Jornalismo do centro do mundo

ALTAMIRA, 27 DE JANEIRO DE 2018: ÁRVORES MORTAS POR BELO MONTE FORMAM UM PALITEIRO NO RESERVATÓRIO DA HIDRELÉTRICA. FOTO: LILO CLARETO

Esta carta é destinada ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; à ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva; ao presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho;
à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; e à presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana

Nós, pesquisadores independentes que compomos o Observatório da Volta Grande do Xingu (VGX), louvamos a iniciativa declarada pelo governo de apurar os crimes ambientais e contra os povos tradicionais praticados pelo governo Bolsonaro, para que os mesmos sejam devidamente investigados e punidos. Especificamente, destacamos o desmatamento ilegal, a invasão de Terras Indígenas (TIs), o incentivo ao garimpo ilegal, a disseminação de fake news e o descaso ligados à pandemia, além da liberação indiscriminada de agrotóxicos. Esses seguem ocorrendo ao apagar das luzes.

Nessa direção, chamamos atenção para os impactos socioambientais causados pela construção e operação da Usina Hidrelétrica Belo Monte desde o ano de 2011. O Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente reconheceu, em 2022, que o licenciamento de Belo Monte não respeitou o devido processo legal e afrontou diretamente a Constituição. Especificamente, não houve consulta pública ampla, com o necessário esclarecimento de potenciais impactos socioambientais — muitos deles severos e dificilmente reversíveis — nem o necessário debate com a sociedade.

As populações indígenas e ribeirinhas afetadas não foram consultadas como prevê a Constituição e a Convenção Nº 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. As audiências públicas realizadas não viabilizaram minimamente a participação de todas as partes interessadas, sobretudo dos povos habitantes das margens do Xingu nas áreas sob impacto direto e indireto do empreendimento.

O complexo licenciamento de Belo Monte, envolvendo a emissão da Licença Prévia, de Instalação e de Operação, foi alvo de 28 processos por parte do Ministério Público Federal e de denúncias por organizações não-governamentais e pessoas físicas, bem como repudiado por sociedades científicas. Essas licenças foram emitidas sob condicionantes que jamais foram cumpridas de forma integral, e todas receberam parecer técnico contrário pelos analistas do órgão licenciador, o Ibama. Os pareceres contrários se deram por ausência de condições de viabilidade socioambiental.

Exemplos de condicionantes que não foram cumpridas incluem o saneamento urbano de Altamira — sem o qual a região fica sujeita ao colapso sanitário; a garantia de sobrevivência dos ecossistemas alagáveis e aquáticos do Xingu — sem a qual mais de 4 mil pescadores enfrentam a penúria e a fome desde o fim das obras; e a proteção das terras indígenas, sem a qual o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem assolaram quase todos os territórios atingidos pela construção e operação da UHE Belo Monte.

Consequências dessas inviabilidades atingiram de modo brutal terras indígenas que se tornaram as mais desmatadas do país nos últimos anos, como a Trincheira-Bacajá, do povo Xikrin, a Cachoeira Seca, do povo Arara, Apyterewa, do povo Parakanã, e a TI Ituna Itatá, onde há registro de grupos isolados em risco de genocídio.

É forçoso reconhecer que, por ter avançado sem as condições mínimas de viabilidade socioambiental, a UHE Belo Monte tornou-se um projeto causador de ecocídio e etnocídio, e vetor persistente da devastação da floresta amazônica desde que se instalou no Xingu.

As remoções das famílias que viviam nas margens e ilhas do Xingu alagadas pelo reservatório da hidrelétrica não respeitaram seus modos de vida, impondo deslocamentos compulsórios sem avaliação adequada e negociação justa. Muitas famílias ribeirinhas foram deslocadas para longe do rio, na periferia de Altamira e em outros ambientes urbanos, sem moradia digna. Perderam, assim, seus modos de vida, meios de subsistência, laços de reciprocidade e autonomia. Resultados desta medida são os altíssimos níveis de violência urbana e suicídios de jovens na cidade de Altamira.

Os impactos sobre a segurança alimentar das populações ribeirinhas e indígenas habitantes de toda a área de influência direta e indireta do empreendimento hidrelétrico de Belo Monte foram detectados já em 2013, durante a fase de construção da usina. Desde então, estes impactos vêm se agravando, sobretudo com o estabelecimento do reservatório pelo barramento do rio Xingu em 2015. Hoje, os moradores ribeirinhos consomem, em média, 60% menos peixe do que consumiam em 2010. No caso dos povos indígenas Juruna e Arara, cujos modos de vida e territórios sofrem impactos severos causados pelo desvio das águas da VGX, estes impactos ferem, mais uma vez, a Constituição Federal.

A imposição, a partir de 2020, de um hidrograma que implica no desvio de mais de 70% da água da VGX para suprir a geração de energia, deixou um trecho de mais de 130 km do rio em uma condição de seca semi-permanente, tornando a situação ainda mais crítica para os ecossistemas e povos que dependem do Xingu para existir e se alimentar. Assim, este hidrograma impõe de forma contínua o impacto de secas históricas, que antes ocorriam naturalmente somente em intervalos de décadas, provocando impactos sobre os ambientes aquáticos que são praticamente impossíveis de mitigar ou compensar. Acrescenta-se que tais eventos de seca estão projetados para ocorrerem de forma mais intensa e mais frequente na bacia do Xingu nas décadas que virão, devido ao efeito combinado da crise climática e do desmatamento crescente. Desta forma, a operação da UHE Belo Monte também deverá ser impactada pela mudança do regime hídrico do rio Xingu e intensificar os já severos impactos nos sistemas socioecológicos da VGX.

O volume de água desviada mês a mês para geração de energia elétrica, definido pela empresa operadora, a Norte Energia, e denominado paradoxalmente de “Hidrograma de Consenso”, em nenhum momento foi acordado com os ribeirinhos e povos tradicionais que vivem historicamente nesse trecho da VGX. A aprovação do hidrograma pelo Ibama se deu à revelia do corpo técnico da instituição, o qual se manifestou contrário à proposta do hidrograma devido aos impactos causados nos ecossistemas aquáticos e alagáveis da região.

Esse hidrograma implica na produção de energia elétrica com altíssimo custo socioambiental, e também vem sendo questionado pelas comunidades ribeirinhas e indígenas e pela comunidade científica, pois inviabiliza a manutenção dos processos ecológicos que sustentam a biodiversidade, a produtividade pesqueira e os modos de vida das populações tradicionais da VGX, ao impor a partilha desproporcional da água do Xingu.

Os impactos socioambientais decorrentes da aplicação de tal hidrograma superam qualquer benefício mencionado acerca da energia hidrelétrica, tais como o seu carácter renovável e a baixa emissão de gases de efeito estufa. Destaca-se ainda que esses eventuais benefícios da hidreletricidade produzida nos rios amazônicos têm sido questionados por pesquisas científicas. A empresa concessionária Norte Energia tem sido desafiada publicamente a demonstrar quais critérios ecológicos foram utilizados na proposição de tal hidrograma, mas a sociedade permanece sem resposta.

Aparentemente, o volume de água remanescente na VGX representa apenas o excedente, ou seja, a água que “sobra” após o desvio da água necessária para que as turbinas operem na capacidade desejada pela empresa. Esse hidrograma não respeita as condições mínimas para manutenção da vida nos ambientes aquáticos e alagáveis e nem as necessidades dos moradores indígenas e ribeirinhos da VGX, que dependem da conservação de tais ecossistemas.

Os ciclos anuais de enchente e vazante proporcionam o alagamento periódico de planícies marginais e ilhas e geram ampla disponibilidade de habitats para plantas e animais. Esses habitats proporcionam gigantesca oferta de alimento (folhas, flores, frutos, invertebrados etc.) para a fauna dos rios e também ambientes adequados para a reprodução de várias espécies de interesse direto aos modos de vida das populações humanas da VGX. Esses ambientes, juntamente com sua biodiversidade e bioprodutividade, vêm sendo progressivamente reduzidos e desconfigurados com a implementação do hidrograma para geração de energia, efeito esse que tende a se agravar com o tempo. Diversas espécies de peixes endêmicos das corredeiras do Xingu na região da Volta Grande devem ser extintas, caso haja a manutenção do hidrograma.

Dia após dia, acumulam-se evidências de que os impactos socioambientais provocados pela construção e operação da UHE Belo Monte são mais numerosos, muito mais intensos e danosos do que aqueles previstos no EIA/RIMA. Isso impõe a necessidade de revisão do hidrograma ora em uso, bem como dos programas de mitigação desses impactos.

Cabe ainda mencionar a possível instalação na VGX de um projeto de extração de ouro, a ser operado pela mineradora canadense Belo Sun. Esse projeto inclui a construção de uma planta de beneficiamento e barragem de rejeitos tóxicos às margens da VGX, cujos impactos ambientais vêm a se somar aos severos e ainda incompletamente conhecidos impactos da UHE Belo Monte.

A nosso ver, é obrigação de qualquer governo efetivamente comprometido com a conservação da Amazônia e com o combate à crise climática reconhecer os problemas causados pela UHE Belo Monte e reparar os danos e impactos provocados, que agravam a desigualdade social na região. Também é dever do Estado investigar, julgar e punir todos os envolvidos nesses crimes e injustiças.

Dessa forma, este grupo de pesquisadores independentes, atuante em instituições de pesquisa do mais alto nível, majoritariamente sediadas na região amazônica, juntamente com os pesquisadores indígenas e ribeirinhos que realizam o monitoramento ambiental autóctone participativo na VGX, vêm por meio desta carta demandar máxima atenção ao caso da UHE Belo Monte. Entendemos que sua eleição para um terceiro mandato representa uma oportunidade crucial para corrigir parte dos problemas causados pela construção e operação da UHE Belo Monte.

Demandamos que o hidrograma para a operação da UHE Belo Monte seja elaborado por avaliação técnica, independente e isenta, com participação dos ribeirinhos e indígenas, conhecedores dos ciclos ecológicos na região, para que se garanta a manutenção dos processos socioecológicos da Volta Grande do Xingu, incluindo a cultura, a dignidade e a soberania alimentar dos seus habitantes ancestrais.

Recomendamos também que o hidrograma seja estabelecido de forma gradativa, respeitando o Princípio da Precaução, os modos de vida e a soberania alimentar dos habitantes da VGX, e que seja produto de um processo genuinamente participativo.

Acreditamos que não há outra opção democrática e prudente a não ser priorizar a integridade do ecossistema do Xingu, patrimônio brasileiro de relevância global, dos povos que dele vivem e o protegem, em vez de interesses privados. Dessa forma, chegaremos à máxima produção de energia possível que ainda garanta a manutenção do sistema socioecológico da VGX.

Também recomendamos que seja criado um conselho deliberativo para garantir um processo democrático e transparente de monitoramento ambiental, e que os Programas Ambientais sejam conduzidos pelas associações indígenas e ribeirinhas, ou com ampla participação dessas entidades, e não exclusivamente por empresas de consultoria atuantes sob demanda exclusiva dos empreendedores.

Senhor presidente, esperamos que o novo governo faça jus aos compromissos assumidos publicamente em seu discurso histórico durante a COP27 no Egito e ao acordo celebrado na 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (COP15), realizada em Montreal, no Canadá. É preciso garantir a conservação do meio ambiente no Brasil, especialmente na Amazônia, ao lado de um desenvolvimento que seja de fato justo e equitativo em seus aspectos socioambientais, como forma definitiva de proporcionar caminhos seguros rumo a um futuro promissor para os brasileiros e para a humanidade.

Ouça as populações tradicionais do rio Xingu e a comunidade científica, e interceda para que os impactos da UHE Belo Monte possam ser adequadamente mitigados. Isso passa necessariamente pela desintrusão, demarcação e efetiva proteção territorial de todas as TIs afetadas por Belo Monte, pelo cumprimento rigoroso de todas as condicionantes socioambientais, pela revisão do hidrograma da VGX e pelo tratamento digno às famílias atingidas pela UHE Belo Monte.

Altamira, 27 de novembro de 2018: vista da Transamazônica da barragem onde funciona a principal casa de força da hidrelétrica de Belo Monte. Foto: Lilo Clareto/Amazônia Real

Assinam a carta:

Juarez Carlos Brito Pezzuti
Professor Titular da Universidade Federal do Pará

Jansen Alfredo Sampaio Zuanon
Pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa, Manaus, Amazonas)

Priscila F. M. Lopes
Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Camila C. Ribas
Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa, Manaus, Amazonas)

Helena Palmquist
Antropóloga, assessora do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI)

Cristiane Costa Carneiro
Bióloga, assessora do Ministério Público Federal em Altamira, Pará

Janice Muriel F. L. Cunha
Professora do Instituto de Estudos Costeiros da Universidade Federal do Pará (Bragança)

Rodolfo Salm
Professor da Universidade Federal do Pará (FCB Altamira)

André Oliveira Sawakuchi
Professor Associado do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo

Marcelo Camargo
Geólogo, mestre pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo

Josiel Juruna
Coordenador do Monitoramento Indígena da Volta Grande do Xingu

TAGS

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA