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Na III Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, lideranças do movimento, de todo o Brasil, protestaram contra o marco temporal, alvo de julgamento do Supremo. Foto: Scarlett Rocha/SUMAÚMA

Com piso e paredes de mármore, sofás forrados com couro e uma galeria com os retratos de seus ex-presidentes desde os tempos do Império, o Salão Branco do Supremo Tribunal Federal é um local reservado a solenidades, mas também usado por ministros para encontros com advogados de partes interessadas em processos que estão sob o julgamento da Suprema Corte brasileira. Até bem pouco tempo atrás era improvável a presença de lideranças indígenas em encontros institucionais – e não em atos de protesto – nesses palácios pomposos criados em Brasília para os que exercem o poder.

O julgamento do marco temporal no Supremo, que no dia 21 de setembro teve a etapa final com os últimos votos de ministros, mostrou que o movimento indígena está articulado para os ritos e liturgias que rondam os Três Poderes da República e exerce hoje forte pressão política. A presença de indígenas nos gabinetes do Supremo – espaços há poucos anos frequentado quase que exclusivamente por advogados de empresas e lobbies poderosos – deixou de ser algo raro para se tornar corriqueira.

No dia 13 de setembro, a presidenta do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, recebeu, durante o intervalo da sessão, uma comitiva de 30 mulheres indígenas do Brasil e do exterior. Elas participavam da terceira edição da Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). No dia seguinte, 14, outro grupo de lideranças indígenas – Angela Kaingang, Isabel Tukano e Antonia Xokleng – aproveitou a passagem por Brasília para uma conversa com duas juízas que trabalham no gabinete do ministro Dias Toffoli. Em 29 de agosto, a ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara, esteve no gabinete do ministro do STF Cristiano Zanin, junto com o secretário-executivo do ministério. No dia 5 de setembro, foi a vez de ambos visitarem o ministro Dias Toffoli.

Presidente do Supremo, Rosa Weber, e ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin recebem mulheres indígenas em intervalo da sessão. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O “tour” das lideranças indígenas pelo Judiciário brasileiro tem sido bem-sucedido, sempre acompanhado de advogados – muitos deles também indígenas – e com a apresentação de argumentos técnicos e fundamentados contra o marco temporal. O Supremo retomou, nos dias 20 e 21, a última fase do “julgamento do século”. Ele era chamado assim pelos indígenas porque o seu resultado seria fundamental para assegurar que os povos originários continuassem a ter pleno acesso à terra, conforme determina a Constituição, definindo, assim, o seu futuro.

A tese jurídica do marco temporal foi finalmente derrotada no Supremo, por 9 votos a 2. Ela determinava que só teriam direito às suas terras os indígenas que ocupassem esses territórios até a data da promulgação da Constituição de 1988. Desconsiderava a perseguição histórica aos povos originários, os extermínios e o processo violento de expulsão de muitos deles, que começou com a chegada dos invasores europeus e ganhou escala durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985).

“Hoje, há uma rede de advogados indígenas que pensa e coordena estratégias de atuação, e que ganhou muita força no governo passado [de Jair Bolsonaro], quando os indígenas precisaram acessar a Justiça por causa de um Poder Executivo devastador”, observa a advogada Carolina Santana, que trabalha para o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e é autora de uma tese de doutorado sobre o marco temporal. A atuação dos advogados indígenas foi marcante e decisiva desde o início do governo Bolsonaro. Em agosto de 2020, o movimento levou ao Supremo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, exigindo do Estado brasileiro o cumprimento da Constituição e a proteção às comunidades indígenas para conter o avanço da pandemia em seus territórios. Na ação, o movimento pediu, ainda, a retirada de não indígenas das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapo, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacaja.

Audiência com a presidenta

Acompanhada dos colegas Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, a presidenta do Supremo ouviu por quinze minutos o que as mulheres indígenas esperam da Suprema Corte brasileira. Na marcha, que teve como tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais”, as indígenas protestaram, sobretudo, contra a tese do marco temporal. Cristina Coc, uma indígena Maia que se dedica à conservação ambiental e aos direitos dos povos indígenas no sul de Belize, na América Central, falou aos ministros sobre as decisões do Tribunal de Justiça do Caribe. Em 2015, esse tribunal referendou uma série de decisões, de instâncias inferiores, que garantiram a autodeterminação de indígenas caribenhos. Cristina elogiou a Constituição brasileira por proibir a mineração em terras indígenas.

Em seguida, a indonésia Meiliana Yumi fez um breve comentário – em sua língua nativa, traduzida para o inglês por um intérprete e para o português por integrantes da comitiva – acerca do impacto causado pela mineração sobre os povos originários na ilha de Sumatra. O governo da Indonésia permite a mineração em terras indígenas, com resultados devastadores, segundo Meiliana, especialmente para as mulheres, vítimas de infecções sexualmente transmissíveis, do tráfico de mulheres e da prostituição.

Fachin, relator do caso do marco temporal no Supremo, recebeu de Lucimara Patté um colar feito pelo pai dela, na Terra Indígena Morro dos Cavalos. Lucimara explicou ser um gesto de agradecimento ao voto do ministro, que afastou a possibilidade de se fixar um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O colar com que presenteou Fachin é um amuleto para proteção. Os ministros também receberam da antropóloga e ativista Braulina Baniwa um relato de violações contra mulheres indígenas.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, foi ao gabinete do ministro Zanin na véspera da retomada do julgamento. FOTO: Reprodução

Voto a voto

O “julgamento do século” tem origem em uma disputa que envolve o povo Xokleng, de Santa Catarina, e o governo do estado. A Reserva Biológica Estadual do Sassafrás se sobrepõe à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ — ocupada pelos Xokleng e também por uma minoria de Kaingang e Guarani. O governo catarinense entrou na Justiça contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para remover os povos originários da área de preservação, e o caso foi ao STF. Advogado dos Xokleng e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto conta que, desde então, buscou realizar audiências com todos os ministros da Corte – foi ele quem acompanhou Angela Kaingang, Isabel Tukano e Antonia Xokleng ao gabinete de Toffoli.

A ideia, conta Modesto, era levar as próprias lideranças indígenas para explicar aos ministros sua realidade e as implicações do julgamento. “Foi muito importante os ministros terem ouvido os indígenas. Nós [advogados] estávamos ali mais para discutir questões técnicas”, diz.

Segundo Modesto, representantes do Cimi, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do movimento indígena tiveram audiências com todos os atuais ministros da Corte — à exceção de Alexandre de Moraes, conhecido em Brasília por ser mais reservado. Em todas as ocasiões, afirma Modesto, a recepção das autoridades foi “bastante positiva” — mesmo no caso de magistrados que se mostraram contrários às suas teses, como André Mendonça e Kassio Nunes Marques. Os dois, indicados por Bolsonaro ao Supremo, votaram a favor do marco temporal.

Na conversa que tiveram com juízas do gabinete do ministro Toffoli – que ainda não votou no julgamento do marco temporal –, Angela Kaingang, Isabel Tukano e Antonia Xokleng, ao longo de uma hora, expuseram um rol de motivos pelos quais o marco temporal é inconstitucional. Também deixaram clara a preocupação com a indenização prévia como condição para novas demarcações, uma novidade trazida no voto do ministro Alexandre de Moraes. Por fim, defenderam o usufruto exclusivo pelos indígenas das terras de ocupação tradicional, como já determina a Constituição.

Quando o ministro compreende…

Uma das sessões do julgamento, que ocorreu no dia 31 de agosto, foi considerada pelos indígenas o momento-chave. O voto do recém-nomeado ministro Cristiano Zanin era considerado uma incógnita. Contudo ele afastou não apenas a tese do marco temporal como também a proposta de “indenização prévia” presente no voto de Alexandre de Moraes — que, na prática, cria mais uma etapa complexa no já moroso processo de demarcação de terras indígenas. Caso os ministros sejam favoráveis a ambos os posicionamentos de Zanin, o julgamento será uma vitória histórica do movimento indígena.

O Ministro Luís Roberto Barroso lê livro que recebeu em audiência com mulheres indígenas no Brasil, Indonésia e Caribe. Foto: Natalia Ramírez/Indigenous Peoples Rights International

“Nós levamos a nossa tese ao ministro Zanin, e ele parece ter compreendido muito bem”, afirma o advogado Rafael Modesto. Em seu voto, Zanin prevê que posseiros de boa-fé podem ser, eventualmente, indenizados pela União ou por governos estaduais, a depender do caso, mas sem que isso interrompa o processo de demarcação. Para Modesto, o voto é “completamente satisfatório” — avaliação compartilhada pela ministra Sonia Guajajara, que fez questão de postar em suas redes sociais fotos da visita no gabinete de Zanin. Para ela, a proposta de Zanin “não impede a continuidade e abertura de novos processos demarcatórios”.

A articulação de Sonia Guajajara contra o marco temporal também tem sido intensa. Recentemente, ela se reuniu com Rosa Weber, e, segundo assessores, busca “constante diálogo” com outras autoridades para “expor a importância” da pauta indígena e a “ameaça” que o marco temporal — e o PL 2.903, que tramita no Senado — representa.

Ocupar os espaços

No plenário do Supremo, dezenas de lideranças indígenas, incluindo um grande contingente do povo Xokleng, têm acompanhado todas as sessões recentes do julgamento. O cacique Raoni Metuktire, principal referência do movimento indígena no Brasil, esteve presente nas sessões de junho e agosto deste ano, do início ao fim, apesar de seus mais de 90 anos. Quem não consegue entrar no STF acompanha os votos do lado de fora por um telão.

“É de suma importância frisar que esse é o julgamento do século. Os povos indígenas aguardam essa decisão para que se retomem as demarcações das terras indígenas”, resumiu Dinamam Tuxá, um dos coordenadores da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os indígenas têm pressa. “Temos uma expectativa muito boa que o julgamento não tenha mais nenhuma paralisação ou pedido de vista”, comentou Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, na sessão que ocorreu no fim de agosto.

Para Rafael Modesto, a mobilização popular, aliada à articulação institucional, está sendo fundamental no julgamento do marco temporal — e, também, no debate de outros temas de interesse dos povos originários. Para ele, 2015 foi um ano crucial para o fortalecimento dessa estratégia. Na época, em menos de seis meses, o STF anulou portarias que demarcavam três terras indígenas. Esses revezes demonstraram a necessidade de uma estratégia combinada nas ruas e nos gabinetes.

Orgulho e preconceito

Ainda que o julgamento do marco temporal ateste a força do movimento indígena, o racismo contra os povos originários ainda está longe de ser um fenômeno do passado e continua presente nos mais altos escalões do poder.

O cacique Raoni Metuktire, apesar da idade avançada, marcou presença em todas as sessões de julgamento do marco temporal realizadas no Supremo neste ano. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

A presença de Raoni e outras dezenas de lideranças indígenas no plenário não constrangeu o ministro Gilmar Mendes, que, no início da sessão, interrompeu o voto de Mendonça com uma longa fala recheada de preconceito contra os povos indígenas. Ele declarou que os indígenas da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, passaram a “catar lixo em Boa Vista” após a expulsão de invasores que plantavam arroz na região. Mendes também defendeu a legalização do garimpo em terras demarcadas e ainda acusou o cacique Babau, liderança Tupinambá da Bahia, de não ser indigena.

A fala do ministro causou mal-estar em todos os presentes, mas para Alcebias Constantino Sapará, vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coaib), a dor foi particular. “Eu sou da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e por isso essa fala muito me incomodou. Eu conheço a realidade do meu povo. Ele disse que os parentes foram para o lixão, que depois da saída dos ‘arrozeiros’ todo mundo tava morrendo de fome. Nada disso está acontecendo”, criticou. “Por que ele não vai lá ver nossa realidade? Vai ser bem recebido pelas nossas lideranças.”

Alcebias diz que aguarda uma retratação do ministro do Supremo. Já o convite para que ele visite a terra indígena e veja “a realidade” é algo que ainda parece muito distante para quem vive dentro dos palácios de mármore.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem da página: Érica Saboya

Mulheres indígenas assumiram o protagonismo na luta contra o marco temporal, o que ficou evidente na III Marcha que teve como tema ‘Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade Pelas Raízes Ancestrais’. Foto: Scarlett Rocha/SUMAÚMA

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