Jornalismo do centro do mundo

Povos Indígenas fazem homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari em junho de 2022. Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Entre 2013 e 2023 foram registrados 230 casos de violência contra jornalistas que denunciaram, entre outras questões, atividades de garimpo ilegal, exploração madeireira, expansão agrícola descontrolada e narcotráfico nos nove estados da Amazônia Legal. O Pará foi o estado com mais notificações, com 89 casos, seguido do Amazonas (38), Mato Grosso (31) e Rondônia (20). Os registros foram feitos pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Os números provavelmente são maiores, já que um dos resultados da violência é o medo, que leva à autocensura e à subnotificação. A publicação “Fronteiras da Informação: Relatório sobre Jornalismo e Violência na Amazônia”, lançada neste 23 de abril pelo Instituto Vladimir Herzog, analisa as causas e detalha o contexto sociopolítico e ambiental em que ocorreram os ataques, as formas como são perpetrados e os efeitos sobre a liberdade de imprensa e a democracia. Nessa ampla radiografia editada e coordenada pelo jornalista Hyury Potter, um elemento em comum se destaca: a impunidade.

“Nosso objetivo é contribuir com as análises produzidas sobre o tema, ampliar a conscientização sobre os desafios enfrentados por essas pessoas e reforçar a necessidade de que Estado e sociedade atuem conjuntamente para garantir que o trabalho jornalístico possa ser feito sem medo de ameaças e violações”, explica o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, na abertura do relatório. O Instituto, que leva o nome do jornalista cuja morte é um dos casos mais emblemáticos de violência contra comunicadores no exercício da profissão durante o período da ditadura empresarial-militar (1964-1985) no Brasil, estabelece uma relação do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em 5 de junho de 2022, no Vale do Javari, com crimes que vêm se perpetuando devido ao abandono do Estado e, mais recentemente, ao surgimento de uma categoria até então pouco conhecida de agressores na região: os narcogarimpeiros.

A forma como foram esquartejados os corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips remete à lembrança de outro jornalista cuja morte teve repercussão internacional: Tim Lopes, da TV Globo, em 2 de junho de 2002, assassinado por traficantes do Rio de Janeiro. Vinte anos antes, portanto. O corpo de Lopes foi esquartejado e queimado, uma técnica do crime organizado conhecida pela polícia. Muito antes dessa execução, os relatórios da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e de Repórteres sem Fronteiras (RSF) já relatavam casos de comunicadores e comunicadoras ameaçados, agredidos e/ou assassinados por denunciarem, na grande maioria dos casos, políticos e policiais corruptos nas cidades e regiões mais distantes das capitais. Ocorridos antes do surgimento da internet, quando as denúncias ficavam restritas e não havia ainda a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), criada após o assassinato de Lopes, o que ampliou a divulgação, muitos destes casos permaneceram impunes: no máximo, os pistoleiros foram investigados e condenados, raramente os mandantes.

Quando não há punição, os criminosos se sentem à vontade para continuar atuando. O assassinato de Tim Lopes e os ataques que se seguiram a profissionais da comunicação ao longo dos anos intensificaram a demanda das entidades pela criação de um Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais e pela federalização dos crimes e agressões, a fim de assegurar a identificação e a punição de todas as pessoas envolvidas, dos executores aos mandantes. Projetos de lei têm sido propostos no Congresso, prevendo penas maiores para crimes contra jornalistas e comunicadores e comunicadoras, sob o argumento de que a comunicação é um direito e, sem informação, a sociedade é a maior prejudicada, com grandes danos para a democracia.

O Observatório foi retomado neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como resposta a quatro anos de ataques do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL), de 2019 a 2022. Após o 8 de janeiro de 2023, as agressões se acentuaram na cobertura da tentativa de golpe de Estado, quando houve a invasão e a depredação dos prédios dos três poderes, em Brasília, por seguidores de Bolsonaro. O conselho do Observatório Nacional de Violência contra Jornalistas e Comunicadores é formado por 33 entidades da sociedade civil e do Estado. Entre elas, o Instituto Vladimir Herzog, a Federação Nacional dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e os Repórteres sem Fronteiras. Conforme a portaria que o instituiu, suas atribuições são o monitoramento de casos de violência contra jornalistas, comunicadores e comunicadoras, o apoio às investigações, a manutenção de um banco de dados nacional e único e a sugestão de políticas públicas para garantir o pleno exercício do jornalismo e da comunicação. Um ano depois de ter sido criado, no entanto, enfrenta limitações de estrutura, com falta de pessoal e de orçamento, como explica o professor Rogério Christofoletti, representante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Observatório.

Para realizar a análise da violência na Amazônia, o Instituto Vladimir Herzog consultou o Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, que discute a criação de políticas de proteção para defensores e defensoras de direitos humanos, comunicadores e comunicadoras e ambientalistas. Segundo o jornalista Gabriel Shiozawa, representante das Brigadas Populares no Grupo de Trabalho, há uma tentativa de montar um plano básico, possivelmente um projeto de lei, para propor uma revisão do atual Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). Uma das críticas ao PPDDH é a incapacidade de adaptação às demandas específicas para atender comunicadoras e comunicadores sob risco em seus territórios, além da falta de estrutura e de orçamento.

O Instituto Vladimir Herzog destaca no seu relatório as histórias de dez jornalistas, comunicadores e comunicadoras populares que tiveram a vida deles e a de suas famílias ameaçadas pelo crime, que precisaram abandonar suas casas, mudar de cidade, ou se disfarçar para trabalhar. Alguns sofreram ameaças após as reportagens, outros enquanto faziam as apurações. Há casos de violência praticadas por integrantes do garimpo ilegal, por madeireiros, assim como de censura judicial. Há ainda ataques diretos às sedes de jornais, que foram metralhadas. As histórias são acompanhadas de uma descrição minuciosa do contexto de crimes e impunidade em cada estado. Ao final do relatório, o Instituto Vladimir Herzog apresenta o Ecossistema de Recursos de Proteção a Comunicadores/as, que inclui grupos de apoio e protocolos de segurança para jornalistas e comunicadores/as, e enumera recomendações ao Estado brasileiro.

A repórter da TV Globo Sônia Bridi, com experiência de coberturas na região, ressalta no prefácio do relatório do Instituto Vladimir Herzog que segurança deve ser um bem coletivo: só existe se é para todas as pessoas. “Mas, para garantir uma sociedade segura, precisamos saber onde está sendo cometido um crime, como e onde agem os criminosos. Por isso, uma sociedade só é segura quando há segurança para os jornalistas.”


A transmissão ao vivo do evento e a versão digital do relatório estão disponíveis no site: vladimirherzog.org/fronteirasdainformacao

Violência na Amazônia, marcada pela impunidade, é praticada por madeireiros, grileiros, garimpo ilegal e, recentemente, pelo crime organizado. Foto: Christian Braga/ClimaInfo


Reportagem e texto: Clara Glock
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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