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As crianças de Marajó são estigmatizadas pela extrema direita evangélica, que busca protagonismo político

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Às 19h43 de um domingo de agosto, na praça principal de Melgaço, cidade de 28 mil habitantes na Ilha de Marajó, Pará, o cheiro de pipoca e algodão-doce se mistura ao da fumaça dos escapamentos de uma motociata promovida por um dos candidatos à prefeitura. As crianças interrompem o futebol para assistir à cena incomum. Sob buzinas, berros e apitos, o candidato Éder Vaz, do União Brasil, ex-secretário de Educação do município, lidera o desfile motorizado, balançando-se na caçamba da única caminhonete, lotada de correligionários. Fogos de artifício são lançados ao céu do terreno baldio vizinho à casa do prefeito, José Delcicley Viegas, o Tica Viegas, um ex-madeireiro de 37 anos que fez riqueza naquele pedaço de floresta e tenta eleger Vaz contra seu próprio primo, Zé Viegas, do MDB. Na frente do imóvel de três andares, que fica perto da praça, um carro de som ecoa em altos decibéis o número do partido, 44, num jingle que se repete à exaustão, animando um grupo de cabos eleitorais.

A campanha para as eleições municipais de outubro tinha começado oficialmente dois dias antes. Pela manhã, segundo um barqueiro que prestou serviço aos políticos, os assessores de Vaz e alguns vereadores que concorrem à reeleição tinham gasto 20 mil reais com vinte lanchas que visitaram os vilarejos Ribeirinhos distantes da área urbana. Pelo menos 74% dos domicílios de Melgaço são rurais, segundo o Censo 2010, muitos deles às margens de Rios e Igarapés.

Do porto da cidade era possível ver as embarcações partindo e chegando, cada uma com até 12 passageiros, que vestiam a camiseta do União Brasil. Bandeirinhas do partido tremulavam nas quinas das embarcações. “Eles gastaram 10 mil em diárias mais 10 mil de gasolina. Num só dia”, contou um dos pilotos. Naquele domingo, quase todas as lanchas da cidade estavam alugadas para políticos em campanha. Tinham ido levar almoço a eleitores distantes, gente que na maior parte do ano luta para oferecer três refeições diárias aos filhos. Tica Viegas, prefeito há dois mandatos, afirma que o combustível foi pago por apoiadores. Em seu  Instagram, dá para ver a mesma multidão de azul nos vilarejos Ribeirinhos. Faziam festa onde tudo costuma ser silêncio.

Barquiatas e motociatas marcam a eleição em Melgaço, um dos municípios mais pobres do Brasil, onde pessoas morrem porque não há combustível para a ‘ambulancha’

Era clima de fartura no município com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, onde, poucos meses antes, uma mãe perdera seu bebê porque havia faltado gasolina na “ambulancha” da prefeitura no momento do parto. Sem o transporte, não deu para chegar ao hospital a tempo. Naquela mesma noite, ela sentava a poucos metros da motociata, na Paróquia São Miguel Arcanjo, onde jovens, velhos e adultos participavam de um bingo. Tinham de se esforçar para ouvir o locutor, que anunciava os números sorteados em meio ao barulho eleitoral. Tentavam a sorte em prêmios que variavam de garrafas térmicas a toalhas de banho, bermudas, um liquidificador, um fogão. Ainda em luto, a mãe evitava falar sobre o filho perdido.

O combustível que naquele domingo de campanha era abundante também faltou muitas vezes para o  transporte dos 360 alunos da escola municipal de ensino fundamental Alfredo Lopes, na beira do Rio Soiaí, conta Regimero Moura, de 39 anos, diretor da escola. “Este mês teve só 12 dias letivos por causa disso”, denuncia. Na região, segundo educadores do município, alguns alunos levam 12 horas no caminho de ida e volta para a escola. “O barco passa para pegar [os primeiros alunos] às 6 horas e chega ao meio-dia na escola. Na volta é a mesma coisa”, diz Ediele Lima, coordenadora da Cáritas em Melgaço e integrante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Depois da longa jornada, as crianças ainda são submetidas a condições degradantes na instituição, afirma o diretor: “A escola foi reformada pela prefeitura em 2022, mas fizeram a telha muito baixa, aí faz muito calor durante a aula. Totalmente fora do padrão do Ministério [da Educação]”.

​​Às 11h58 daquele mesmo domingo, às margens do Soiaí, a meia hora de lancha da parte urbana de Melgaço, Rosenise Pantoja, de 31 anos, mãe de seis filhos, reclamava da merenda escolar fornecida pela prefeitura. O arroz servido às crianças em forma de mingau, ela conta, já veio com carunchos e brocas, pequenos besouros.

Acompanhada de bolachas de água e sal e suco artificial, a merenda nunca mata a fome. “Falta merenda é muito. É difícil ter”, diz Rosenise. “Às vezes vem péssima, com mau cheiro.” As crianças brincam ao redor da mãe, que divide a palafita de madeira de três cômodos com seu companheiro, Junielson, os filhos e dois irmãos. No total, dez pessoas vivem na casa isolada, sem vizinhos, à beira do rio. “O prefeito nunca veio aqui”, garante a moradora.

Os filhos de Rosenise Pantoja sofrem com a merenda distribuída nas escolas da prefeitura: muitas vezes falta comida ou os alimentos estão estragados

Um relatório produzido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em maio de 2023 registra que, em Melgaço, “houve muitas situações em que as mulheres gestantes acabaram por perder os bebês devido a não ter lancha ou combustível” e que “há muitas crianças que vão para a escola com fome e que não encontram merenda, e, quando encontram, é em quantidade aquém das suas necessidades nutricionais (meio copo de suco e três bolachas)”.

Divulgada em março, uma carta assinada pela Comissão de Justiça e Paz de Melgaço, Cáritas e Pastoral da Juventude informa que o cenário na educação municipal contribui para “uma avassaladora evasão escolar e remanejo [das crianças e adolescentes] para o mundo das drogas e da prostituição feitas por aliciadores”.

Segundo outro relatório, este sobre transferências a municípios elaborado pela Câmara dos Deputados,  Melgaço recebeu em 2023 3,9 milhões de reais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Entre eles, 1,7 milhão para apoio ao transporte escolar e 1,2 milhão para a alimentação escolar na educação básica. Neste ano, até agosto, foram 3,7 milhões de reais — 1,5 milhão para o transporte e 871 mil para a merenda.

O prefeito nega que faltem gasolina, transporte escolar ou que haja problemas com a qualidade da merenda, ainda que admita que, às vezes, os alimentos atrasem por dificuldades com a entrega. Mas em Marajó, arquipélago que de tempos em tempos viraliza nas redes sociais em falas inflamadas que denunciam uma exploração sexual fantasiosa de meninos e meninas, os políticos não se interessam em proteger as crianças fora da internet. Preferem transformá-las em propaganda política de um moralismo religioso que busca consolidar seu poder na região e ter uma bandeira para acenar aos eleitores conservadores do país. Com o falso discurso de ajudá-las, acabam estigmatizando-as e violando-as uma vez mais.

Na casa do Ribeirinho Osias Gonçalves de Lima vivem seis crianças, que recebem o Bolsa Família e às vezes só têm açaí, frango e farinha para comer

Cheques à igreja

Localizado a 249 quilômetros de Belém, ou a 14 horas de catamarã, Melgaço é um dos 17 municípios que integram a Ilha de Marajó. Fica no lado ocidental do arquipélago, uma das áreas mais isoladas da Amazônia. É formado por ruas sujas de areia e restos de plástico, que desembocam numa orla onde os únicos prédios novos são as sedes da prefeitura e da Câmara Municipal. Do calçadão sem árvores, a baía de águas turvas e amarronzadas, que leva o mesmo nome do município, avança por furos (rios estreitos), calhas e igarapés, onde o Estado raramente chega. Com 22.311 habitantes inscritos no Bolsa Família (80% da cidade) — que receberam em agosto 5,6 milhões de reais dos cofres públicos, ou um benefício médio mensal de 821 reais —, o município deu 8.042 votos (64%) a Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno das eleições de 2022, ante os 3.857 (31%) obtidos por Jair Bolsonaro. Lula venceu também nos outros 16 municípios do arquipélago. Com 591 mil habitantes, a Ilha de Marajó abriga 438.319 eleitores aptos a votar, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — 7% de todo o eleitorado paraense. Não à toa, afirma a pesquisadora Magali Cunha, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a direita evangélica tenta tomar os votos do PT na região.

Um dos principais métodos, segundo ela, é invocar a indignação do eleitor conservador por meio de um apelo ao “imaginário popular religioso em torno da sexualidade”. “Esses temas da sexualidade passaram a ser bastante explorados nessa linha da defesa da família, numa denúncia sobre o que as esquerdas faziam em torno da sexualidade. Pautas como direitos feministas, LGBTQIAP+, seriam uma ameaça à família brasileira, às crianças. E a esquerda deveria, então, ser confrontada”, afirma a pesquisadora.

Por meio do Coletivo Bereia, uma agência de checagens especializada em religião, Magali acompanhou o caso da cantora gospel Aymeê Rocha, que viralizou em fevereiro ao cantar num programa musical uma canção que evoca a exploração sexual em Marajó. “Lá tem muito tráfico de órgãos, lá é normal. Lá tem pedofilia em ‘nível hard’. As crianças com 5 anos, quando veem um barco vindo de fora com turistas, saem em uma canoa [com 6, 7 anos] e se prostituem no barco por 5 reais”, disse Aymeê aos jurados do programa Dom Reality. A declaração veio após ter cantado o verso: “Enquanto isso no Marajó/o João desapareceu/Esperando os ceifeiros da grande seara/A Amazônia queima/Uma criança morre/Os animais se vão/Superaquecidos pelo ego dos irmãos/Um evangelho de fariseus”.

O assunto ganhou rapidamente destaque no X, o antigo Twitter, com mais de 200 mil postagens num só dia. Milhões de seguidores de artistas e influenciadores que entraram no debate, indignados, repercutiram as palavras de Aymeê. “Ficou muito nítida a articulação nas redes, da forma como ganhou proporção e viralização. Correu muito rápido. Na época, me pareceu ser uma coisa muito articulada”, afirma Magali Cunha.

Missionários evangélicos aproveitaram, então, o burburinho em torno do tema para lançar uma campanha de arrecadação de fundos para o combate à violência sexual em Marajó. Sócio do Instituto Akachi, entidade ligada à igreja Zion Church, responsável pelo crowndfunding, Henrique Laino, 32 anos, candidatou-se a vereador por São Paulo em 2020. Empresários milionários, como Ricardo Steinbruch, da indústria têxtil, e Patrice Philippe Nogueira Baptista Etlin, gestor de capitais, doaram à campanha de Laino. Sarah Hayashi, fundadora da Zion Church, que morreu em julho, era amiga da senadora e ex-ministra Damares Alves, do Republicanos do Distrito Federal. No Instagram, a Zion Church afirma que, desde 2019, já fez 2,6 mil atendimentos médicos em Marajó, incluindo consultas psicológicas e odontológicas, e distribuiu cestas básicas, Bíblias e materiais de prevenção ao abuso sexual infantil.

Não demorou para que discursos da senadora Damares sobre Marajó, na condição de ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, fossem relembrados na internet — acompanhados de conteúdos falsos, como um vídeo que apresenta crianças no Uzbequistão como se estivessem no arquipélago. “Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, com 4 anos, 3 anos, que, quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem no sexo oral”, afirmou Damares, num culto na Assembleia de Deus em Goiânia, em outubro de 2022, quando ainda era ministra. “Nós descobrimos que essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”, completou. Mais tarde, descobriu-se que Damares havia se inspirado em mentiras contadas em fóruns na internet, como o 4Chan, usado por extremistas de direita que creem em teorias da conspiração segundo as quais pedófilos satanistas dominam parte do mundo.

A ex-ministra do governo Bolsonaro Damares Alves baseou-se em mentiras de fóruns da internet para falar sobre a exploração sexual de crianças do arquipélago. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

As declarações de Damares entraram na mira do Ministério Público Federal, que pediu indenização de 5 milhões de reais a ela e à União pelas mentiras sobre a população. A senadora foi acusada de propagar “informações preconceituosas e sensacionalistas sobre a população do Marajó, desconexas da realidade e sem nenhum embasamento probatório”, segundo trecho da ação civil pública. Os procuradores vasculharam outros discursos de Damares e descobriram que em ao menos outras duas ocasiões, em 2019 e 2022, ela havia mentido sobre Marajó. Embora o processo tenha mais de 5 mil páginas, os advogados de Damares ainda não conseguiram comprovar o que ela afirmou no seu discurso.

“É uma estratégia que a Damares utiliza há muitos anos, desde que dava palestras em igrejas. Ela inaugura isso”, diz Magali Cunha. “Marajó entra no discurso de Damares justamente nessa estratégia de trabalhar com o imaginário, mas ao mesmo tempo trazer exemplos distantes da realidade das pessoas. Ela falava muito na Europa, mencionava uma cartilha de masturbação da Suécia. Essa coisa da Amazônia vem também. O Marajó como essa suposta ilha de selvagens, esse lugar distante, que as pessoas não conhecem. Tem o apelo da indignação para criar uma atitude.” A atitude, muitas vezes, é o voto na extrema direita.

O apelo religioso às questões sobre sexualidade, segundo a pesquisadora, tem também a dimensão da pauta da educação. O perigo de “erotizar” crianças trazido pela esquerda — prega a extrema direita. Kit gay. Mamadeira de piroca. O baile funk na escola. “Isso passou a ser adotado quando ainda se estava configurando a extrema direita no Brasil, e elegeu o Bolsonaro em 2018. Hoje serve de pauta de manutenção do bolsonarismo”, analisa a pesquisadora.

Damares afirmou, por meio de mensagem, que por anos leu livros, reportagens, denúncias e processos sobre os casos de exploração sexual em Marajó e que, em 2019, “não aguentando mais só ler, assistir e ouvir”, foi para a área “enfrentar o tema por meio de políticas públicas”. “Querem que eu prove como? Querem que eu vá atrás de vídeos? De fotos? De corpos? A obrigação é minha? Toda denúncia que chega até mim eu tenho que provar? Não! Eu tenho que mandar para quem é obrigado a investigar”, complementou.

Não é de hoje que se fala sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em Marajó. Finalizada em 2010, uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou por três anos crimes sexuais no arquipélago tornou-se um assunto nacional. Entre os resultados do trabalho, foi criado o crime de estupro de vulnerável, quando as vítimas são menores de 14 anos ou portadoras de alguma deficiência. Encabeçadas pelo bispo emérito de Marajó, dom José Luis Azcona Hermoso, que aos 84 anos está internado num hospital em Belém, as denúncias mostraram que meninas se prostituíam em troca de comida. Algumas das quais nas balsas que transitam pelo furo do Tajapuru, perto de Melgaço, levando homens de Belém a Macapá, e de lá à Zona Franca de Manaus.

De fato, crimes sexuais ocorriam e ocorrem em Marajó. Segundo  o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 houve no arquipélago 273 casos de estupro de vulneráveis (crianças, adolescentes e portadores de deficiência), ou 49 para cada 100 mil habitantes — não há dados para 2023. Um número alto, mas não muito diferente do que acontece em outras partes do Brasil. No Pará, por exemplo, foram registrados 3.732 estupros de vulneráveis no mesmo ano (46 para cada 100 mil habitantes). Mas em Roraima, em 2022, foram 95 estupros para cada 100 mil habitantes — e nem por isso os eleitores de Damares estão falando sobre as crianças de lá. Nenhuma das cinco cidades brasileiras com as maiores taxas de estupro de vulneráveis fica em Marajó.

Desde março, o Coletivo Bereia não rastreou mais nenhum movimento relevante nas redes sociais quanto às mentiras sobre Marajó, afirma Magali Cunha. Não foi por falta de esforço dos políticos bolsonaristas.

Em 6 de junho, três parlamentares que apoiam o ex-presidente — o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), a deputada Silvia Waiãpi (PL-AP) e o deputado Delegado Caveira (PL-PA) — estiveram em Melgaço para uma “audiência pública” cujo objetivo era “apurar os casos denunciados de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes na Ilha de Marajó”, segundo o requerimento protocolado na Câmara. Tratava-se, na realidade, de uma diligência externa da Comissão de Direitos Humanos do Senado para que os políticos pudessem explorar casos reais de violência sexual de forma sensacionalista, além de distribuir dinheiro de emendas parlamentares. “Eu que organizei o evento”, disse a SUMAÚMA o prefeito Tica Viegas. Numa rede social, ele se define com a frase: “Um homem protegido por Deus, o senhor é a minha rocha e a minha fortaleza”.

Os deputados Silvia Waiãpi e Delegado Caveira e o senador Zequinha Marinho (à dir.) estiveram em Melgaço. Fotos: Renato Araújo, Mário Agra e Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Na ocasião, o senador Zequinha Marinho entregou ao prefeito um cheque simbólico de meio milhão de reais — além de outro, de 1 milhão de reais, a um pastor da Assembleia de Deus em Melgaço, Elvis Ribeiro. Questionado por SUMAÚMA sobre o motivo de ter dado os cheques, Marinho não respondeu até a conclusão desta reportagem.

“Esse aqui é Base?”, pergunta Zequinha Marinho a um assessor, durante o evento, com um microfone em uma mão e um papel na outra. O senador aparece em um vídeo, ao qual SUMAÚMA teve acesso, gravado durante o encontro: “Base Humanitária [da Assembleia de Deus], não é?, capacitando mulheres, cadê as mulheres aqui no auditório? Levanta a mão! (sic) Mulher gosta de aprender a ganhar dinheiro, né?”, diz Marinho. “Eu queria entregar para o senhor [pastor Elvis Ribeiro] também, assim como entreguei pros outros, um ofício que custa 1 milhão de reais, para que o centro… a base de ação comunitária possa desenvolver essas ações de capacitação de mulheres aqui em Melgaço a fim de que elas possam ter um mínimo de autonomia na questão financeira, ganhando dinheiro”, concluiu. Em seguida, o político de extrema direita deu o cheque ao pastor.

O prefeito Viegas disse que terá de devolver o dinheiro que a prefeitura recebeu: “Era uma emenda para MAC [para atendimento de casos de saúde de média e alta complexidade]”, explica ele. Melgaço não tem unidades de saúde que fazem esse tipo de atendimento. “Provavelmente vai para outro município”, afirmou.

A coordenadora da Cáritas em Melgaço, Ediele Lima, analisa: “Essa audiência pública não passou de uma reafirmação da aliança política entre o prefeito e igrejas evangélicas”.

O pastor Elvis Ribeiro é um aliado de Samuel Câmara, presidente da Convenção da Assembleia de Deus no Brasil (CADB), um dos braços da Assembleia de Deus — que reúne 12 milhões dos 42 milhões de evangélicos do país, segundo o último cálculo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010. Em 2023, a igreja construiu a enorme “base humanitária e templo” em Melgaço, conforme se lê na fachada, que recebeu a verba do extremista de direita Zequinha Marinho. O local atende evangélicos com ações de assistência social. Uma vez por mês, o pastor vem de Belém para distribuir cestas básicas nas palafitas das periferias de Melgaço, segundo moradores que conversaram com SUMAÚMA.

O pastor Elvis Ribeiro (à esq.) recebeu um cheque para obras sociais da Assembleia de Deus em Melgaço; ele é ligado a Samuel Câmara (à dir.). Fotos: reprodução Instagram e Thiago Gomes/Folhapress

Samuel, por sua vez, é irmão do deputado federal bolsonarista Silas Câmara, do Republicanos do Amazonas — presidente da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, que reúne 213 dos 513 deputados e 26 dos 81 senadores. Proprietária da rede de rádio e televisão Boas Novas, a família também inclui Dan Câmara, outro irmão, um ex-comandante da Polícia Militar que se elegeu deputado estadual pelo Amazonas e foi um dos condenados no “escândalo dos sanguessugas”, um esquema que desviou dinheiro de emendas para a aquisição de ambulâncias em 2006.

A ofensiva da extrema direita evangélica também incluiu, no mesmo mês da audiência em Melgaço, uma visita do ministro “terrivelmente evangélico” do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, ao município de Marajó. Segundo apurou SUMAÚMA, ele esteve na base humanitária da Assembleia de Deus.

Procurado, Mendonça disse que esteve no município para “viagem missionária e evangelística”. “Melgaço tem um dos piores IDHs do Brasil e a Igreja Assembleia de Deus adotou a cidade para buscar transformar a realidade social e econômica do seu povo”, afirmou o ministro. “Quando lá estive, vi a pobreza e o abandono do Estado brasileiro com uma população carente e sem perspectivas. Estive com mães que disseram que o sonho delas é um dia ter um pediatra na cidade. Visitei casas construídas e entregues gratuitamente pela Igreja à população. Conheci famílias que, graças a essas moradias, pela primeira vez na vida puderam usar um vaso sanitário em sua própria casa. Acompanhei médicos, psicólogos e outros profissionais de saúde da Igreja que se deslocaram para a cidade e, em poucos dias, atenderam mais de mil pessoas”, afirmou o ministro.

Silas Câmara (à esq.) preside a Frente Parlamentar Evangélica no Congresso, e o irmão Dan Câmara (à dir.), ex-comandante da PM: o ministro Mendonça (no centro) visitou Melgaço. Fotos: Mario Agra/Câmara dos Deputados, Nelson Jr./SCO/STF e Anny Oliveira/Câmara dos Deputados

Em outra frente, na Assembleia Legislativa do Pará, deputados como Rogério Barra, do PL, filho do candidato bolsonarista à prefeitura de Belém, Éder Mauro, tentam emplacar uma nova CPI sobre violência sexual em Marajó, de maneira que o assunto volte ao centro das atenções.

Em Melgaço, no início de agosto, um culto evangélico realizado na frente da casa do prefeito, em plena calçada, selou o apoio da Assembleia de Deus à candidatura de Éder Vaz, do União Brasil. No município, segundo o Censo 2010, havia 8.910 evangélicos, sendo 7.177 da Assembleia de Deus, ante 14.730 católicos. Os dados sobre religião do Censo 2022 devem ser publicados no ano que vem.

A campanha de Éder Vaz (à esq.) incluiu um culto evangélico na frente da casa do atual prefeito de Melgaço, Tica Viegas (à dir.). Foto: reprodução Instagram

Sopa de ossos

Rosenise, a mãe de seis filhos que mal têm merenda escolar, tinha almoçado com as crianças um frango, açaí e farinha. Sobre o chão de madeira, um frigobar aberto, desligado. Dentro, só um prato de farinha e uma garrafa PET vazia. Às vezes, a refeição é só o açaí, ela conta. Às vezes, ela mata um pato. Beneficiária do Bolsa Família, ganha 1.700 reais por mês. Quando recebe, dá para comprar uma carne. “É mais difícil no inverno; não tem tanto açaí. Se não fosse a ajuda do governo, a gente passava fome”, diz. Recém-operada de um cisto, Rosenise conta como foi difícil conseguir remédios. “Nunca tem nos hospitais, sempre tem que comprar.” Ela e a família bebem a água do rio. Não há chuveiro nem esgoto. O banho também é no Soiaí. Membros da Assembleia de Deus Aliança Eterna, uma pequena igreja evangélica Ribeirinha, costumam ir aos cultos com frequência. “Eles ajudam só com oração mesmo”, diz Osias, irmão de Rosenise. Ele mira o Rio. Uma balsa enorme carregada com toras de madeira vai passando. “Vem lá do interior de Portel. Vem muito de lá”, afirma nosso barqueiro.  “A maioria é clandestina.”

A poucos minutos de lancha, vivendo às margens do Rio Constantino, José Maria de Lima, de 49 anos, pai de duas mulheres já adultas, mancha as mãos na colheita do açaí. Ele vende o balde de 14 quilos, colhidos em dois dias de trabalho, a 38 reais. Nascido no furo do Buiuçu, divide uma pequena palafita com as filhas, os genros e os netos. São em seis. Lima tem uma renda mensal de 1.000 reais, 600 do Bolsa Família e o resto do açaí. “Tem dia que a gente não tem condição de comprar comida”, diz. “Aí só toma o açaí mesmo.” Lima conta que morou num lugar remoto, ali mesmo em Marajó, onde as pessoas, sem comida, jantavam sal. “Lá onde se ouvia só os sapos gritar. Comiam 1 quilo de sal, aquilo era a janta. Bebiam o açaí, melavam a colher no sal e comiam.”

Na casa de José Maria de Lima, que recebe 600 reais de Bolsa Família, o açaí é às vezes o único alimento disponível

Quando teve uma espingarda, era Paca, Veado, Preguiça, Jacaré. Agora, nem isso, não só porque teve de vender a arma para conseguir mais dinheiro, mas porque os animais sumiram. Vez por outra, Lima vê só um Peixe-boi da janela, comendo as Canaranas, uma espécie de planta, nos barrancos do rio. Vê também luzes no céu, diz. “Uma lamparina avermelhada que se mexe.” Para ele, é um sinal de Deus. Evangélico, sofre com a dor crônica num dos braços, abocanhado por um Jacaré no passado. “Tem noite que não durmo, de tanta dor”, conta. No outro braço, uma enorme cicatriz gerada por um golpe de facão que deu em si mesmo ao cortar palmito. As mãos marcadas de quem trabalha. “Antes, a madeira ajudava muito, mas hoje não existe mais madeira. Andiroba. Ventosa. Virola. É raro você encontrar.”

Em Breves, município de 107 mil habitantes conhecido popularmente como “a capital do Marajó”, havia uma madeireira onde trabalhavam 5 mil pessoas, conta Zairo Benjó, professor da rede estadual no Pará e especialista em estudos culturais e políticas públicas pela Universidade Federal do Amapá. Morador de Breves há 30 anos, Benjó é um marajoara emblemático: neto de Indígenas, descendente de escravos e de judeus sefarditas que aportaram na ilha no século 19. “Aqui, o dinheiro que rolava era o dólar. Tinha uma exportadora americana de madeira, as pessoas falavam em inglês nos anos 90”, relembra. Por isso, as ruas são feitas de serragem das madeireiras do passado, que arrancaram as árvores da Amazônia, além de sementes de açaí, usadas aos montes para aterrar áreas de várzea na periferia do município.

Após perder um filho afogado no Rio, Domingos de Oliveira (à esq.) criou um sistema de distribuição de água; Zairo Benjó (à dir.) também luta pelo direito à água

Depois do ciclo da borracha, vieram o do arroz, o da madeira. Muito antes, exploradores portugueses tinham navegado por Marajó, como Duarte Pacheco Pereira, em 1498. Outros europeus haviam cruzado com mulheres Indígenas armadas com flechas venenosas, as Indígenas marajoaras. “Cacicados grandes, poderosos e complexos tinham existido ao longo de grandes extensões do Rio Amazonas”, escreveu o antropólogo estadunidense Robert Carneiro. Mais tarde, Melgaço foi originada na Aldeia Guarycuru, a última fronteira dos portugueses no Norte. Em 1758, tornou-se vila. Em 1961, uma cidade. Vieram os motores de barco, o transporte contra a maré. Os bancos, as agências estatais. A energia elétrica. As lendas foram desaparecendo, agora pouco se fala sobre o Boto, que lá é um homem de branco que vira bicho e engravida as mulheres que entram na água quando anoitece. Nem sobre a feiticeira que assovia quando não há nada por perto. Não sobrou nada do Nheengatu, nem de qualquer outra língua Indígena que se falava ali. No fim, vieram os contratos públicos. Hoje é o emprego público e o Bolsa Família que movem a economia.

Instalado no Jardim Tropical, bairro da periferia de Breves construído sobre as serragens, Domingos de Oliveira, de 66 anos, perdeu seu filho caçula, Thiago, de 4 anos, afogado no Rio Parauaú. O menino havia ido tomar banho no rio porque não tinha água em casa. Desde então, Domingos construiu com as próprias mãos um sistema de distribuição que puxou a água do rio para 350 famílias. “Fiz para não ter mais que ver ninguém ir buscar água no rio”, conta. Ele mora ao lado de uma enorme caixa-d’água vazia, sem uso, uma obra pública que já dura 11 anos e que custou ao menos 30 milhões de reais.

Enquanto isso, no Igarapé Panema, no outro extremo da cidade, a parteira Maria Ferreira, de 81 anos, com fome, se prepara para cortar a lenha que serviria para aquecer a água do Igarapé que, há três dias, decanta em bacias no lado de fora da palafita. Depois da decantação, ela ferve a água. Em seguida, coloca as gotinhas de hipoclorito de sódio, um purificador muito usado por quem sacia a sede nos rios da Amazônia. Naquela tarde, Maria não ia almoçar. Não tinha dinheiro para comprar a comida do dia. Sua última refeição tinha sido o almoço do dia anterior — “sopa com umas ossadas que ganhei, bastante temperadinha, com esse macarrão que o padre me deu”.

A água do Igarapé é usada para banho, consumo e transporte na periferia de Breves, onde vive a família de Maria Ferreira de Souza

A alguns quilômetros dali, em Bagre, enquanto escurecia à beira de outro igarapé, as crianças, como ela, sem comer o dia todo, começaram a pedir comida à mãe, uma moça evangélica, que não tinha o que dar aos filhos. “Ela disse para rezar uma oração, que Deus traria a comida no dia seguinte”, conta Iranilda Ferreira, da Pastoral da Criança em Bagre.

Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa em Reputação e Imagem (Ipri), da FSB Holding, mostrou que candidaturas no Brasil que se apresentam com identidades religiosas aumentaram de 2.215, no ano 2000, para 7.206, em 2024. Na Ilha de Marajó, templos evangélicos começaram a pipocar na paisagem. Luce Mara Lobato, assistente social e coordenadora da Comissão Justiça e Paz de Breves, notou: “Muito. Demais. Uma em cada esquina. Foi rápido; na eleição de 2018 que começou. De lá para cá, houve uma explosão [no número de igrejas evangélicas]”. Ao navegar de Breves para Melgaço por rios como o Parauaú ou pelos igarapés, veem-se dezenas de igrejinhas de madeira, uma a cada 100 metros, quase todas evangélicas. Elas vão pontilhando as margens, algumas coloridas, outras em reforma.

Segundo a assistente social, os religiosos estão presentes nos hospitais, nos grupos de WhatsApp que organizam visitas a doentes e em incursões rio adentro, nas quais prometem exorcizar o demônio de homens alcoólatras. O relatório produzido pelo programa do governo federal Cidadania Marajó registra: “foi relatado que missionários de igrejas neopentecostais em Melgaço estariam interferindo na orientação sobre vacinação, prejudicando sobretudo a cobertura vacinal de crianças e adolescentes”.

Antes de ser lançado, o Cidadania Marajó se chamava Abrace Marajó, programa criado pela ex-ministra Damares e substituído no governo Lula. “O Abrace Marajó tinha um braço religioso aqui que eram as igrejas pentecostais, a Assembleia de Deus. Os indicados para coordenar o programa em Marajó eram todos pastores”, afirma o professor Zairo Benjó, que é ex-evangélico pentecostal. “Toda igreja lança um vereador aqui. É a teologia do domínio [estratégia de difusão de igrejas evangélicas]. Se Marajó é do senhor Jesus, o vereador tem que ser pastor”, diz. Magali Cunha, a pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, concorda: “Para muito além da religião, são interesses pessoais, políticos e financeiros de grupos que instrumentalizam a religião, que veem a religião como corporação”, explica. Essa entrada com emendas parlamentares, com cheques, com objetivo eleitoral responde a esse quadro de instrumentalização da religião para objetivos políticos, econômicos e financeiros.

Recentemente, segundo a pesquisadora, políticos da extrema direita evangélica, incluindo a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, passaram a discursar com mais frequência sobre a proteção da mulher contra a violência, numa lógica segundo a qual “proteger a família tradicional é proteger a mulher”. “São os políticos que colocam isso como prioridade, de olho no voto feminino, sem ir fundo nas estruturas, pregando a punição do agressor. Nas igrejas, o tema da proteção da mulher não é prioridade. Pelo contrário. Nas igrejas prevalece o discurso do perdão a todo custo, do ‘tem que aguentar’; a mulher tem que aguentar firme, não pode jamais dissolver o casamento”, afirma Magali Cunha. “As pentecostais tradicionais, como a Assembleia de Deus, são igrejas muito arraigadas na tradição do masculino, do pastor.” Para a pesquisadora, ao mesmo tempo em que os políticos evangélicos abraçam a ideia de proteger a mulher, acabam por alimentar o monstro que dizem abominar. “Com essa cultura machista se reforça a violência, porque a violência não é só física, ela se manifesta de forma simbólica”, alerta.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro é uma das que defendem a “família tradicional”, mas os abusos contra crianças acontecem geralmente dentro de casa. Foto: Nelson Almeida/AFP

O perigo é a família

Às 20h19 de uma segunda-feira de agosto, uma noite abafada, as crianças corriam pelos corredores da Assembleia de Deus de Breves. Era dia de culto. No andar de cima, o som do teclado se espalhava pelo enorme salão, adornado com lâmpadas de LED e oito aparelhos de ar-condicionado. Havia ao menos 500 pessoas acomodadas na plateia. A unidade pertence à Convenção Interestadual de Ministros e Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Pará (Comieadepa), da qual o senador Zequinha Marinho é membro e pastor. “Jesus disse: ‘Se vocês não perdoarem os homens das nossas ofensas, também o vosso pai celeste não perdoará as vossas ofensas!’”, berrou um pastor no púlpito. Uma senhora de olhos fechados exclamou: “Aleluia!”. Uma criança de 4 anos, vestindo um terno em miniatura, me encara com o braço esticado e diz: “A paz do senhor”. Homens estão de um lado, mulheres do outro. O pastor que conduz o culto pede desculpas, mas o presidente da Assembleia de Deus em Breves, o pastor Marcone Oliveira, não pôde comparecer porque teve de voar a Brasília, onde participaria de uma reunião no Congresso Nacional.

Em Marajó, “proteger a família” às vezes significa preservar o silêncio, o que acaba invariavelmente em traumas e tragédias, segundo quem trabalha na linha de frente da assistência na região. “As pessoas omitem [assédio sexual de pastores] porque têm medo de manchar a imagem da igreja, do pastor”, diz Iranilda Ferreira, da Pastoral da Criança em Bagre, outra cidade de Marajó. Neste ano ela é candidata a vice-prefeita no município, pelo Cidadania. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 65,1% dos estupros de menores de 14 anos no Brasil acontecem dentro de casa, cometidos por um membro da família. Em Marajó não é diferente. O risco para crianças e adolescentes está menos no tráfico para fins sexuais apregoado por Damares do que dentro da própria casa, o lar familiar defendido por evangélicos como ela.

Nos últimos anos, igrejas evangélicas começaram a pipocar nas ruas da Ilha de Marajó

A 29 quilômetros do culto, em Melgaço, onde 29% dos bebês nascidos vivos em 2023 eram de mães com até 19 anos, M.C., de 34 anos, chora. “Monstruosidade” é a palavra que ela usa para descrever seu passado. Moradora do bairro Tucumã — onde sítios arqueológicos com cerâmicas produzidas na era dos cacicados amazônidas estão soterrados por casas e lixo —, ela conta que seu pai, seu avô e seus cunhados estupraram e abusaram rotineiramente, por anos, suas irmãs, sobrinhas. Ela. Às margens do Rio Anapu, no interior de Melgaço, não havia para quem pedir socorro. A mãe passara pela mesma violência e era silenciada pelo marido, alcoólatra e agressivo. “Somos em cinco irmãs, todas foram abusadas. Sinto uma mágoa muito grande. Via minhas irmãs sendo vítimas e eu era criança e não podia fazer nada. Tenho pesadelos”, diz M.C. Aos 12 anos, ela conseguiu fugir de casa. “Para [evitar] me submeter a ser fêmea do meu pai, eu preferia procurar uma pessoa que pudesse me sustentar.” Encontrou um homem 30 anos mais velho. Hoje, vivem ainda juntos com 14 crianças e adultos. São primas, irmãs, filhas e sobrinhas de M.C., muitas das quais fruto de abuso. Muitas delas também abusadas. Nove possuem uma doença genética rara chamada xantomatose cerebrotendínea, que forma tumores pelo corpo.

“Eu não sei definir quem é pai de quem. Só sei que uma teve filha com avô, pai e primo. A outra teve com o tio, irmão…”, diz M.C. “Nenhuma criança foi registrada com o nome de um pai, porque nenhuma sabe quem é o pai.” Ela conta que a família era muito pobre, dormiam todos juntos em redes num casebre de 20 metros quadrados, todas as noites, isolados em Marajó, o que facilitava os estupros. “Meu pai mantinha minhas irmãs como se fossem dele”, diz M.C. “Meu avô parecia um avô normal, mas aí descobriu… O monstro tá lá, vestindo a capa de avô.” Segundo os médicos, diz, as relações sexuais intrafamiliares aumentaram o risco de desenvolvimento de anomalias genéticas na família.

Há as que nasceram cegas, com catarata congênita, e só puderam enxergar depois de 2017, quando operaram. A sobrinha, de 18 anos, pesa apenas 15 quilos por causa da xantomatose. As primas têm tumores nos calcanhares. M.L. e A. F., tumores no cérebro, útero, coração, fígado. “Elas têm diarreia crônica, atraso no desenvolvimento mental, tem que dar remédio contínuo. Se não der, ficam agressivas”, conta M.C.

Portadoras de uma doença genética, as irmãs de M.C., que nasceram de estupros dentro da família, possuem tumores nos pés

Todo mês, a mulher pega o barco por 14 horas para acompanhar os tratamentos médicos em Belém. Suas duas primas, E., de 40 anos, e J., de 30, estão em fase terminal. “Elas estendem roupa, arrumam a casa, mas não entendem o que significa isso”, conta M.C. Ela conta que há um remédio que poderia evitar os tumores, mas ainda não tem registro na Anvisa. M.C. recorre à Justiça.

Por causa dos traumas na família, ela diz, dos seis irmãos homens, um se matou aos 19 anos. Outro está entregue ao crack. Um terceiro está preso. M.C. segura um bebê no colo, fruto do último estupro sofrido na família. No início do ano, um pedreiro que ela contratou para fazer uma cisterna chegou um dia mais cedo e estuprou uma das primas com deficiência de M.C. enquanto não tinha ninguém em casa.

No fim de maio, pouco antes da visita dos parlamentares bolsonaristas a Melgaço, outra irmã de M. C. veio de Portel, onde vive, e entregou seu bebê a ela. Depois, foi embora em silêncio. A criança chorava. “Vá logo dar banho, deve estar com calor”, pediu M.C. a uma das irmãs. Em seguida, foi até o bebê. Na hora de tirar a fralda, viu. “Quando olhei…”, lembra. O cunhado havia estuprado um bebê de quatro meses, sua própria filha. Outra filha, de 7 anos, também vinha sendo estuprada havia algum tempo pelo pai e pelo avô, conta M.C., ambos alcoólatras. No exame sexológico forense, o perito anotou: “Lactante, 4 meses, região vaginal avermelhada com presença de assaduras”. O homem está sendo investigado, mas não foi preso porque a mãe das crianças decidiu não prestar queixa. Ela ainda mora com o abusador, que vez por outra posta fotos nas redes sociais com a criança de 7 anos numa rede.

Outra irmã de M.C. chegou um dia e disse: “M.C., mana, busque minha filha, ele rasgou ela toda”, conta ela. De imediato, M.C. pegou uma lancha até a casa da irmã. Chegando lá, perguntou pela criança. Os dois abusadores estavam presentes, um deles deitado na rede. A mãe de M.C., com a voz fraca, surgiu na porta: “Minha filha, leve ela pro hospital, leve ela”. “Mãe, não acredito, a senhora deixou acontecer isso com as meninas de novo?” Ela disse: “Minha filha, não é eu. Não é eu. Leva elas, que eu vou morrer nessa situação”.

Os casos foram registrados no Conselho Tutelar do município, que acionou a polícia e o Ministério Público estadual — mas, na história de M.C., até hoje nenhum abusador foi preso.

M.C. acolheu em sua casa diversas crianças vítimas de estupro dentro da própria família, incluindo um bebê

Em março, mais um crime sexual abalou M.C. V., uma vizinha de 14 anos foi encontrada morta dentro de um poço, a poucos metros dali. O crime chocou a cidade. A menina costumava ir ver M.C.: “Tia, você deixa eu morar contigo?”, ela dizia. “Minha filha, não tem como”, lembra ela. “Tia, eu ainda vou ser bailarina.”

Na semana do estupro do bebê de 4 meses, um advogado de Zequinha Marinho que acompanhava a comitiva do senador na cidade procurou M.C. em Melgaço. Quis registrar o caso. Fez um vídeo de M.C. contando sua história. Também foi ao Conselho Tutelar de Melgaço, um imóvel decrépito localizado numa das ruas empoeiradas da cidade, pedindo relatórios. Depois de expor o caso nas redes, nunca mais apareceu.

Enquanto o senador distribuía dinheiro de emendas a pastores num evento destinado a combater a violência sexual infantil, os conselheiros tutelares da cidade trabalhavam em computadores com 15 anos de idade, um deles fica aberto sobre a mesa sem a capa que protege a parte interna, porque o funcionário do Conselho sabe que vai ter de arrumá-lo a qualquer momento. O reboco das paredes desmorona. Quatro quartos estão inviabilizados pela sujeira e pelo mofo. Não há suporte técnico, nem descarga no banheiro. Por falta de estrutura adequada, os conselheiros nem sequer conseguem alimentar o Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia). Uma mãe entra pela porta da sala, preocupada. Veio denunciar que  a filha, de 13 anos, foi levada por uma amiga para se prostituir em Breves. Elas tiveram a passagem, de 25 reais, paga por aliciadores. Mas o sinal de Wi-Fi não funciona para que o conselheiro Adimilson Chaves consiga se comunicar com o Conselho Tutelar do município vizinho por WhatsApp.

O Conselho Tutelar de Melgaço, que recebe as denúncias de violência contra crianças, tem pouco poder de atuação, pois falta estrutura para o trabalho

“Não tem lancha, essa é a nossa maior dificuldade”, diz ele. “A gente não tá fazendo nosso trabalho porque a gente não tem suporte. Sabemos de casos de exploração sexual em boates, mas não temos como apurar porque não tem transporte.” Segundo Adimilson, quando algum órgão empresta a lancha, não tem gasolina. E vice-versa. O governo federal prometeu, mas ainda não entregou para Melgaço as lanchas que constavam da promessa. Outras cidades receberam embarcações – que, ainda inoperantes, estão em fase de “liberação documental”, segundo o governo federal – remanejadas da usina binacional de Itaipu. Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania informou que o município de Melgaço receberá a lancha em 2025.

Em frente ao prédio do Conselho, há um carro novo que foi enviado pelo governo do Pará com o tanque vazio há quatro dias. O combustível é responsabilidade da prefeitura. Para trabalhar, os conselheiros usam as próprias motos. “A gente pede manutenção e é ignorado”, diz Cicléa Guimarães, também conselheira no município. Procurada, a Secretaria de Assistência Social do município não se manifestou sobre os problemas do Conselho Tutelar.

Enquanto Cicléa fala, dá para ouvir o som dos fogos de artifício da campanha eleitoral pela janela. Apesar de todo o barulho, Marajó, o cartaz da política de extrema direita que explora a imagem de meninas e meninos vulneráveis, segue — e possivelmente seguirá — sem proteger suas crianças.

Enquanto políticos fazem discursos mentirosos, as crianças do arquipélago do Marajó continuam sofrendo diversas violações de direitos sem ajuda efetiva do poder público

Atualização: Esta reportagem foi modificada às 17h de 25 de setembro para complementar a fala do ministro André Mendonça


Reportagem e texto: Bruno Abbud
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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