A concessionária Norte Energia já pediu ao Ibama a renovação da licença de operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, inaugurada em 2016 por Dilma Rousseff (PT). Mas segue se recusando a cumprir uma exigência imposta um ano antes, em 2015, para que Belo Monte pudesse funcionar: compensar os impactos indiretos que o barramento do rio Xingu causou aos pescadores que vivem em três Reservas Extrativistas (Resex) da Terra do Meio, no Pará.
As Resex Rio Iriri, Riozinho do Anfrísio e Rio Xingu são o lar de aproximadamente 1,5 mil pessoas. Fazem parte de um conjunto de unidades de conservação das quais a maior é a Estação Ecológica da Terra do Meio. As Resex são territórios em que populações tradicionais podem manter seus modos de vida e tradições culturais. Na Terra do Meio, localizada na floresta Amazônica do estado do Pará, essas populações são ribeirinhas – ou beiradeiras, no dizer da região – e têm na pesca a base da sua alimentação e sua principal fonte de renda.
Ou tinham, até que a construção de Belo Monte, iniciada em 2011, começou a barrar o Xingu 150 quilômetros rio abaixo. “Tem dias que meu esposo sai para pescar e volta sem nada. Cada ano é pior que o anterior”, conta a SUMAÚMA a professora Maiam Quelli Portugal. Maiam é diretora das escolas da Resex Rio Iriri e vive na região desde 2008. “Conheço o antes e o depois de Belo Monte. Mudou tudo. O rio nunca secava tanto, e nem falo só [da seca] de agora [2023]. Quando a usina começou a funcionar, o Xingu secou como nunca antes. E as enchentes são piores do que nunca. Com isso tudo, os peixes somem.”
A professora Maiam Quelli conta que quando a hidrelétrica começou a funcionar o rio Xingu secou como nunca antes. Foto: Soll/SUMAÚMA
As Resex da Terra do Meio ficam na Área de Influência Indireta de Belo Monte, segundo o Estudo de Impacto Ambiental que autorizou a construção da hidrelétrica. Em 2015, sentindo os efeitos da obra sobre seu modo de vida tradicional, os moradores se organizaram e levaram o caso ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é responsável pela administração das Reservas Extrativistas federais.
O ICMBio enviou técnicos à região. O estudo realizado por eles constatou uma redução na quantidade de peixes nos rios Iriri, Xingu e do Anfrísio, além de registrar que o pescado era item básico na renda – representava até 70% do ganho das famílias – e da alimentação dos Beiradeiros – está presente em 57% das refeições das comunidades.
Assim, o instituto reconheceu, em 2015, que Belo Monte causou “impactos negativos sobre o modo de vida das comunidades”, que incluem “decréscimo na renda e a perda da soberania alimentar, em função da diminuição da pesca”. O documento produzido pela equipe técnica também citou como consequência da usina o “aumento nos conflitos no território”. A população da região aumentou, os preços subiram. E grupos que receberam medidas de compensação de Belo Monte, e com isso tiveram acesso a melhores equipamentos de pesca, passaram a disputar – com vantagem – os peixes com os Beiradeiros.
Por tudo isso, o ICMBio pediu que houvesse apoio à prática de manejo sustentável das populações de peixes e outros animais dos rios e à diversificação de atividades que possam levar novos rendimentos às comunidades da Terra do Meio. Em novembro de 2015, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que é responsável pelas licenças de instalação e de operação de empreendimentos como usinas hidrelétricas, acatou o pedido. Compensar os danos que causou aos Beiradeiros da Terra do Meio se tornou uma das condicionantes – ou seja, uma exigência – para que Belo Monte possa operar.
O que parecia a solução, porém, foi o início de uma longa agonia para os povos da Terra do Meio. A Norte Energia – um consórcio de empresas que tem entre os acionistas a recém-privatizada Eletrobras, a Vale, os fundos de aposentadoria dos servidores da Caixa e da Petrobras e a operadora privada NeoEnergia –, se recusa a cumprir a condicionante. Por causa disso, foi autuada pelo Ibama em 101 mil reais em 2017. A empresa recorreu e pediu a impugnação da condicionante, negada pelo Ibama. Não se deu por vencida: em 2020 apresentou um parecer em que tentou negar os impactos aos Beiradeiros da Terra do Meio. Até mesmo o ICMBio do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro considerou que os argumentos tinham “caráter protelatório”, ou seja, eram uma tática para que a Norte Energia adiasse a resolução do problema que causou.
A sucessão de recursos e estudos da empresa acabou travando o cumprimento da condicionante. Em 2021, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União questionaram essa demora. Em novembro de 2022, enfim, o ICMBio reorganizou o Grupo de Trabalho formado por técnicos do órgão, associações dos moradores das Resex e pesquisadores de universidades. Coube a esse grupo revisar uma proposta pronta, desde 2018, para que a Norte Energia repare os danos causados aos Beiradeiros.
Elaborada a partir de assembleias realizadas com os moradores nas comunidades da Terra do Meio, a proposta se divide em seis eixos. Para começar, determina indenização de 30 mil reais a cada uma das 330 famílias, em parcela única, “devido à ausência de implementação de medidas de mitigação (redução) de impactos” – afinal, decorreram oito anos desde que Belo Monte barrou o rio Xingu e recebeu licença para operar uma vez que compensasse os impactos aos Beiradeiros. A proposta ainda estipula o monitoramento da pesca, a instalação de geradores de energia solar e refrigeradores “para garantir a continuidade do pescado na alimentação tradicional e geração de renda”, além do investimento em outras cadeias produtivas, como a venda de produtos coletados da floresta e a criação de animais de pequeno porte que compensem a escassez de peixes. Também prevê a contratação de pessoal técnico e administrativo para assessorar as comunidades.
A qualidade da água ganhou atenção especial na proposta. “Considerando que Belo Monte alterou a dinâmica dos rios e também de uso e ocupação do solo na região, além de alterar o padrão de consumo e a composição de espécies aquáticas consumidas e ter causado aumento populacional significativo, [há] relatos de aumento de ocorrência de doenças e problemas de saúde relacionados à água dos rios. Propõe-se o monitoramento de parâmetros que possam indicar contaminação e a instalação de poços em locais estratégicos”, diz o documento preparado pelo Grupo de Trabalho.
‘É uma falta de respeito’
Em 22 de agosto de 2023, quase oito anos após a imposição da condicionante pelo Ibama, Beiradeiros da Terra do Meio foram a Brasília para uma reunião em que o Grupo de Trabalho apresentaria a proposta revisada a dirigentes do ICMBio, do Ibama e da Norte Energia. A concessionária de Belo Monte foi representada pela superintendente de Sustentabilidade Silvia Cabral, pelo assessor socioambiental Bruno Bahiana e por Claudia Dias da Silva, uma consultora do Rio de Janeiro que assessora empresas de grande porte do setor de infraestrutura. À época, SUMAÚMA pediu para acompanhar o encontro, mas teve a participação vetada pelo ICMBio sob a justificativa de que ele não seria aberto à imprensa.
A reunião, que teve a presença de Mauro Pires, presidente do ICMBio, durou três horas. A ata, enviada a SUMAÚMA pela assessoria do instituto, mostra que a coordenadora do Grupo de Trabalho, Andréa Pimenta Ambrozevicius, servidora de carreira do ICMBio, apresentou em detalhes a proposta atualizada para o cumprimento da condicionante. Ao final, a superintendente da Norte Energia recebeu a palavra e disse que não estava ali para discutir os impactos de Belo Monte, mas apenas para ouvir o que estava sendo proposto e que a resposta seria dada por escrito. Assim, Silvia e seus colegas deixaram a reunião levando a proposta e um prazo de 30 dias para apresentar uma resposta.
O documento de Belo Monte chegou ao ICMBio exatamente no limite do prazo, em 21 de setembro. Não trazia um cronograma para o cumprimento da condicionante, nem uma contraproposta. Com 15 páginas e assinado por Paulo Roberto Ribeiro Pinto, diretor-presidente da Norte Energia, além de três anexos, dedica-se a reafirmar que Belo Monte não causou quaisquer impactos nas comunidades da Terra do Meio e que outras iniciativas suas já atendem ao que demandam os Beiradeiros. “A atual proposta apresentada pelo ICMBio extrapola os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”, conclui o texto, que SUMAÚMA recebeu via Lei de Acesso à Informação.
Paulo Roberto Ribeiro Pinto, diretor-presidente da Norte Energia, nega há anos os efeitos de Belo Monte na Terra do Meio. Foto: Marco Santos/Ag. Pará (2019)
Para as comunidades, foi uma resposta desanimadora, mas não surpreendente. “Até hoje não vimos resposta da Norte Energia que dialogasse de fato com a proposta da comunidade. O que fazem, reiteradamente, é contestar a legitimidade da condicionante”, lamenta Roberto Sanches Rezende, doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante – como representante do Instituto Socioambiental – do Grupo de Trabalho coordenado pelo ICMBio. “É uma falta de respeito com as populações da Terra do Meio”, resume o biólogo Francinaldo Lima, mestre em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia e assessor das associações de moradores das Resex na tentativa de negociação com a Norte Energia.
Em resposta, o Grupo de Trabalho preparou um novo documento em que rebate, ponto a ponto, as alegações da concessionária, entregue em outubro ao ICMBio. “Não vislumbramos disposição ao diálogo e construção conjunta […]. [A Norte Energia] não apresenta uma contraproposta para que a condicionante seja cumprida e os impactos mitigados. Enquanto isso, as famílias da região seguem padecendo, com perda da sua qualidade de vida e soberania alimentar”, lamenta o Grupo de Trabalho.
Em 16 de outubro, Mauro Pires, presidente do ICMBio, enviou ofício ao seu colega Rodrigo Agostinho, que comanda o Ibama. Nele, diz que é preciso que a Norte Energia seja obrigada a compensar os Beiradeiros da Terra do Meio pelos danos que Belo Monte lhes causou. E sugere uma multa “caso não haja o comprometimento imediato de cumprimento da proposta”.
Vale lembrar que a Norte Energia já havia sido autuada em 2017 por não cumprir essa mesma condicionante. Decorridos seis anos da multa de 101 mil reais, a concessionária jamais pagou a punição, e ainda pode recorrer dela. O valor é irrisório para a Norte Energia. Em 2022, a venda da energia produzida por Belo Monte rendeu 5,57 bilhões de reais líquidos ao consórcio.
Procurado, o Ibama informou que recebeu em julho de 2021 o pedido de renovação da licença de operação da Usina de Belo Monte. Como o pedido foi feito dentro do prazo estipulado por lei, a hidrelétrica pode seguir funcionando mesmo após o vencimento da autorização – o que ocorreu em novembro daquele ano –, até que o órgão ambiental tome a sua decisão. “A complexidade de Belo Monte e todos os conflitos sociais, econômicos e ambientais decorrentes da sua implementação trazem pro Ibama uma responsabilidade muito grande”, disse Rodrigo Agostinho, presidente do órgão, a SUMAÚMA. “Ela inclui a verificação de todas as condicionantes, e não apenas dessa. Já realizamos várias vistorias em campo, temos uma equipe em Altamira dedicada a esse empreendimento.”
Como SUMAÚMA publicou em dezembro de 2023, o Ibama já documentou que Belo Monte provocou alta mortalidade de árvores, desestruturação do modo de vida de três povos indígenas e de comunidades ribeirinhas, risco de extinção de técnicas tradicionais de pesca, novos obstáculos na navegação do Xingu, inviabilidade da reprodução dos peixes e assoreamento do rio.
A reportagem enviou uma série de perguntas à Norte Energia a respeito do descumprimento deliberado da condicionante da pesca nas Resex da Terra do Meio. A assessoria de imprensa da concessionária, feita pela FSB Comunicação, uma das maiores agências de relações públicas corporativas do Brasil, informou por escrito que não haveria respostas, sem dar nenhuma justificativa para isso.
Da comunidade São Francisco, severamente castigada pela seca de 2023, a professora Maiam Portugal mandou via SUMAÚMA um recado dirigido a Paulo Roberto Pinto, presidente da Norte Energia, que trabalha em Brasília. “Que ele venha passar uns dias aqui com a gente. Está convidado a comer do peixe que comemos, a beber da água que bebemos. Não pode trazer água mineral da cidade. Se ele não sentir nada, aí estará me provando que Belo Monte não causou impacto em nossas vidas.”
Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum
A comunidade São Francisco, na Resex Rio Iriri, a dezenas de quilômetros de Belo Monte, foi afetada pela obra que barrou o rio Xingu. Foto: Soll/SUMAÚMA