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Indígenas marcham em Brasília, em 15 de setembro, para cobrar punição por crimes ocorridos em suas terras. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Asunción Gimenez, de 36 anos, viu seu marido, o Guarani Kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, ser morto com dois tiros nas costas e um na coxa. Escondida com o filho em uma plantação de aveia, buscando se proteger das bombas e tiros do Batalhão de Policiamento de Choque da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, ela presenciou o pai de seus filhos tombar no chão da retomada Guapo’y, em Amambaí, cidade a 350 quilômetros da capital do Estado, Campo Grande. Era uma ação de despejo, em 23 junho e eles foram mortos pela polícia. Os indígenas se encontravam ali para pressionar pela reocupação de sua terra originária, onde hoje há uma fazenda, Borda da Mata.

Foram ao menos 65 policiais atirando projéteis, balas de borracha e bombas de gás contra os indígenas que corriam e tentavam se esconder em meio às plantações ao redor da área. Na ocasião, houve ao menos 20 Kaiowá feridos. Contudo, o conflito continua por Amambaí e outras duas pessoas da etnia foram mortas por pistoleiros, em emboscadas fora dos limites da terra indígena. Em julho, Márcio Moreira foi assassinado a tiros por dois homens em uma moto. Outra vítima mais recente é Vitorino Sanches, um Kaiowá de 60 anos, executado com 5 tiros nas costas, em 13 de setembro. Em agosto, Sanches já havia sofrido um atentado, quando seu carro foi atingido por ao menos 15 tiros: 2 acertaram nele.

O local onde os indígenas foram atacados fica no limite da Reserva de Amambaí, uma área delimitada pelo Estado durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985) para confinar os indígenas em apenas um determinado espaço da região. Hoje vivem lá ao menos 10 mil Guarani e Kaiowá. Eles afirmam que a terra ocupada pela fazenda Borda da Mata pertence a eles, e a reivindicam como parte da reserva. Por determinação da Justiça, eles permanecem lá. De acordo com as lideranças da retomada, foram subtraídos 269 hectares de seu território, que deveria ter 3.600 hectares.

Matias Benno Rempel, do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, acredita que a subtração do território vem ocorrendo desde os anos 1990. “A gente não chega a saber ao certo se a reserva, na prática, chegou em algum momento a constituir os 3.600 hectares. E a partir daí foram vários momentos em que essas terras foram sendo ocupadas com o apoio do próprio Estado”, afirma Rempel. “O fato é que os indígenas reivindicam esta terra como de ocupação tradicional. E eles têm o direito de ter a devolução dela, uma vez que ela se encontra no perímetro da terra indígena”, conclui o missionário.

A negligência dos Governos, acentuada sob a gestão Bolsonaro, deixa um rastro de sofrimento impossível de dimensionar. Após o enterro do marido, sentada ao lado do túmulo, Gimenez desabafou: “não estou mais feliz!”. Em Guapo’y, ouvia-se em cada canto que a violência rouba a felicidade. A história do Guarani Kaiowa é um exemplo da dor que se espalha pelo país. De acordo com o Cimi, somente entre os dias 3 a 13 de setembro, ao menos 7 mortes de indígenas — 6 assassinatos e um suicídio — foram registrados no Maranhão, Mato Grosso do Sul e Bahia. Destes, três mortos e dois feridos durante os ataques tinham menos de 18 anos.

Enquanto concluímos esta edição de SUMAÚMA, outro indígena da etnia Turiwara foi executado por pistoleiros em Tomé-Açú, no nordeste do Pará, no sábado, dia 24. A vítima estava numa caminhonete com outros três indígenas que também foram alvejados, segundo informações do site de notícias G1. Os moradores da cidade atribuem o crime a pessoas ligadas a uma empresa exploradora de dendê na região, como apurou o portal G1. O Ministério Público Federal do Pará anunciou no mesmo sábado que abriria investigações sobre o atentado em Tomé-Açú.

O clima de guerra nessa disputa de terras vem adoecendo a população originária, especialmente os mais jovens. No dia 11, no Mato Grosso do Sul, Cleiton Isnard Daniel, de 15 anos, foi encontrado com sinais de suicídio, de acordo com o Cimi. Cleiton era da aldeia Jaguapiru, que integra a Reserva Indígena de Dourados, onde os suicídios se tornaram um mal crônico. O abandono, a violência e a devastação na região são alguns dos fatores que aumentam a falta de perspectiva entre os indígenas.

Já no sul da Bahia, Gustavo Pataxó, adolescente de 14 anos, foi morto com um tiro na nuca, disparado por pistoleiros que cercaram a aldeia em que ele vivia em  Comexatibá, no extremo sul da Bahia, em 4 de setembro.“O Gustavo era uma criança inocente que vivia na reserva Aldeia Nova. Estudava, plantava, pescava e gostava de banhar e brincar no rio. Gostava muito de desenhar um guerreiro Pataxó”, relembra o cacique Mãdy, da aldeia Rio do Cahy, no Vale do Cahy, em Comexatiba. E completa: “que os culpados pelo sangue derramado paguem por isso. E que nenhuma gota de sangue seja derramada mais!”.

Suruí Pataxó, liderança na aldeia Barra Velha, também no sul da Bahia, afirma que as ameaças de morte são constantes. “Não queremos ver nossas crianças, nossos anciões e nossas lideranças ameaçados de morte dentro do nosso próprio território. Não queremos ver nosso povo morrendo na mão de grileiro, fazendeiro e muito menos de pistoleiros”, disse Suruí.  “Pedimos justiça e respeito, em nome do povo Pataxó e de todos os povos indígenas, para nossas crianças que estão morrendo.”

Com o processo de demarcação de suas terras parado, os Pataxó têm sofrido com a falta de espaço para a subsistência do seu povo, enquanto sobre o seu território avançam a monocultura e empreendimentos imobiliários. Os territórios indígenas em Barra Velha e Comexatibá são próximos e vivem histórias parecidas. O Estado reconheceu a ancestralidade das terras, mas falta vontade política para dar continuidade aos trâmites processuais. A TI Barra Velha aguarda a continuidade do processo de demarcação desde 2008. A de Comexatibá, desde 2005. Sem qualquer perspectiva de uma ação do governo, os indígenas resolveram atuar pela retomada  do território, o que gerou conflitos com fazendeiros e empresários da região. A desproporção das forças produz o massacre.

Um clamor contra a violência

Na última quinta-feira (15), 120 indígenas marcharam em Brasília para denunciar a morte que está à espreita de seus territórios. “Era para nossas crianças estarem enterrando o nosso povo, e nós, velhos, é que estamos enterrando nossas crianças. A gente pede de coração: chega de sangue! O povo está pedindo socorro”, lamentou Pjhcre Akroá Gamella, em meio à manifestação. ”A gente só quer justiça. Que a justiça seja feita”, afirma.

Na mesma ocasião, os indígenas realizaram uma coletiva de imprensa em frente ao Ministério da Justiça. Edinho Macuxi, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), foi incisivo: “Nosso povo está sendo assassinado, nosso território está sendo invadido, nossa água está sendo contaminada, nosso solo está sendo envenenado. Vamos continuar na luta, os povos indígenas não vão abrir mão dos direitos que nós temos, do direito aos territórios, à nossa liberdade, à nossa dignidade”.

Além da marcha, os indígenas participaram de reuniões e de audiências, a fim de cobrar por demarcação e proteção de suas terras e comunidades. Em audiência com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, Sheila Xakriabá desabafou: “A terra está pedindo socorro. Estamos gritando para a sociedade que precisamos de ajuda. Onde está o Estado, que deveria nos proteger? Onde está a Funai, que deveria nos proteger?”, pergunta ela.  “Por que nossas crianças e nossas mulheres estão morrendo? Nosso povo está chorando e ninguém faz nada”, reforça.

À SUMAÚMA, a defensora pública federal Daniele Osório afirmou que manifestações públicas de pessoas com acesso a meios de comunicação de massa, como políticos e detentores de cargos públicos, quando são carregadas de preconceitos, reforçam o racismo estrutural contra os indígenas e contribuem para o crescimento dessa violência. “O discurso dos governantes sobre a defesa da propriedade com armas letais, por exemplo, contribui para a violência sistêmica contra os povos indígenas”, explica Osório. “Há o pensamento comum de que a propriedade privada de uns vale mais do que a vida de milhares de pessoas que lutam por moradia ou pela reocupação de seus espaços tradicionais, dos quais foram despejados e expulsos”, conclui.

A luta, diz ela, é desigual. “A desproporção de forças é evidente: de um lado, pessoas com poder econômico, armas de fogo, contratos de segurança privada. De outro, mulheres, idosos, crianças, comunidades inteiras desarmadas que tentam retomar espaços para moradia e manutenção de sua cultura tradicional”, pontua.

Crescimento da violência

Segundo  o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil“, o número de agressões  contra os indígenas, em 2021, é o maior dos últimos 9 anos. O documento registra 355 casos de violência. Em 2020, foram 304. Entre as ocorrências, estão assassinatos e tentativas de assassinato, racismo, violência sexual, ameaças de morte.

Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Sul, explica que o relatório de violência busca denunciar a realidade de brutalidades contra os povos indígenas no Brasil e, ao mesmo tempo, cobrar dos poderes públicos medidas para que as violências sejam combatidas e os responsáveis punidos, tanto os agentes privados quanto os  públicos. “Registramos casos de assassinatos brutais contra indígenas, alguns com requintes de crueldade, esfaqueamentos, envenenamentos e até esquartejamento”, afirma Liebgott.

As invasões sistemáticas das terras causaram uma devastação inigualável nestes últimos três anos, explica. “O contingente de madeireiros, garimpeiros, grileiros, arrendatários subsidiados por empresas, amparados pelo governo e com infraestrutura de alta capacidade destrutiva, arrasam os territórios de forma intensa. Se antes se desmatava com machado e motosserra, hoje ocorre com equipamentos e máquinas devastadoras”, assinala Liebgott. “A retomada da política indigenista do país é urgente. Caso não sejam adotadas medidas de proteção aos territórios e a garantia dos direitos, os tempos, daqui por diante, serão ainda mais sombrios”.

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