Jornalismo do centro do mundo

Árvores mortas durante a abertura do canal perto de Altamira, no Pará, para servir à barragem de Belo Monte. A imagem é de fevereiro de 2012. Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace

Querida comunidade SUMAÚMA,

Para um ícone da esquerda e um partido de esquerda, nada pode ser pior do que encarar um legado de violação de direitos humanos. Para um ícone da esquerda que se lançou como defensor da Amazônia no cenário internacional, nada pode ser mais perigoso do que uma catástrofe ecológica com suas digitais na maior floresta tropical do planeta. A importância do Brasil no cenário global está diretamente ligada à Amazônia – tanto quanto os investimentos internacionais. A popularidade de Lula em um mundo assombrado pela crise climática também. Esse é o significado da renovação da licença de operação de Belo Monte para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e para o PT.

Depois de 13 anos na Presidência (2003-2016), o PT tem um passado no poder. O antipetismo que resultou na eleição de Jair Bolsonaro costuma ser justificado pela corrupção do partido no governo. Embora a corrupção atravesse todos os partidos tradicionais no Brasil, como é bem fácil provar, o PT tinha se lançado como uma legenda diferente. É natural que tenha sido mais cobrado por isso. Entretanto, parte dos que bradavam contra a corrupção do PT no poder se calou diante da corrupção explícita do governo de Bolsonaro, o que faz suspeitar que o antipetismo possa se dar não pelos erros do PT, mas pelos seus acertos: ter enfrentado a desigualdade racial e social do Brasil como nenhum outro partido antes dele, por exemplo.

Agora, Lula e o PT voltaram ao governo depois de quatro anos de fascismo. E, apesar de todos os percalços, o PT é o único dos partidos nascidos no período da redemocratização que sobreviveu como um partido. Se o passado de corrupção pode ser superado, especialmente agora que Lula carrega a esperança de milhões de brasileiros em voltar a ter um país, há algo que não poderá ser esquecido. E esse algo se chama Belo Monte.

Planejada e leiloada nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010), construída no governo de Dilma Rousseff (2011-2016), a hidrelétrica se tornou um símbolo internacional de destruição humana e ambiental na Amazônia. Imposta aos povos da floresta e da cidade de Altamira, no Pará, a usina é alvo de 29 ações do Ministério Público Federal. Há grande probabilidade de que, nos próximos anos, Belo Monte seja formalmente tratada como “crime” em sentenças do Supremo Tribunal Federal. O substantivo já é usado para defini-la tanto por suas vítimas e pelos movimentos socioambientais quanto pelos cientistas que a pesquisam desde quando era apenas um projeto da ditadura empresarial-militar (1964-1985) que ninguém acreditava que poderia sair do papel. E agora, como um bumerangue feito de aço e concreto, Belo Monte volta à mesa do novo governo, a quem caberá a renovação de sua licença de operação.

Tanto Lula quanto a maior parte do PT têm dificuldade de assumir a verdade sobre Belo Monte. Mas de Belo Monte não se escapa. É isso que mostra a série especial assinada pela jornalista Helena Palmquist, que passou vários dias em Altamira e região investigando, por terra e por água, os impactos da usina. A hidrelétrica, imposta sem consulta prévia aos povos da floresta, expulsou 55 mil pessoas. Hoje, está secando 130 quilômetros de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia, chamada Volta Grande do Xingu, e pondo em risco a vida de três povos indígenas, de comunidades tradicionais e de centenas de outras espécies. Também até hoje as famílias ribeirinhas que tiveram suas ilhas afogadas e suas casas queimadas ainda não foram reassentadas junto ao reservatório da usina, o que provocou fome, adoecimento e morte. Altamira se transformou em uma das cidades mais violentas do Brasil, e as crianças expulsas da floresta se tornaram adolescentes em periferias dominadas pelo crime organizado.

Este é apenas um pequeno resumo da obra. E para tudo isso há provas abundantes. Negar os brutais impactos de Belo Monte é tão impossível quanto negar a crise climática. Tanto uma quanto a outra são reais – e a realidade se impõe até mesmo para os negacionistas.

A renovação da licença de operação pode ser a chance de Lula e o PT mudarem a narrativa do seu legado na Amazônia, hoje fortemente contaminada por Belo Monte. Já não há reparação para a destruição socioambiental produzida pela hidrelétrica. Mas a renovação da licença pode ser a oportunidade para que o Estado finalmente obrigue a Norte Energia, a concessionária de Belo Monte, a cumprir suas obrigações legais: das 47 medidas que deveriam prevenir ou reduzir os danos da construção e da operação, apenas 13 foram cumpridas integralmente. É inaceitável que, depois de tudo, este governo renove a licença da usina sem o cumprimento integral das condicionantes, que nunca condicionaram coisa alguma.

Hoje, a hidrelétrica sequestra 70% da água da Volta Grande do Xingu, barrando a reprodução da maioria das espécies, o que resulta na morte de milhões de peixes e na condenação dos povos da região à fome. É imperativo que o governo cumpra sua obrigação de fazer uma partilha da água ecologicamente viável, em que a vida, princípio maior inequívoco, se imponha. Hoje, famílias ribeirinhas vivem há mais de uma década jogadas nas periferias urbanas à espera de justiça e, há pelo menos seis anos, à espera de um território ribeirinho que lhes devolva o modo de vida e salve seus filhos do aliciamento do crime organizado. Cada dia a mais sem um território ribeirinho pode significar uma vida a menos. E cada uma delas será lembrada e cobrada.

É hora de a Constituição finalmente valer para Belo Monte. Como diz Bel Yudjá, liderança da Terra Indígena Paquiçamba, na Volta Grande do Xingu, “o rio é a nossa dignidade”. É sobre essa dignidade que o pescador e ribeirinho Raimundo da Cruz e Silva escreve nesta edição de SUMAÚMA, em um texto dolorosamente poético: “No momento que cortaram ao meio o Xingu e o sangraram, também fomos sangrados”. Nossa plataforma trilíngue de jornalismo tem como compromisso vital priorizar autores da floresta – e Raimundo é um desses talentos que até então ficava confinado aos cadernos e pedaços de papel espalhados pela sua casa, à beira de um rio que hoje é usado pela Norte Energia como sua caixa-d’água particular. Não mais. Raimundo, agora, fala com o mundo em pelo menos três línguas. Soll Sousa, um jovem negro da periferia de Altamira que exerce sua resistência por meio da arte, é autor de parte das fotos da série especial sobre Belo Monte. Habituado à violência urbana de Altamira, Soll percorreu pela primeira vez o Xingu para retratar as violações cometidas contra o rio e seus povos.

O fotógrafo Soll Sousa e o pescador-escritor Raimundo da Cruz e Silva em comunidade na Volta Grande do Xingu durante cobertura especial sobre Belo Monte para SUMAÚMA. Foto: Helena Palmquist/SUMAÚMA

“A derrota e a vitória só se medem na história”, lembrou Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em uma entrevista exclusiva que marca os seis meses de vida de SUMAÚMA, completados em 13 de março (obrigada por nos ajudar a chegar até aqui, com seu apoio, hoje passamos de 110 matérias publicadas). Para celebrar uma data redonda em uma plataforma de jornalismo baseada na floresta, nada melhor do que uma entrevista com uma amazônida cuja vida pública já faz parte da história do Brasil e da luta climática do planeta. A frase dita por Marina duas vezes durante nossa conversa se refere ao presidente Lula, que foi dado como acabado depois de ficar preso por 580 dias e voltou triunfalmente como o único candidato capaz de salvar o Brasil do fascismo representado por Bolsonaro. Marina não disse, mas a frase também se aplica a ela mesma, que, depois de alcançar 22 milhões de votos no primeiro turno das eleições presidenciais de 2014, teve menos de 1 milhão na eleição de 2018 – e também foi dada como acabada. Quatro anos depois, em 2022, Marina se tornou a principal protagonista da frente ampla que levou Lula à vitória. Mais. Ministra do Meio Ambiente do primeiro mandato de Lula, ela deixou o governo em 2008, já no segundo mandato, e no ano seguinte o PT. Hoje, é a única dos ministros do primeiro governo do PT que voltou junto com Lula. É também Marina Silva que fala de Belo Monte como aquilo que comprovadamente é: um “trauma”.

A renovação da licença de operação de Belo Monte e o projeto da Petrobras de explorar petróleo na foz do Amazonas são os dois temas emergenciais da pauta ambiental neste início do terceiro mandato de Lula. É sobre o mais novo capítulo do avanço da Petrobras na Amazônia que escreve a jornalista Claudia Antunes nesta edição. Em fevereiro, os indígenas do Amapá foram visitados por uma delegação da Petrobras que lhes impingiu a já tradicional narrativa sobre como o empreendimento respeitará o meio ambiente e como os impactos serão amenizados. No Pará, os indígenas ouviram essa narrativa muitas vezes – antes, durante e depois da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Podem explicar aos seus parentes a quantidade inexistente de verdades que ela contém.

“A derrota e a vitória só se medem na história.” Essa frase também pode ser dita pelas vítimas de Belo Monte, que jamais permitiram que a hidrelétrica se tornasse um “fato consumado”, muito menos um caso “superado”, jamais um fato “esquecido”. A esta altura, o Brasil já deveria ter aprendido o custo de sangue dos apagamentos. Que a renovação da licença de operação de Belo Monte tenha caído no colo do PT pode parecer um tremendo azar para quem preferia esquecer – e que esquecessem. É o contrário, porém. É a oportunidade de Lula e do PT fazerem o que é certo. Raras vezes um presidente e um partido têm uma chance dessa magnitude. Sobre sua escolha, hoje, só há uma certeza: estará na história.

Desejamos a todas, todes e todos uma ótima leitura desta 12ª edição da newsletter de SUMAÚMA, que, a partir de hoje, passa a ser entregue sempre às quintas-feiras, duas vezes por mês, como sempre reunindo as reportagens e os artigos publicados regularmente em nosso site e anunciados nas redes sociais nos 14 dias anteriores.

Fiquem bem e até a próxima,

Eliane Brum
Idealizadora e diretora de redação de SUMAÚMA


Revisão ortográfica: Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de imagens: Marcelo Aguilar, Mariana Greif and Pablo Albarenga

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