Jornalismo do centro do mundo

Estética ruralista na reunião de comissão da Câmara dos Deputados denuncia a presença da bancada mais influente e articulada do Congresso. Foto: Julia Dolce

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‘A Marina torrou e virou fumaça’

“Tiro, porrada e bomba”, responde Evair Vieira de Melo a dois jornalistas do agronegócio que o saúdam com um prosaico “bom dia”. Técnico agrícola filiado ao Progressistas, ele está no terceiro mandato como deputado federal pelo Espírito Santo. É um típico político bolsonarista. Fala alto, metralha frases desconexas em tom desafiador, se veste de forma descuidada. O assunto da conversa que se inicia são os incêndios florestais que devastam a Amazônia, o Pantanal e que haviam chegado a São Paulo, colocando 48 cidades em situação de alerta, fechando aeroportos e sufocando com fumaça o estado mais rico do Brasil.

É final da manhã de terça-feira, 27 de agosto, numa mansão em estilo colonial no Lago Sul, o mais caro dos bairros de Brasília. A renda média dos moradores supera os 20 mil reais mensais. Se fosse um município, o Lago Sul seria de longe o mais rico entre os 5.570 do Brasil, diz um estudo da Fundação Getulio Vargas. O casarão com paredes em terracota e amplos janelões em madeira pintada de verde e beirais brancos é a sede da Frente Parlamentar da Agropecuária, a FPA, e do Instituto Pensar Agropecuária, o IPA. A FPA, mais conhecida como “a bancada ruralista”, é a mais numerosa e bem organizada frente multipartidária do Congresso Nacional. Isso se deve, em grande parte, ao IPA, o centro de comando bancado por 57 associações empresariais que formula projetos de lei e estratégias para os políticos.

A mansão do IPA, no caríssimo bairro do Lago Sul, em Brasília, e o deputado Evair Vieira de Melo. Fotos: SUMAÚMA e Julia Dolce

“A impressão é que a [ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima] Marina [Silva] torrou e virou fumaça”, diverte-se Melo, um dos vice-presidentes da FPA na Câmara dos Deputados. Na véspera, o brigadista Uellinton Lopes dos Santos, de 39 anos, morreu enquanto combatia um incêndio florestal na Terra Indígena Capoto/Jarina, em Mato Grosso. Uellinton trabalhava para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, que é vinculado ao ministério de Marina. A nota de pesar emitida pelos dois órgãos explica que “o corpo foi localizado na manhã de segunda-feira (26), a cerca de 1 quilômetro de uma linha de defesa contra o fogo”.

Eu me aproximo e pergunto se Melo pode me dar um exemplo de projeto de lei contra incêndios florestais defendido pelos “ruralistas”. Parecendo surpreso, ele inicialmente gagueja. “E quem disse que… A… A…. Quem queima floresta é criminoso, é com a polícia. Isso já existe, meu irmão. Tem que ser irracional para dizer que tem alguém do agro ligado a isso”, dispara, sem que eu tivesse feito nenhuma acusação ao poderoso setor econômico que ele representa. “A imprensa, a Marina Silva, no governo Bolsonaro, [diziam que] tudo era [culpa] do Bolsonaro, [foi] Bolsonaro que botou fogo. E agora? Vão falar que é o Bolsonaro de novo?”, prossegue, enquanto batuca, repetidamente, o dedo indicador contra o meu peito. “E o fogo da Califórnia? E o fogo da Espanha? Você está acompanhando a Austrália? A Nova Zelândia? Tem que parar de falar mal do Brasil. Nós temos que fazer uma política pública para pagar passagem de ida [ao exterior] para quem fala mal do Brasil.”

Melo e seus pares de bancada estão irritados com uma declaração que Marina Silva fizera no domingo, 25 de agosto. Ao comentar as ocorrências em São Paulo, a ministra ponderou que os incêndios simultâneos eram “atípicos” e lembravam o “Dia do Fogo”. Trata-se do episódio, ocorrido em agosto de 2019, em que grileiros de terras e pecuaristas instalados às margens da BR-163, no sudoeste do Pará, foram suspeitos de produzir queimadas em série para “mostrar serviço” ao então presidente Jair Bolsonaro, do PL. Apesar de frisar que a maioria das queimadas começou em áreas de propriedade privada, Marina não culpou o agronegócio pelas queimadas em São Paulo, no Pantanal e na Amazônia. Mas a bancada ruralista fez questão de vestir a carapuça.

Marina Silva (à dir.) faz uma análise do durante a visita de Lula à sala de situação do PrevFogo, no Ibama, em Brasília. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

O lobby – isto é, a tentativa de influenciar as decisões de agentes políticos – não é ilegal, tampouco incompatível com a democracia. No Congresso, é corriqueiro se deparar com lobistas de todo tipo. Servidores públicos pressionando pela aprovação de leis que os beneficiem; policiais militares, rodoviários, guardas-civis, uniformizados, pedindo ajuda para  pautas de seu interesse; homens engravatados, discretos, à espera de conversas privadas nos gabinetes. A diferença do lobby ruralista está na força, no tamanho e na estrutura. Para começar, as entidades que formam o IPA não precisam sequer ir à Praça dos Três Poderes. Os deputados e senadores é que vão ao Lago Sul.

As associações empresariais que bancam o Instituto Pensar Agropecuária são formadas por marcas de peso, como Danone, Kellogg’s, Heineken; grandes bancos, como Bradesco, Itaú, Santander; seguradoras, como Porto Seguro e Tokio Marine; a operadora de telefonia Vivo. Milhares de associações rurais, usinas de açúcar e etanol, indústrias de todo tipo, escritórios de advocacia e empresas do setor financeiro compõem as 57 entidades que sustentam o IPA. Algumas empresas, como as fabricantes de agrotóxicos Bayer, Basf e Syngenta, as multinacionais estadunidenses de alimentos Bunge e Cargill, as brasileiras BRF e JBS e a suíça Nestlé, integram não um, mas vários desses sindicatos patronais. Cada entidade (a lista completa está no infográfico a seguir) paga mensalidade para arcar com o aluguel da mansão e o salário dos funcionários do instituto – são 30, segundo o site oficial. O valor é mantido sob sigilo, mas fontes apontam cifras que variam de 14 mil a 20 mil reais mensais. Numa conta conservadora, que utiliza a menor cifra como base, é um orçamento mensal de mais de 800 mil reais.

Muitas das marcas cujos sindicatos patronais formam o IPA garantem a seus consumidores ter compromisso com a conservação do meio ambiente. Mas no casarão do Lago Sul suas entidades setoriais se dedicam a criar projetos que vão no sentido oposto. A lei que facilitou o uso de agrotóxicos, a que impôs um marco temporal para a demarcação das Terras Indígenas, as propostas que reduzem a reserva legal em fazendas na Amazônia, que buscam sufocar financeiramente o Ibama, afrouxar o licenciamento ambiental ou dificultar a criação de novas unidades de conservação ambiental são alguns exemplos. Como disse Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, na mansão funciona “o centro de produção legislativa de retrocesso ambiental”. E seus operadores preferem trabalhar longe do escrutínio público.

As terças-feiras são os dias mais movimentados no IPA. É quando seu presidente, o ex-deputado mato-grossense Nilson Leitão, filiado ao PSDB, recebe os líderes da bancada ruralista no Congresso para definir as prioridades e as estratégias da semana. Em seguida, um almoço é servido aos lobistas e parlamentares – naquele dia, no cardápio havia peito de frango grelhado, bife, arroz, pirão de mandioca e salada – reunidos em torno de uma mesa quadrangular na Sala Homero Pereira. Trata-se de uma homenagem ao político de Mato Grosso que foi estratégico para o surgimento do instituto, autor do projeto de lei que deu origem à lei do marco temporal. Homero Pereira morreu em 2013, aos 58 anos, vítima de câncer.

Tudo acontece  a portas fechadas. Jornalistas são confinados na sala de imprensa, onde dois sofás de couro e duas mesas de centro, encostadas a uma parede, compõem a decoração. Sobre elas, publicações que louvam o setor se oferecem como passatempo – uma é dedicada à “responsabilidade social e ambiental” da indústria do tabaco. Ao lado da porta de entrada, um banner com a logomarca da Frente Parlamentar da Agropecuária – idêntico ao do Instituto Pensar Agropecuária. Diante dele, sobre um pedestal, três microfones. São do Canal Rural, que pertence à J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista; do Canal Agro+, fruto de uma parceria do Grupo Band com o próprio IPA e a Confederação da Agricultura e Pecuária, a CNA; e do Canal do Boi, fundado por um pecuarista de Campo Grande, nos anos 1990, para transmitir leilões de animais e que diz ser “a primeira emissora de agronegócio do mundo”. Só que hoje a única fala à imprensa será a breve e confusa declaração de Evair de Melo. As perguntas de SUMAÚMA ao deputado chegaram rapidamente aos ouvidos da chefia de comunicação do IPA, que decidiu cancelar a entrevista coletiva que habitualmente é concedida pelo presidente da FPA, o deputado federal Pedro Lupion, do PP paranaense.

Microfones alinhados à espera de uma entrevista na mansão do IPA, onde só há declarações a quem não faz perguntas incômodas. Foto: Julia Dolce

Da sala da imprensa, a única vista para o interior da mansão é barrada por uma porta, guardada por uma funcionária do setor de comunicação do IPA. Assim que deputados e pessoas que vestem trajes sociais passam, ela é rapidamente aberta e fechada. Invariavelmente, a maçaneta cai e precisa ser colocada no lugar. No pátio da mansão, vejo uma mulher circulando com um crachá da CropLife Brasil – uma associação de fabricantes de agrotóxicos. Me apresento e peço uma entrevista.

Ela se desculpa e diz que não pode falar, mas que tem certeza de que o IPA terá prazer em responder às minhas perguntas. Enquanto isso, a jornalista Julia Dolce, que também estava no casarão, fotografou placas com os nomes de algumas das entidades cujos representantes haviam participado do almoço daquela terça. Imediatamente, um funcionário do instituto abordou-a com a ordem de apagar as fotos. Como me diria, dias depois, o executivo de uma das entidades que compõem o IPA, nada disso é casual.

Vou à portaria e peço para conversar com a chefa da comunicação do IPA e da FPA, Danielle Arouche. Enquanto espero, um sujeito baixo, vestindo calça social e camisa branca, passa por mim e diz: “Jornalista é uma raça mesmo”. Quando finalmente sou autorizado a entrar e falar com Arouche, ele está sentado ao lado dela em uma mesa de reuniões. Trata-se de Ibiapaba Netto, que fez carreira como jornalista em veículos como O Estado de S. Paulo e Istoé Dinheiro Rural antes de passar a atuar na assessoria de comunicação de grandes grupos econômicos. Desde 2013 é diretor-executivo da CitrusBR, a entidade que congrega as indústrias exportadoras de sucos cítricos. Também coordenou as comissões de Comunicação e Relações Internacionais do IPA – atualmente, segundo seu perfil no LinkedIn, é o chefe da Comissão Trabalhista.

Ao contrário do que previra a representante da CropLife Brasil, a chefa da comunicação me informa que nenhuma das perguntas enviadas ao IPA será respondida. “O instituto dialoga apenas com o setor. Quem fala com a sociedade é a FPA”, ela justifica. Mas Pedro Lupion tampouco concordou em conversar comigo. Por causa disso, eu enviei perguntas, por e-mail, em 23 de agosto – um mês depois as respostas ainda não tinham chegado. Minhas questões, afirmam Danielle Arouche e Ibiapaba Netto, são “enviesadas”.

O interesse de SUMAÚMA em retratar o IPA parece ter desencadeado uma ordem de silêncio. Uma pessoa com acesso aos bastidores do instituto contou que o pessoal da comunicação tentou descobrir quem me passava informações. Nenhum político da frente respondeu aos pedidos de entrevista feitos por SUMAÚMA. Nem mesmo o outro vice-presidente da FPA na Câmara, Arnaldo Jardim, do Cidadania de São Paulo, aceitou dar entrevista. Político considerado moderado e de bom trato, ele é ligado ao vice-presidente da República, Geraldo Alckmin. Também foram enviadas perguntas a Zequinha Marinho (Podemos-Pará, vice-presidente no Senado) e aos deputados Marussa Boldrin (MDB-Goiás, vice-presidenta para a Região Centro-Oeste), José Rocha (União-Bahia, vice para a Região Nordeste), Domingos Sávio (PL-Minas Gerais, vice para o Sudeste) e Luiz Nishimori (PSD-Paraná, vice para o Sul). Vicentinho Júnior (PP-Tocantins), listado no site da FPA como vice-presidente para a Região Norte, licenciou-se do cargo de deputado federal para assumir uma secretaria do governo de seu estado.

Ao final daquela terça-feira, a FPA soltou uma nota à imprensa. Como as queimadas que há anos destroem a vegetação nativa da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado agora causaram prejuízos ao agronegócio paulista, o texto anuncia “uma ação coordenada para aprovar projetos de lei que endureçam as punições para crimes de incêndio criminoso”.

Nilson Leitão, presidente do IPA. Ao lado, Brasília coberta pela fumaça de incêndios florestais em meados de setembro. Fotos: Luis Macedo/Câmara dos Deputados e Evaristo Sa/AP

‘Não constranjam a minha bancada’

Após dez anos de tentativas, a bancada ruralista conseguiu, em setembro de 2009, que a Câmara dos Deputados criasse uma comissão especial para debater um novo Código Florestal. A lei então em vigor datava de 1965. Ou seja, dos tempos da ditadura militar-empresarial que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985, incentivou a destruição do Cerrado por pastagens e monoculturas de soja e executou uma série de projetos de colonização que foram o estopim para a devastação da Amazônia. Com a redemocratização do país, a partir do final da década de 1980, a lei vinha sendo robustecida por sucessivos governos eleitos, pressionados a dar alguma atenção ao meio ambiente. Quando o então ministro da área, Carlos Minc, decretou que em dezembro de 2009 começariam a ser multados os donos de fazendas que não respeitassem a reserva legal (uma floresta protegida que deve ocupar de 20% a 80% da propriedade, a depender do bioma), os ruralistas berraram e conseguiram pautar o tema.

Moacir Micheletto, deputado federal pelo MDB do Paraná, foi nomeado presidente da comissão. Um dos mais radicais políticos da bancada ruralista, ele morreu em 2012 num acidente de carro. Micheletto e dois colegas igualmente intransigentes – Homero Pereira e Luis Carlos Heinze, este último atualmente senador pelo PP gaúcho – vinham cobrando um apoio eficiente das entidades que representavam a economia do agronegócio. Atualmente pode parecer estranho, mas à época “os agentes patronais não detinham unidade razoável de pleitos, narrativas para defendê-los e estratégias para implementá-los”, anota, em Formação Política do Agronegócio (Editora Elefante, 2021), o antropólogo Caio Pompeia.

Micheletto tinha apresentado um projeto de lei para mudar o código ainda em 1999, mas ele mal saíra do lugar. Para a nova oportunidade não ser perdida, algo precisava mudar. Incentivadas pelo trio de políticos, duas entidades regionais do setor rural, a Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão e a Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso, a Aprosoja-MT, toparam meter a mão no bolso e financiar um escritório de apoio para a bancada ruralista. “Era o embrião do Instituto Pensar Agropecuária, que revolucionaria o campo”, escreve Pompeia, que há mais de dez anos se dedica a pesquisar a influência política do setor rural.

Aqui, surge uma figura fundamental: João Henrique Hummel Vieira. Hoje um dos mais conhecidos lobistas de Brasília, desde 2005 ele prestava serviços de consultoria para a Aprosoja-MT. Em 2008, havia ajudado a repaginar a Frente Parlamentar da Agropecuária. Agora, tinha a chance de entregar a lei florestal ao gosto de seus clientes. Sabia que não seria fácil. Ao contrário de hoje, não havia orçamento secreto nem emendas parlamentares de pagamento obrigatório. Assim, a maior parte dos parlamentares tendia a votar com o governo para, em troca, pedir verbas e projetos para suas bases eleitorais.

João Henrique Hummel, o responsável pela montagem e consolidação da poderosa máquina de lobby do agronegócio. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Para vencer a queda de braço com o ministro do Meio Ambiente do então popularíssimo Lula, Hummel sabia que precisaria de uma estratégia ousada. A primeira tarefa era ganhar o coração do relator, ou seja, do político que escreveria o texto da nova lei na comissão. Tratava-se de Aldo Rebelo, então deputado federal pelo PCdoB de São Paulo – atualmente, ele está no MDB e foi secretário do prefeito bolsonarista da capital paulista, Ricardo Nunes, seu colega de legenda. “Quando Aldo foi escolhido, os partidos de esquerda acharam que até poderia ser um cara meio-termo”, relembra Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidenta do Ibama no governo de Michel Temer (2016-2019). À época, ela era consultora legislativa da Câmara e acompanhou tudo de perto.

O IPA só seria formalmente fundado em 2011, mas Hummel passou a reunir sua tropa de choque de parlamentares e assessores em uma tradicional padaria no Lago Sul. Eles perceberam que era crucial ganhar a guerra das narrativas – não só fora, mas também dentro do Congresso. Como deputados raramente dominam os assuntos que vão votar, criaram  o embrião de uma estrutura de assessoria capaz de municiá-los com argumentação farta, direta e de fácil compreensão. A assessoria de gabinete, o partido ou a consultoria da Câmara pouco ajudam. Mas a Frente Parlamentar Agropecuária estaria preparada para entregar conteúdo e estratégias políticas a quem quisesse aparecer no debate.

O relatório que Rebelo apresentou, em junho de 2010, já dizia a que vinha na epígrafe: “Dedicado aos agricultores brasileiros”. A palavra “agricultores”, ligada a quem coloca comida na mesa de brasileiras e brasileiros, encobre que a mudança na lei beneficiava principalmente latifundiários, donos de empresas rurais de carne e grandes plantadores de soja produzida para alimentar porcos e galinhas em outros continentes. Dispensava fazendeiros de recompor áreas de reserva legal destruídas e propriedades de até quatro módulos rurais – o que, em parte da Amazônia, significam 100 hectares – de manter uma árvore sequer de pé. A descoberta de que uma advogada que prestava consultoria jurídica à FPA havia escrito ao menos parte do texto não alterou a trajetória da lei. A batalha já estava perdida.

Monocultura de soja em Santarém, Pará, perto dos limites da Terra Indígena Planalto Santareno, dos povos Apiaká e Munduruku. Foto: Michael Dantas/SUMAÚMA

O texto foi à votação no plenário em maio de 2011 – quando a petista Dilma Rousseff já era presidenta da República, e Michel Temer, do MDB, o vice. Coube ao deputado potiguar Henrique Eduardo Alves deixar claro que o Código Florestal havia mudado profundamente a relação entre o Executivo e o Legislativo. Alves era líder do MDB na Câmara, mas da tribuna, e diante de um plenário lotado, mandou um recado aos ministros filiados ao seu partido: “Não constranjam a minha bancada, até porque não vai adiantar absolutamente nada. Esta é a hora desta Casa se afirmar. Isto aqui é um poder”, bradou, celebrando “a vitória da agricultura e da produção brasileiras”.

No Senado, o governo conseguiria amenizar parte da surra que levou na Câmara. “Mas a legislação se flexibilizou. O Código Florestal de hoje é menos rigoroso, em certos dispositivos, do que o anterior”, analisa Suely Araújo. Politicamente, tudo seria diferente dali em diante. A FPA havia se tornado a bancada mais forte do Parlamento. O IPA atrairia entidades patronais em série, encantadas com a força demonstrada pelo novo modelo de lobby. Para observadores, Hummel foi capaz de antecipar o momento político atual, em que um Congresso com poder hipertrofiado é capaz de impor derrotas sucessivas ao governo. Procurado, o lobista recusou uma entrevista para esta reportagem. De início, concordou, e propôs agendarmos um horário. Depois, parou de atender as ligações e de responder às mensagens enviadas ao seu telefone celular.

Atualmente, é impossível circular pelas salas em que se reúnem as comissões do Congresso que debatem temas de interesse do agronegócio sem se deparar com assessores que carregam pastas de papelão decoradas com o emblema da FPA e do IPA. Dentro delas estão a posição – contra ou a favor – e a argumentação formuladas na mansão do Lago Sul para as matérias do dia. Cada político da frente recebe a sua antes do início das reuniões. Parlamentares que encampam projetos de lei e as narrativas do tipo “quem é contra o agro é contra o Brasil” são  divulgados em redes sociais, canais de TV a cabo e internet ligados ao agronegócio. É um trabalho tocado por uma equipe de 11 pessoas (mais de um terço de todo o pessoal do IPA) dedicadas apenas a tarefas de comunicação, como produzir vídeos, notas, conteúdo para redes sociais, alimentar um site de notícias próprio, a Agência FPA, e até uma revista publicada a cada dois anos.

Henrique Eduardo Alves e Michel Temer em evento após o impeachment de Dilma Rousseff, em maio de 2016. Foto: Ricardo Botelho/Brazil Photo Press via AFP

O lobista punk rock

Um auxiliar próximo a João Hummel costuma descrevê-lo como “o lobista punk rock”. A razão é o gosto dele pelo confronto. Quando vai ao Congresso, comporta-se como quem está em casa. Na comissão especial da Câmara que discutiu, entre 2016 e 2018, o PL do Veneno, gostava de sentar-se na primeira fila, entre colegas ruralistas. Tratava-se de uma proposta para  facilitar o registro e a venda de agrotóxicos – ela virou lei em 2023, depois de mais de vinte anos de discussões. Certa vez, foi flagrado levantando a mão para votar, como se fosse parlamentar. Na mesma comissão, houve um momento em que riu do então deputado Alessandro Molon, do PSB fluminense, que criticava o projeto por permitir o registro de substâncias suspeitas de causarem câncer em crianças e adultos e malformação em fetos. “O senhor está rindo do quê? Estamos falando da vida de pessoas”, reagiu o político do PSB.

“Câncer, tudo dá. Poeira dá, fumaça de carro dá. E aí? Você vai parar de andar de carro?”, reagiu um debochado Hummel, em entrevista à Agência Pública, em 2018, quando indagado sobre o projeto. A pessoas próximas, o lobista gosta de dizer que “tudo o que a bancada ruralista apresentou de relevante nos últimos quinze anos” é obra dele – inclusive o PL do Veneno.  Seja como for, seu estilo é indissociável do crescimento e consolidação do IPA – do qual foi diretor-executivo desde a fundação, em 2011, até 2021.

Para conseguir lidar com as demandas das atuais 57 entidades, o IPA se estrutura em comissões temáticas. A assessoria de comunicação se recusou a informar quais são e quem as compõe. Em 2019, quando o antropólogo Caio Pompeia foi autorizado a realizar uma pesquisa na sede do instituto, eram mais de dez, entre elas as de “Direito de Propriedade”, “Segurança no Campo”, “Endividamento Rural” e “Alimentação e Saúde”.

Em cada comissão, há um funcionário do IPA e um consultor indicado pelas diversas entidades. São esses “agentes técnicos especializados [que] elaboram, em diálogo com as associações, minutas de projetos de lei e emendas constitucionais”, afirma Pompeia. “As comissões completam-se com a participação de um parlamentar, justamente aquele que também é designado como responsável pela comissão homônima da mesa diretora da FPA. Embora a frente não as apresente dessa maneira, na grande maioria dos casos as comissões do IPA e da FPA são de fato um mesmo espaço de articulação privado-parlamentar.”

Ao longo da apuração desta reportagem, a lobista Alinne Christoffoli foi uma das poucas pessoas que concordaram em falar abertamente sobre o IPA. Quando conversamos, em fins de 2023, ela trabalhava para a Aprosoja-MT em Brasília – atualmente, vive na Bélgica. “Tem dezessete anos que eu trabalho como lobista, não tenho problema em falar isso”, ela me disse à época. Em seguida, deu alguns detalhes de como funciona o trabalho. “Quem passa a demanda [legislativa] somos nós, as entidades. Por exemplo: a Aprosoja tem interesse em melhorar o calendário do plantio agrícola. Primeiro, tem que chegar num consenso, entre 30, 40 entidades, nas comissões técnicas”, falou.

O papel das comissões é justamente construir consensos entre as entidades setoriais. É ali, e não sob o olhar do público, que as discussões acaloradas acontecem, e ganha quem for mais convincente – ou mais forte. Obtido o consenso, ele é levado ao presidente do IPA, Nilson Leitão. E, só então, aos parlamentares. “Quando senta todo mundo no almoço, já veio [consenso sobre] a pauta prioritária, decidida pelo IPA e pelos parlamentares”, diz Christoffoli. Claro, não é uma via de mão única. Os políticos também levam pautas de suas bases eleitorais ao IPA. E, vez ou outra, acontece de discordarem do que desejam as entidades empresariais.

Reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária, em Brasília. Na mesa, a partir da esquerda, Evair de Melo (PP-ES), Tereza Cristina (PP-MS), Pedro Lupion (PP-PR), Sergio Souza, (MDB-PR), Zequinha Marinho (Podemos-PA) e Rafael Prudente (MDB-DF). Foto: Renato Araujo/Câmara dos Deputados

Negociador hábil, João Henrique Hummel costumava ser crucial na costura dos consensos das entidades entre si, e delas com os parlamentares. Contudo, ele deixou o IPA em 2021, depois de desentendimentos com Nilson Leitão. Levou consigo parte da equipe e montou a própria empresa de lobby, além de tocar duas outras frentes parlamentares – a do Empreendedorismo e a do Biodiesel. Desde então, a frente do Empreendedorismo também passou a realizar almoços semanais em Brasília – e também às terças.

Leitão, por outro lado, é visto com ressalvas pelos parlamentares justamente por ser também político. Para um observador, o instituto perdeu algo da capacidade de pautar o debate no Congresso. A bancada ruralista enfezou-se na oposição a Lula, ao passo que parte das entidades reunidas no IPA gostaria de uma relação mais amistosa com o governo. O presidente de uma delas, porém, discorda. “Hummel é um baita articulador, mas até para ele gerenciar os interesses de quase 60 associações era difícil. E quem decidiu ser reativa ao governo foi a própria FPA. Isso nem Hummel conseguiria mudar”, afirmou, sob a condição de anonimato.

A ascensão da extrema direita tornou algumas posições explícitas. A Aprosoja-MT, entidade que iniciou o movimento que resultou na criação do IPA, teve dois dirigentes investigados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito por participação nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023: Antonio Galvan, que a presidiu entre 2018 e 2020, e Lucas Costa Beber, vice-presidente entre 2021 e 2023. O relatório final da CPMI pede o indiciamento de ambos. Ainda assim, Beber foi eleito presidente da entidade para o período 2024-2026.

“Muitas dessas entidades ficaram muito politizadas. Falar em meio ambiente virou coisa de comunista, coisa imposta de fora para travar o desenvolvimento do Brasil. Isso é muito forte, principalmente nas regiões de fronteira, que enxergam a agropecuária como a única chance que vão ter”, diz um executivo de uma das poucas associações que integram o IPA e tentam – por interesse comercial, mas sem sucesso – modernizar a visão do setor sobre pautas como clima e conservação ambiental.

Atual presidente da FPA, Pedro Lupion defende a anistia de Jair Bolsonaro e diz que vai trabalhar por ela, para que ele dispute a eleição presidencial de 2026. A frente também lista entre seus membros alguns dos nomes mais barulhentos da extrema direita do Congresso – como Evair de Melo. Não consta, contudo, que isso realmente incomode as entidades reunidas no IPA. A FPA, afinal, segue entregando resultados: garantiu desconto nos impostos sobre a compra de agrotóxicos, manteve os alimentos ultraprocessados fora da lista de produtos que vão pagar o Imposto Seletivo (apelidado de “imposto do pecado”) na reforma tributária e incluiu a carne na cesta básica isenta de taxação. Os dois últimos itens ainda precisam ser ratificados pelo Senado.

Bois e vacas em área de pastagem na Amazônia. Ao lado, a solidão da Castanheira em terra devastada. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA e Pablo Albarenga/SUMAÚMA

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‘Ninguém quer invasão de terra por índio’

Após a vitória no Código Florestal, o Instituto Pensar Agropecuária voltou as atenções para as Terras Indígenas. A demarcação contínua de Raposa Serra do Sol, em Roraima, lar de povos Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana, depois de um longo julgamento no Supremo Tribunal Federal, colocou latifundiários e corporações em estado de alerta.

Associações integrantes do IPA levaram o tema a suas agendas de prioridades. Em documentos entregues aos candidatos que disputaram a eleição presidencial de 2014, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Abag, pediu “um novo marco regulatório para as demarcações de Terras Indígenas, por intermédio de alteração constitucional”. Por sua vez, a Confederação da Agricultura e Agropecuária, a CNA, dizia ser “urgente e definitivo cessar as ações demarcatórias, devendo o governo adotar mecanismos de aquisição de terras em atendimento de eventual demanda de novas áreas para as comunidades”.

A lobista Alinne Christoffoli, que atuou para a Aprosoja no IPA, afirmou que “todas as entidades queriam” o marco temporal, que só permite a demarcação de territórios que os Indígenas já ocupassem em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição em vigor. “A gente demandou eles [os parlamentares]. Demarcação de Terra Indígena é assunto prioritário para a cadeia inteira [do agronegócio]. Não é só para produtor rural, não. Senão as empresas de celulose, a galera da floresta, não ia estar lá. Porque eles também não querem ser invadidos. Ninguém quer invasão de terra, nem pelo MST, nem por índio (sic), nem por Quilombola. Insegurança jurídica, né? No Brasil, já tá demais.”

Em meados de 2023, o Supremo estava próximo de retomar um julgamento sobre a constitucionalidade do marco temporal. Foi questão de semanas para a Frente Parlamentar da Agropecuária passar o trator. Um de seus integrantes, o deputado Arthur Oliveira Maia, do União Brasil baiano, resgatou um projeto de lei apresentado por Homero Pereira em 2007 e produziu o que o Movimento Indígena viria a chamar de “PL do Apocalipse”. Com as bênçãos de Arthur Lira, do PP alagoano, presidente da Câmara, o texto foi aprovado em regime de urgência. Dias depois de o Supremo já ter decidido que a Constituição não admite um marco temporal, o projeto foi aprovado no Senado.

Naquelas semanas, assessores da frente circulavam com pastas produzidas especialmente para aquela votação, demonstrando quão importante é a pauta para a turma da mansão do Lago Sul. Na parte interna a pasta traz um cartum em que um pequeno produtor rural é expropriado da terra que herdou do avô por um Indígena. “E agora eu fico sem nada?”, questiona-se o rapaz. Uma folha com argumentos a serem usados em eventuais debates traz pontos como “a necessidade de garantir paz e tranquilidade fundiária ao país” e afirma que “os Territórios Indígenas no Brasil representam a área somada da França, Espanha, Suíça, Portugal e Áustria”. Só esquece de mencionar que todo o território do país era de posse Indígena antes da invasão pelos europeus, em 1500.

A pasta com conteúdo em defesa do marco temporal foi produzida pelo IPA e distribuída aos políticos da FPA no Congresso. Fotos: Rafael Moro Martins/SUMAÚMA

Atualmente, as Terras Indígenas ocupam pouco menos de 14% do território brasileiro. Somam 117 milhões de hectares. Para efeito de comparação, as monoculturas de soja ocupam quase 46 milhões de hectares na safra 2023-2024 – uma vez e meia o tamanho da Itália, que tem pouco mais de 30 milhões de hectares. As Terras Indígenas desempenham papel crucial na preservação da Natureza: segundo o MapBiomas, perderam apenas 1% da vegetação original entre 1985 e 2023. No mesmo período, as terras privadas – como as dos latifundiários de soja – perderam 20% de sua cobertura florestal.

A pressão ruralista sobre o tema prossegue. É tamanha que o Supremo recusou-se a confirmar o que já havia decidido sobre o marco temporal: por ordem do ministro Gilmar Mendes, formou-se uma comissão de “conciliação” sobre o tema. Na segunda reunião, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, retirou-se da mesa. Mendes, que tem laços com o ruralismo, mandou a “conciliação” prosseguir mesmo assim.

Os deputados Arthur Maia, do União da Bahia, e Arthur Lira, do PP de Alagoas, comandaram o rolo compressor que a FPA passou sobre os direitos Indígenas. Fotos: Vincius Loures/Câmara dos Deputados e reprodução/YouTube

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Fogo! Fogo!

Quarta-feira, 4 de setembro. Em mais uma manhã em que Brasília amanhece coberta pela fumaça dos incêndios que destroem a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado, a ministra Marina Silva está sentada à mesa principal da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Foi convocada para falar sobre as queimadas. “Desde que era senadora eu dizia que isso iria acontecer”, diz a ministra, ao abrir sua fala. Em seguida, desfia dados aterradores: ainda que 27% das áreas queimadas na Amazônia sejam de atividade agropecuária, 32% estavam cobertas por vegetação nativa. “Significa que estamos em processo severo de mudança do clima, com a floresta em processo de perda de umidade”, explica, didática. Ninguém parece escutá-la.

Primeira senadora a falar, Rosana Martinelli, do PL de Mato Grosso, quer saber se o Ministério dos Povos Indígenas “está fazendo a conscientização dos nossos índios (sic) para não colocarem fogo em suas áreas”. E justifica-se: “É uma questão cultural”. Ela é da bancada ruralista, para quem os Indígenas são sempre um bode expiatório conveniente. Também é investigada no inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal que trata dos ataques golpistas de 8 de janeiro. E é ex-prefeita de Sinop, cidade do norte do estado, que também foi comandada por Nilson Leitão, do IPA.

“[O Ministério dos Povos Indígenas] está fazendo muito”, responde Marina. “Primeiro, porque é o ministério de um povo que nunca desmatou. [Isso já] é uma contribuição inimaginável. As melhores brigadas [contra incêndios] são as Indígenas. Sabem trabalhar durante a noite, conseguem suportar temperaturas altas e baixa umidade. Podemos [criar] um programa de educação das pessoas não Indígenas, para que não usem o fogo como estão usando. Eles [os Indígenas] precisam nos educar.”

Jaime Bagattoli, do PL de Rondônia, apresenta uma solução peculiar: premiar quem invade, desmata e em seguida põe fogo em terra pública, abrindo espaço para novas áreas de pastagem. “Nós vamos resolver o problema do desmatamento a hora em que dermos título aos produtores”, defende. Bagattoli nasceu no interior de Santa Catarina e, em 1974, “chegou a Rondônia para desbravar a Região Norte do país”. Participou do que o documentarista britânico Adrian Cowell, que passou dez anos na região, chamou de “A Década da Destruição”. Rondônia é o estado mais desmatado da Amazônia – 40% de sua cobertura florestal já virou madeira ou fumaça. “Quem está fazendo isso [os incêndios] tem interesse”, reage Marina. “Toca fogo, daí joga semente para pasto, e depois vem a essa Casa pedir a regularização fundiária daquilo que foi criminosamente destruído. É roubo do patrimônio público”, exaspera-se.

Rosana Martinelli (PL-MT) e Jaime Bagattoli (PL-RO), as vozes do latifúndio na audiência de Marina Silva no Senado. Fotos: Bruno Spada e Will Shutter/Câmara dos Deputados

A sessão se arrasta com muitas tentativas de eximir o agronegócio de qualquer culpa pelos incêndios, de constranger a ministra e poucas manifestações de compreensão com a complexidade e a gravidade do problema. Ao final, a presidenta da comissão, Leila Barros, uma ex-jogadora de vôlei que foi medalhista olímpica e pan-americana e se elegeu senadora pelo PDT do Distrito Federal, se emociona. Diante de um plenário já abandonado pelos ruralistas, dirige-se à ministra com voz embargada. “Você está há anos falando que íamos chegar a este ponto, e chegamos. Me faz refletir sobre a ignorância que a gente viu [na sessão]. O que mais me dói é não entenderem quanto é sério o que a gente vive. Não temos plano B, cara. Que falta de compromisso com o futuro.” Marina, visivelmente tocada, se levanta e lhe dá um abraço.

Naquela noite, a comunicação da FPA distribuiu à imprensa uma nota em que destaca as falas de Bagattoli e de Martinelli. Nenhuma fala de Marina Silva foi incluída.

Quarta-feira, 11 de setembro. Graças à fumaça produzida pelos incêndios florestais, São Paulo amanhece pelo terceiro dia consecutivo como a metrópole com pior qualidade de ar em todo o mundo. Sem problema, se você está no Rosewood São Paulo, o hotel seis estrelas que se autocelebra como “um oásis metropolitano que ocupa dos poucos edifícios históricos remanescentes da região e também uma impressionante torre com jardim vertical projetada pelo arquiteto Jean Nouvel, vencedor do Prêmio Pritzker, ambos com design de interiores criado pelo visionário Philippe Starck”. Apenas figurões do agronegócio e da Faria Lima foram convidados para o Bradesco BBI Agro Summit.

É um público composto quase exclusivamente de homens, quase todos brancos e de terno, a maioria sem gravata. O economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato, sobe ao palco. Sorridente, usa um microfone preso ao ouvido, ao melhor estilo Madonna, para anunciar a atração do almoço: uma conversa com o deputado federal Pedro Lupion, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, e com Mauro Mendes, governador de Mato Grosso, filiado ao União Brasil.

Fernando Honorato, Mauro Mendes e Pedro Lupion durante conversa num luxuoso hotel em 11 de setembro, dia em que São Paulo teve o pior ar do mundo entre as metrópoles. Foto: Acervo Bradesco

“Acho que vou me divertir com essas duas figuras públicas, que têm um papel super-representativo na economia brasileira”, paparica Honorato, enquanto garçons começam a circular com garrafas do que parece ser água e bandejas cobertas por latas de refrigerante. “Mato Grosso é o estado mais importante da produção agro hoje em dia. Pedro Lupion, um dos parlamentares mais respeitados do nosso país, liderando a FPA, que cumpre um papel em defesa do agro, dos nossos produtores.”

Mas até ali a fumaça havia chegado. “Não posso deixar de falar um pouquinho sobre as queimadas”, Honorato abre a conversa, dirigindo-se a Mendes. Apesar de reconhecer que se trata “de um dos reflexos das mudanças climáticas”, e que acontecem “por ação humana”, o governador mira em um bode expiatório conhecido. “No meu estado, temos alguns poucos registros de coisas criminosas, e também grande número de ocorrências que começam dentro de reservas Indígenas. Porque é um pouco cultural dos índios (sic) fazer queimadas, um mau manuseio do fogo. Aquilo toma proporções, quando sai de dentro da reserva, num raio gigantesco.” É mentira. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima apresentados uma semana antes no Senado, 85% dos incêndios em Mato Grosso começaram em áreas privadas. Só 10% dos focos estão em Terras Indígenas.

Quando recebe a palavra, Lupion jura que “estamos apoiando legislação mais punitiva para esses incendiários”. Entretanto, um dos projetos de lei mais recentes que apresentou é o 1497/2024, que obriga a União a oferecer a oportunidade de regularização fundiária a qualquer invasor de terras públicas. “Existindo alguém sobre uma área que, após análise, observa-se ser de propriedade da União, imperioso que se oportunize a regularização de tal ocupação antes de qualquer outro ato”, diz a justificativa do texto. Dois consultores legislativos entrevistados por SUMAÚMA não têm dúvida: é um flagrante incentivo a mais grilagem de terras e queimadas na Amazônia.

“A briga em que estamos não é [sobre a] questão ambiental”, diz Lupion. “Isso é lorota, é o que vende jornal, [faz] as ONGs faturarem. A nossa briga é concorrencial”, afirma, repetindo a lorota de que a defesa da Amazônia é feita por gente interessada em prejudicar o agronegócio brasileiro.

Entretidos, os convidados do banco almoçam e bebem vinho.

Terça-feira, 17 de setembro. Um incêndio consome desde o domingo o Parque Nacional de Brasília. Não chove há 147 dias. O ar que se respira na cidade é considerado perigoso para idosos, crianças e pessoas com problemas respiratórios. No Palácio do Planalto, Lula reúne presidentes dos Três Poderes para debater medidas contra o impressionante avanço das queimadas. Na saída, o presidente da Câmara, Arthur Lira, trata de colocar freio na hipótese de aumentar as penas para causadores de incêndios florestais. Afinal, diz o deputado, a legislação ambiental brasileira é “a mais rígida, dura e forte que existe no mundo”, e “a gente tem tentado votar matérias que fortaleçam essa questão ambiental, inclusive, com muita ênfase nos últimos anos”. Sob Lira, a Câmara aprovou o marco temporal e facilitou o uso de agrotóxicos, entre outros ataques à qualidade de vida das novas gerações.

Três semanas antes, a Frente Parlamentar da Agropecuária havia anunciado uma “ação coordenada” para aumentar as penas para incendiários. Mas nenhum de seus líderes apareceu para fazer ressalvas públicas às palavras de Lira. Dias depois, quando o governo federal anunciou um decreto que aumenta as penas para criminosos ambientais, o deputado Pedro Lupion reagiu num vídeo. “O decreto é extremamente preocupante, é muito nefasto.” A FPA soltou uma nota oficial em que, após elogiar a medida, gasta considerável espaço lembrando que é preciso “evitar que produtores rurais sejam punidos de maneira injusta”. A Aprosoja Brasil foi mais direta: repudiou o decreto e cobrou do Congresso Nacional “medidas urgentes para reverter esses absurdos”. Ou seja: assim que o primeiro fazendeiro for multado por causar incêndios, deve-se esperar uma reação dura.

O “agro” é fogo. E, como ele, está fora de controle no Brasil.

O sol de sangue das queimadas, visto do Alto de Pinheiros, bairro rico de São Paulo. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Infográficos: Ariel Tonglet
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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