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Laudo atestando violência sexual contra K, que denunciou ter sido estuprada por PMs. Montagem: SUMAÚMA, com documento e foto do advogado Dacimar Carneiro

O governo do estado do Amazonas fechou, na terça-feira, 29 de julho, um acordo para indenizar em 300 mil reais a Indígena do povo Kokama que denunciou ter sido vítima de estupros por policiais na cadeia de Santo Antônio do Içá. Como revelou reportagem exclusiva de SUMAÚMA publicada em 18 de julho, a Indígena – que aqui chamaremos apenas de K, a fim de preservar sua identidade – disse que, durante nove meses e 17 dias, foi violentada por policiais ao lado do filho recém-nascido.

Até abril deste ano, o governo oferecia a K apenas 35 mil reais de indenização por danos morais – depois aumentou para 50 mil –, enquanto o valor solicitado por sua defesa era 500 mil reais. Duas semanas após a publicação da reportagem, contudo, o governo mudou a oferta para 300 mil reais e mais uma casa cedida pelo Estado.

Também após a publicação da reportagem de SUMAÚMA, quatro policiais militares e um guarda-civil foram presos. A pena de K – ela havia sido condenada a 16 anos e sete meses de prisão por coautoria no homicídio de uma adolescente – foi convertida em semiliberdade, por decisão do juiz de Execuções Penais de Manaus. Esse regime é previsto no Estatuto do Índio (Lei nº 6001/1973) e permite que a pena seja cumprida no local de funcionamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, mais próximo da casa da Indígena.

Uma casa doada pelo governo vai abrigar a família de K, que também recebeu ameaças depois da denúncia e decidiu se mudar de Santo Antônio do Içá. Com o fechamento do acordo, assinado pela Indígena (que foi acompanhada remotamente por seu advogado, Dacimar de Souza Carneiro)  e por representantes do governo do Amazonas, do Ministério Público e da Defensoria Pública, a ação de indenização foi declarada extinta “com resolução do mérito”. A audiência de conciliação foi presidida pela juíza Etelvina Lobo Braga, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Manaus, no Amazonas.

Além dos 300 mil reais, que deverão ser quitados por meio de um precatório – entrará em uma fila de pagamentos que deverá demorar dois ou três anos para ser cumprida, segundo a estimativa da defesa –, o governo do estado se comprometeu a pagar um salário mínimo à família durante um ano, para que ela possa se estabelecer em uma nova cidade, não divulgada por motivos de segurança.

Na audiência, o advogado Carneiro informou à juíza que tanto K quanto sua família “não têm condições de permanecerem em Santo Antônio do Içá, tendo em vista temerem por sua integridade física”. Falando pelo governo, os procuradores Giordano Bruno Costa da Cruz e Leonardo de Borborema Blasch disseram que “o Estado se obriga a continuar fornecendo o tratamento psicológico da autora [Indígena], de preferência com a mesma profissional que já a atende”.

Carneiro disse a SUMAÚMA que o desfecho do processo deveria levar a uma reflexão sobre as condições das cadeias no interior do Amazonas. “Embora o processo que visava a condenação do Estado por sua omissão na segurança e dignidade dos presos tenha sido encerrado por acordo, a urgência em cobrar a criação de mecanismos de proteção, a integral reestruturação das unidades prisionais e delegacias, e a garantia de direitos humanos e condições de trabalho dignas para servidores e custodiados – com especial atenção às mulheres – permanece um desafio inadiável e crucial”, explicou o advogado.

Nesta quarta-feira, 30, os coletivos Entre Elas Defensoras de Direitos Humanos e Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas divulgaram nota pública subscrita por 126 organizações não governamentais do Amazonas e de diversos outros estados. A nota afirma que no Amazonas existem, além de seis penitenciárias na capital e outras sete no interior, 53 delegacias de polícia e um batalhão da Polícia Militar que funcionam onde mais de 2 mil pessoas cumprem pena. De todas essas instituições, contudo, “apenas uma é legalmente dedicada ao cumprimento de penas de mulheres cis”. Em julho, havia 40 mulheres “custodiadas em carceragens do interior”.

“Nós não entendemos como é possível uma mulher violada todos os dias durante 9 meses por policiais dentro de um espaço de confinamento ter sua dignidade recuperada e sua saúde física e mental cuidada em outro espaço de confinamento e, pior, administrado por outros homens policiais militares e penais”, diz a nota pública.

“Se lermos bem as palavras da indígena Kokama, ditas com muita bravura para um jornalista, os estupros sucessivos são parte de um conjunto maior de violências e violações que produziram um adoecimento físico, psíquico e espiritual cujas marcas dificilmente se apagarão em vida. Ela foi submetida junto com seu bebê a uma tentativa de apagamento de suas existências, de redução a uma situação de absoluta indignidade, que inclui a ausência de meios e redes de defesa e proteção.”


Reportagem e texto: Rubens Valente
Edição: Fernanda da Escóssia
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o castelhano: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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