem agredidos pelos moradores após o crime. “Se não precisasse vir, eu não vinha.” Minôrio conta que já teve que esperar 15 dias até que a lotérica de Barcelos finalmente tivesse dinheiro para lhe pagar o benefício.
A precariedade é bem-vinda para quem deseja enganar os Yanomami: SUMAÚMA ouviu relatos de comerciantes e pessoas que, dizendo querer ajudar os Indígenas, lhes entregam as mercadorias sem cobrar em troca de reter os cartões de benefícios com as senhas. Uma servidora da Funai chegou a receber, por engano, uma mensagem de áudio em que uma mulher de Barcelos admite reter ao menos um cartão de benefício de um Indígena Yanomami identificado como Marquinhos, por causa de uma dívida. Chamada à Funai, ela se recusou a entregá-lo. A polícia conhece o golpe. “É uma prática que realmente acontece no interior do Amazonas. Em Barcelos, como nem agência da Caixa tem, o cartão com a senha vira uma espécie de garantia”, relata o delegado de polícia da cidade, John Castilho.
A falta de boletins de ocorrência registrados pelas vítimas dificulta a apuração, mas há inquérito em andamento na delegacia da cidade: três comerciantes são investigados pela prática, que no mínimo configura crime de estelionato. Em Santa Isabel do Rio Negro, cidade próxima a Barcelos, um comerciante foi preso por desviar 80 mil reais de cartões de benefícios.
Uma entidade nebulosa
A Associação Xoromawé Indígena foi fundada há pouco mais de três anos. Reúne, principalmente, Yanomami que vivem nas calhas do Rio Padauiri e seu afluente Marari, na porção oeste da Terra Indígena Yanomami, onde fica a Aldeia Castanha do Marari. É presidida por Geraldo Aprueteri Yanomami – que, por coincidência, é irmão de criação de Alberto Viana França, o viúvo de Rosimar. Mas quem a comanda no dia a dia é o vice-presidente, Rui Leno Macedo de Moraes, auxiliado pela esposa, Ana Lacerda, a primeira-secretária da entidade. Os dois se identificam como Indígenas Baré. É de Leno, e não de Geraldo, a assinatura que valida as carteiras emitidas pela associação.
A história da Xoromawé se confunde com a chegada a Barcelos de uma outra entidade que vem avançando sobre Terras Indígenas. Trata-se da Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais, mais conhecida pela sigla Conafer. Segundo seu site, a Conafer foi “fundada em 2011 a partir da necessidade dos agricultores familiares do Brasil de ter voz autônoma em decisões referentes ao setor agrícola no país”. Tem escritório em Brasília e é presidida por Carlos Lopes, que se apresenta como Indígena do povo Tapuio. “Eles apoiam 244 povos”, garante Leno. “Louvo a Deus pela vida do nosso presidente”, que é tratado como “padrinho da Xoromawé”.

Rui Leno, da Associação Xoromawé: ligação com a Conafer, suspeita de reter indevidamente o dinheiro de benefícios de Indígenas
Sobre a mesa de trabalho na qual somos recebidos na Xoromawé, há uma pilha de fichas de filiação de Indígenas à Conafer. Elas chegam ao detalhe de perguntar se o proponente possui conta bancária, que não é necessária para, por exemplo, receber o Bolsa Família. “Nós aqui fazemos apenas a filiação à Xoromawé”, explica Ana. “Mas oferecemos benefícios para quem se associa à Conafer”, acrescenta, admitindo a confusão entre uma e outra.
As duas entidades são vistas com reserva e mantidas a alguma distância por organizações mais tradicionais dos Yanomami, como a Hutukara. Para elas, Xoromawé e Conafer incentivam a descida desordenada dos Yanomami a Barcelos em busca de benefícios como o Bolsa Família – que coloca os Indígenas em situação vulnerável e, no limite, resulta em crimes como o feminicídio de Rosimar. “Desde que a Xoromawé nasceu, essa é a principal frente de trabalho deles”, aponta o antropólogo Marcelo Moura.
Xoromawé e Conafer dizem não cobrar nenhum tipo de mensalidade dos Indígenas associados. Mas SUMAÚMA recebeu um documento que mostra o desconto de 39,53 reais da aposentadoria de uma Indígena Baré de Barcelos a título de “contribuição à Conafer”. Procurada, a entidade diz se tratar de “desconto previdenciário feito para que o aposentado tenha acesso a diversos serviços da Conafer”, que ele não é impositivo e pode ser cancelado a qualquer momento.
A mulher Baré que sofreu o desconto é analfabeta. O desfalque só foi percebido pela família quando o nome da mãe foi colocado em cadastros de devedores por causa da dívida causada pelo desconto. “Não sabíamos. Ela nunca foi avisada”, diz o filho, que pediu para não ser identificado. “Meus irmãos também são descontados, e nenhum deles é aposentado”, reagiu, ao ser informado da resposta prestada pela Conafer.

Documento do INSS que atesta desconto para a Conafer em aposentadoria de Indígena: segundo a família, não houve autorização
Ao ser confrontado com as perguntas sobre as cobranças da Conafer, Leno reagiu: “Vocês vêm aqui e se aproveitam da fragilidade de todo mundo para fazer uma tempestade num copo d’água. O que a gente quer é justiça pela Rosimar, que o crime seja investigado. Estou sendo ameaçado de morte pela população Indígena Baré. E pelos Yanomami também. Estou no fogo cruzado”.
A influência da Conafer na cidade pode ser medida eleitoralmente. Natalia de Souza da Silva, que trabalhava coletando filiações para a entidade ao lado de Rui Leno, elegeu-se vereadora no ano passado. Numa primeira conversa com SUMAÚMA em seu gabinete, ela confirmou que atuava na Conafer. Mais tarde, quando perguntada por mensagem se informava os Indígenas de que a filiação poderia ter custos, ela preferiu não responder. “Oriento sua senhoria procurar a Conafer em Brasília e tirar as dúvidas que deseja”, disse.
O secretário nacional de Políticas para Monitoramento e Segurança da Conafer é um Indígena, Geovanio Oitaiã Pantoja Katukina. Ele atuou no governo de Jair Bolsonaro (PL) como coordenador de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai – cargo que chegou a ser ocupado pelo indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari em junho de 2022 junto com o jornalista britânico Dom Phillips. Em dezembro de 2022, Geovanio Katukina foi alvo de uma operação da Polícia Federal. Suspeitava-se que ele dificultava a proteção dos Indígenas isolados na Terra Indígena Ituna/Itatá, no Pará. Alvo de grileiros de terras, Ituna/Itatá chegou a ser a Terra Indígena mais desmatada do Brasil. Geovanio Katukina emitiu um parecer que colocou em dúvida a presença de Indígenas isolados na área – uma hipótese imediatamente abraçada pelos grileiros e seus defensores. Pela assessoria de imprensa, Katukina disse que “não cabe, neste momento, apresentar comprovações ou entrar em detalhes sobre o processo, pois tais questões devem ser decididas pela Justiça”, e que “a Constituição protege qualquer cidadão de ser incriminado antes de um julgamento definitivo”. Acrescentou: “Estou seguro de que não estou envolvido em nenhuma irregularidade”.
Pouco mais de 20 dias após o crime, a Xoromawé lançou uma campanha de financiamento coletivo na internet com a meta de arrecadar 20 mil reais para a família de Rosimar. A associação é que vai coletar o dinheiro. Segundo Rui Leno, a soma arrecadada será doada integralmente a Alberto, viúvo dela. Acrescentou que pediu ajuda “à senadora Damares [Alves, do Republicanos do Distrito Federal, ex-ministra do governo Bolsonaro] e ao senador Plínio Valério [do PSDB amazonense, um bolsonarista conhecido por se opor ao trabalho de ONGs ambientalistas que atuam na Amazônia]” na divulgação da vaquinha. Alberto aparece, num vídeo da campanha, pedindo ajuda: diz que não pode sair para trabalhar na roça nem pescar porque precisa cuidar das crianças, algumas delas ainda pequenas. Em um áudio enviado num grupo de WhatsApp de que participa gente de toda Barcelos, uma sobrinha de Rosimar reclamou do uso da imagem dos filhos de Rosimar e Alberto no vídeo – todos são menores de idade. Outra parte da família, porém, diz que o pai autorizou a publicação do material. Até a tarde de 24 de janeiro, apenas 530 reais haviam sido doados.
SUMAÚMA tentou, mas não conseguiu contato com Geraldo Yanomami pelo telefone celular.

Na Funai, Geovanio Katukina (à esq.) tomou decisão contra Indígenas. Hoje, está na Conafer, que elegeu a vereadora Natalia de Souza (à dir.). Reprodução Instagram
‘O corpo da mulher Indígena é muito sexualizado’
A principal praça do centro de Barcelos vai aos poucos se enchendo de gente – mulheres, principalmente – num fim de tarde de uma quinta-feira de janeiro. Elas estão lá para uma atividade que mistura ginástica e dança e é conhecida como ritbox, realizada semanalmente ao ar livre. Conversamos com duas delas, que se identificam como assistentes sociais. Perguntamos sobre o feminicídio de Rosimar. Em alguns minutos, elas passam a nos contar como é ser mulher na aparentemente tranquila e pacata Barcelos. O crime da virada do ano tornou mais agudo um medo já cotidiano.
“Cheguei à noite de barco e só me senti segura porque um conhecido veio me buscar”, diz uma delas. Por sentirem medo, nenhuma quis ter o nome publicado. Na época da pandemia, relatam, houve três estupros cometidos por mototaxistas em apenas nove meses. “Não somos donas de nossos corpos. O corpo da mulher amazonense é tido como pegável. O corpo da mulher Indígena é muito sexualizado. Já vi muitas meninas de 13 anos casadas com homens de mais 30. Sempre com o argumento de que a família permitiu, que a menina já sabe o que quer da vida”, afirma a amiga. Dois dias depois do assassinato da Indígena Baré Rosimar, houve outro estupro na cidade, dessa vez o de uma mulher Yanomami – o suspeito também é Indígena e havia consumido álcool, diz a polícia.
São crimes que, elas acreditam, devem aumentar o preconceito contra os Yanomami na cidade. No sábado anterior, o primeiro após o crime, um protesto contra o crime terminou aos gritos de “Fora, Yanomami”. O governo federal enviou a Força Nacional a Barcelos para a “pacificação e preservação da ordem pública diante da situação de tensão envolvendo as etnias Yanomami e Baré”, informou o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Protesto em Barcelos teve gritos de ‘Fora, Yanomami’. Por segurança, suspeito preso foi levado a Manaus. Fotos: Guilherme Gnipper e Erlon Rodrigues/PC-AM
Sirrico Aprueteri Yanomami, um dos suspeitos de cometer os crimes de “estupro, femicídio e vilipêndio de cadáver”, foi preso e levado a Manaus. Os outros dois, Klesio Aprueteri Yanomami e um menor de idade, fugiram de barco e chegaram à Aldeia Castanha do Marari. O delegado John Castilho disse ter recebido um vídeo em que eles se dizem dispostos a resistir. “A situação é extremamente delicada. Essa captura não é um assunto apenas de polícia”, explica ele. Servidores da Funai devem ir à aldeia conversar com os suspeitos e tentar negociar uma rendição. Se os dois não se entregarem, é possível que a insatisfação venha a explodir contra algum Yanomami que nada tenha a ver com o crime. Além da delegacia, Barcelos tem nove policiais militares, que se revezam em turnos auxiliados por seis guardas municipais e contam com apenas duas viaturas.
O prefeito Radinho é um engenheiro de pesca que nasceu em Manaus há quatro décadas, trabalhou durante anos para o governo do Amazonas e nunca havia vencido uma eleição na vida. Foi procurado por SUMAÚMA em seu gabinete e por telefone. Inicialmente, ele se dispôs a responder às perguntas da reportagem. Quando as recebeu, porém, parou de atender às chamadas telefônicas e às mensagens por aplicativo.
“Queremos justiça. Mas isso está nas mãos da polícia”, afirma Zuleide, irmã de Rosimar. “E que tomem providências, pois o que aconteceu com ela pode acontecer com outras mulheres que estão andando por aí.” Enquanto tentam entender e lidar com a brutalidade, os familiares guardam uma mágoa. Radinho, o político da festa decisiva para a tragédia que lhes mudou a vida para sempre, jamais apareceu para uma visita de solidariedade. Nem sequer se deu ao trabalho de enviar um zap.
De 30 de janeiro a 2 de fevereiro, o Piabódromo está programado para lotar com a edição 2025 do Festival do Peixe Ornamental de Barcelos. As equipes do Acará-Disco e do Cardinal vão dançar, haverá shows de música sertaneja, forró e piseiro, além de um especial, no encerramento, com a banda de pagode paulistana Pixote. O prefeito estará presente, são esperados 3 mil turistas, o álcool vai rodar. Não está prevista nenhuma homenagem a Rosimar, que começou a morrer numa festa realizada ali. Para a prefeitura, o turismo e os negócios do comércio local, é melhor que o crime seja esquecido rapidamente.

Ameaça cotidiana: em Barcelos, como em toda a Amazônia, estupros são comuns, e mulheres caminham com medo pelas ruas
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum