1. O que é o marco temporal?
É uma tese jurídica. Ela define que só podem ser demarcadas as terras que indígenas ocupavam quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Em resumo: só teriam direito à terra os povos que estivessem nas áreas nessa data. Esse entendimento não leva em conta que vários indígenas e aldeias inteiras foram expulsos de seus territórios e perseguidos.
2. Quando e como essa tese surgiu?
A tese do marco temporal já era conhecida no direito antes mesmo da Constituição de 1988. Mas foi só em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal julgou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, lar dos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingarikó e Wapichana, em Roraima, que esse debate ficou mais popular no Brasil.
3. Quais os argumentos jurídicos a favor e contra o marco temporal?
O artigo 231 da Constituição determina que os indígenas terão posse permanente de terras tradicionalmente ocupadas por eles. Por essa visão, prevalece o direito originário sobre a terra, reconhecido na Constituição: os indígenas estavam aqui antes de o Brasil surgir. Os que defendem o marco temporal alegam que ele trará “segurança jurídica” para os atuais ocupantes da terra, muitos deles por meio de grilagem, evitando conflitos pela posse. Quem é favorável ao marco temporal sustenta que posse tradicional não deve ser confundida com “posse imemorial”.
4. O marco temporal pode ser imposto por projeto de lei ou é preciso mudar a Constituição?
O PL 490, aprovado pela Câmara, é um projeto de lei, ou seja, precisa de maioria simples para ser aprovado (votos de mais de 50% dos presentes no dia da votação). Mas o marco temporal muda fundamentos da Constituição, previstos no artigo 231. Por isso críticos dizem que esse tema só poderia ser debatido por proposta de emenda constitucional (PEC), aprovada apenas por maioria qualificada (pelo menos 308 deputados e 49 senadores). Por essa leitura, o PL 490 é inconstitucional.
5. Se o Supremo aprovar o marco temporal, o que acontecerá com as demarcações de terras indígenas?
Depende. Se os ministros do STF decidirem que o marco temporal é 5 de outubro de 1988, os povos originários precisarão provar que estavam em seus territórios ou os disputavam nessa data. Se não conseguirem provar isso, não terão direito à terra. Outra possibilidade é os ministros proporem uma “solução de consenso”, fixando o marco temporal em 1934 – ano da promulgação da primeira Constituição que reconheceu direitos dos povos indígenas. Se isso ocorrer, os povos originários terão de provar que ocupavam suas terras (ou, ao menos, as disputavam) nessa data – o que também é bastante complexo, segundo juristas e indígenas.
6. Se o Supremo derrubar a tese do marco temporal e o Congresso, em seguida, insistir em mudar a Constituição para impor essa regra, o que poderá acontecer?
O mais provável, nessa situação, é que o caso retorne ao próprio STF para novo julgamento. Os críticos do marco temporal sustentam que os direitos dos povos indígenas a seus territórios são cláusula pétrea – ou seja, isso não pode ser alterado nem mesmo por emenda constitucional.
7. Se o marco temporal virar regra (por decisão do STF ou do Congresso), como os processos de demarcação em curso poderão ser afetados? E quantos são?
Depende de qual for o marco temporal fixado e dos questionamentos jurídicos que deverão ocorrer se essa regra partir do Congresso (via aprovação do PL 490 no Senado ou por uma nova emenda constitucional). Mas, em tese, se a regra for o marco temporal de 1988, os povos indígenas que não conseguirem comprovar que estavam nos territórios naquela data terão seus direitos negados. Cerca de 300 processos de demarcação de terras poderão ser afetados e paralisados.
8. Por que os deputados da bancada ruralista querem tanto uma lei sobre o marco temporal antes de o Supremo julgar esse tema?
Essa é uma jogada política. A bancada ruralista quer demonstrar sua força e provar que o Congresso tem autonomia para definir as regras sobre demarcações, e não o Supremo. É também uma maneira de exercer pressão sobre o Judiciário antes do julgamento do marco temporal, cujo resultado é imprevisível. Mas é importante frisar que há questionamentos robustos sobre a inconstitucionalidade do PL 490. Tanto que o STF não desmarcou o julgamento.
9. Por que os políticos dizem que o julgamento sobre Raposa Serra do Sol, em 2009, já tinha admitido o marco temporal como regra geral?
O agronegócio predatório cita esse julgamento porque foi nele que o Supremo abordou a tese do marco temporal. O relator à época, ministro Carlos Ayres Britto, votou a favor da demarcação contínua da terra indígena e da remoção dos não indígenas daquele território. Mas ele também disse que era preciso definir, no futuro, um marco temporal. O importante é que a Corte deixou claro que o que foi julgado e decidido sobre a Raposa Serra do Sol não valeria para outras terras indígenas do Brasil.
10. Por que o processo de demarcação é e deve ser responsabilidade da União, e não do Congresso?
Porque é o que prevê a Constituição, a lei maior do país. Ao contrário do que diz a bancada ruralista, o processo de demarcação é técnico, envolve servidores públicos de carreira da Funai e outros órgãos públicos e tem amplo espaço para questionamentos de quem se sentir prejudicado. Já se forem responsabilidade do Legislativo, as demarcações passarão a ser políticas – e é exatamente isso o que deseja a bancada ruralista, porque assim passará a dominar o processo das demarcações e voltará a valer a promessa que o extremista de direita Jair Bolsonaro fez e cumpriu durante seus quatro anos de governo: nem um centímetro a mais de terra demarcada para os povos indígenas.
*Texto atualizado em 15 de junho de 2023. Erramos: na versão original desta reportagem, dissemos que a proposta de emenda constitucional (PEC) precisa de ‘maioria absoluta’ para ser aprovada (pergunta 4). O correto é: para ser aprovada, a PEC precisa de maioria ‘qualificada’: como o texto informa, são necessários os votos de pelo menos 308 deputados e 49 senadores.
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga