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DESEQUILÍBRIO AMBIENTAL: O PREFEITO GELSON LUIZ DILL (SEGUNDO À DIR.) E O SECRETÁRIO JOÃO MARIA DOS SANTOS (PRIMEIRO À ESQ.) REZAM E PLANTAM MUDAS DE ÁRVORES DE ACÁCIA, BRINCO-DE-ÍNDIO E IPÊ, ENQUANTO DEFENDEM O SEQUESTRO DE UMA ÁREA DE FLORESTA EQUIVALENTE A DUAS SÃO PAULO. FOTO: AVENER PRADO/SUMAÚMA

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“Pessoal, vamos começar, porque o sol está esquentando”, grita João Maria dos Santos, um homem corpulento, de pele bronzeada e fartos cabelos pretos que comanda a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Novo Progresso. São apenas 8h30 da manhã de quarta-feira, 5 de junho. Mas, no município que é o quinto colocado entre os que mais desmataram a Floresta Amazônica entre 2008 e 2023, o sol que castiga a pele faz desconfiar dos termômetros que registram “apenas” 27 graus de temperatura. Atendendo à ordem do secretário, o grupo de cerca de 20 pessoas, a maioria delas de funcionários públicos, se reúne em torno do prefeito Gelson Luiz Dill, do MDB. Ele vai plantar uma dezena de mudas de árvores numa pracinha em Canaã, um bairro de casas pequenas e ruas de chão batido a 2 quilômetros do centro, para celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente.

“A cada dia que passa parece que o sol está vindo com um pouco mais de grau. É uma realidade”, admite Dill, de 52 anos, um paranaense de cabelos brancos, pele clara que se avermelha sob o sol, que buscará a reeleição em outubro. Para amainar o calorão, um caminhão-pipa molhou as ruas por todo o trajeto percorrido pelo prefeito e sua equipe. Em meia hora, a água já penetrou na terra ressecada ou simplesmente evaporou. Dill recebe a palavra após um pastor evangélico “orar por esta gestão” e explica que uma das espécies plantadas, a Acácia, foi escolhida pelo crescimento acelerado, garantindo “sombra o mais rápido possível”. Em seguida, avisa que a reportagem de SUMAÚMA acompanha a solenidade e passa a tratar do tema que há anos mobiliza Novo Progresso e região: reduzir em 27% o tamanho da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim.

Infográfico: Ariel Tonglet/SUMAÚMA

A Flona do Jamanxim, como a área é conhecida, foi criada em 2006. Tem 1,3 milhão de hectares, ou 13 mil quilômetros quadrados – como comparação, a cidade de São Paulo tem pouco mais de 1,5 mil quilômetros quadrados. Faz parte de um conjunto de unidades de conservação planejado como uma contrapartida ambiental ao asfaltamento do trecho de mais de 700 quilômetros da BR-163, que corta o oeste do Pará da divisa com Mato Grosso até o entroncamento com a Rodovia Transamazônica. A pavimentação, só concluída em 2019, era um desejo dos latifundiários de soja mato-grossenses, que queriam um caminho confiável para exportar sua produção pelo Porto de Miritituba, no Rio Tapajós, que é o ponto final da via asfaltada. Até então, as nuvens de poeira da estrada de chão prejudicavam a visibilidade e forçavam baixas velocidades no verão; no inverno, o obstáculo eram os atoleiros causados pelas chuvas. A equipe de Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente no segundo mandato de Lula, temia que a expectativa da chegada do asfalto multiplicasse a cobiça de grileiros e madeireiros pelas terras públicas ao longo da rodovia.

Foi exatamente o que aconteceu.

Além de Novo Progresso, dois municípios cortados pela BR-163 no Pará estão na lista dos que mais desmataram a Amazônia entre 2008 e 2023: Altamira, onde  está o distrito de Castelo de Sonhos, lidera a lista; e Itaituba, sede do distrito de Miritituba, é o décimo colocado. A oeste das três cidades, em alguns pontos quase tocando a rodovia, fica a Flona do Jamanxim. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ICMBio, que administra as unidades de conservação federais, estima que havia “de 100 a 200” ocupantes nas terras públicas federais em 2006, quando elas se tornaram floresta nacional. Desde então, o número se multiplicou: há 494 registros de “fazendas” na área da Flona do Jamanxim no Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um documento autodeclaratório em que proprietários rurais informam a localização e os dados ambientais de suas terras. Mas, na Amazônia, ele é usado por grileiros como um documento que certifica os limites e a “propriedade” de áreas que na verdade são públicas.

Nas contas do prefeito Dill, os “proprietários rurais afetados pela Flona” são ainda mais gente, algo como 700 ocupantes. O termo “proprietários rurais” é um truque com as palavras: a imensa maioria desses ocupantes é de grileiros de terras públicas que entraram na área depois que foi  transformada em unidade de conservação. Os invasores são responsáveis por tornar a Flona do Jamanxim a segunda unidade de conservação mais desmatada da Amazônia desde 2008, só perdendo em destruição para a Área de Preservação Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, segundo dados do sistema de monitoramento por satélite Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Em mais de 116 mil hectares (quase 10% da área total), a floresta foi derrubada e transformada em pastagem para gado. Estima-se que pelo menos 100 mil bois e vacas sejam criados dentro da Flona do Jamanxim. Tudo indica que nenhum deles criado de acordo com as leis ambientais e de sanidade animal, já que a exploração de gado é incompatível com a proposta de uma floresta nacional e a Agência de Defesa Agropecuária do Pará, a Adepará, não aceita o registro de animais criados em terras públicas ilegalmente ocupadas por pessoas e empresas privadas.

Suplício: bois e vacas caminham na confluência de duas rodovias destruidoras, a BR-163 e a Transamazônica. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Mas os invasores são gente poderosa, admirada na região pela “vocação empreendedora” e bem relacionada politicamente. Assim, quando o ICMBio começou, em 16 de maio, uma operação para apreender gado criado ilegalmente na Flona do Jamanxim, a reação foi imediata e bem organizada. Ainda que a operação atenda a uma recomendação do Ministério Público Federal, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), telefonou à ministra Marina Silva e lhe pediu que recebesse uma comitiva liderada pelo prefeito Dill, que viajou a Brasília para fazer pressão política. Em nota, o governo do Pará disse ter “compromisso com o diálogo e, por isso, liderou a articulação entre representantes da União e o setor produtivo local” de Novo Progresso, mas que “apoia integralmente a ação federal de retirada do gado ilegal das fazendas dentro da Floresta Nacional do Jamanxim”.

Uma frente ampla – do PT ao Podemos – contra a floresta

O grupo formado por líderes de associações de “produtores rurais” e políticos da região chegou ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima em 22 de maio, escoltado por parlamentares que vão da esquerda petista à extrema direita bolsonarista. Importante prestar atenção na comitiva: os deputados federais Airton Faleiro, do PT, José Priante e Henderson Pinto, do MDB, o senador Zequinha Marinho, do Podemos, e o ex-deputado federal José Geraldo Torres da Silva, o Zé Geraldo, atualmente um dos vice-presidentes nacionais do PT. Priante é coordenador da bancada do Pará na Câmara dos Deputados e próximo da cúpula da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará, a Faepa. A entidade tem em seus quadros vários dos “produtores rurais” da região de Novo Progresso.

Dill e sua turma defenderam, perante Marina e o presidente do ICMBio, Mauro Pires, a aprovação de um projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados pelo então presidente Michel Temer – que, como o prefeito de Novo Progresso e o governador do Pará, é do MDB. Ele propõe amputar uma área de quase 348 mil hectares – mais de duas vezes o tamanho da cidade de São Paulo – da Flona do Jamanxim. Ela passaria a ser uma Área de Proteção Ambiental, ou APA, um tipo de unidade de conservação em que um ocupante privado pode pleitear  com o governo federal a entrega do título de propriedade da terra que desmatou. Em resumo: o sonho dourado de todo grileiro.

Frente ampla contra a floresta: em sentido horário, a partir do alto, os deputados Airton Faleiro (PT), José Priante (MDB), Henderson Pinto (MDB), o senador Zequinha Marinho (Podemos) e o ex-deputado Zé Geraldo (PT). Fotos: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados, Mario Agra/Câmara dos Deputados, Jane de Araújo/Agência Senado, Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

O projeto de lei, de número 8.107/2017, nunca andou, e até hoje não teve sequer um relator definido. Temer enviou o texto à Câmara após vetar, naquele ano, uma medida provisória dele mesmo que também reduzia a Flona, irritando a bancada paraense. Priante tinha sido o relator dela na Câmara. Em resposta ao veto, grileiros e madeireiros fecharam a BR-163 entre Castelo de Sonhos e Novo Progresso, forçando o então presidente a propor ao Congresso a redução da Flona do Jamanxim.

Para se ter uma ideia da potencial devastação dessa mudança de categoria, a unidade de conservação mais desmatada da Amazônia é uma APA, a do Triunfo do Xingu. Não é muito maior que a Flona do Jamanxim, mas 430 mil de seu 1,68 milhão de hectares de floresta foram derrubados entre 2008 e 2023 – 26% da área total. Se apenas a notícia do asfaltamento da BR-163 causou uma invasão de grileiros, com cerca de 100 mil bois e vacas, é fácil calcular o que aconteceria com esse pedaço da Floresta Amazônica se fosse dada a garantia de converter a terra pública roubada em propriedade privada legalizada.

“Claro que é justa”, respondeu Dill, questionado por jornalistas em Brasília, a respeito da proposta que apresentou a Marina. “Não é roubo de terra pública. A colonização do Brasil foi feita assim. Onde é sua casa, hoje, [um dia] alguém foi lá, desmatou e fez a ocupação.” Dias depois, sob o solão das 8h30 da manhã em Novo Progresso, o prefeito deu um breve relato daquela reunião e da proposta que fez à ministra. Em seguida, ajoelhou-se e plantou uma muda de Acácia para homenagear o meio ambiente.

‘Não é grilagem, é modelo de ocupação’

“De que adianta uma floresta se ela não tem nenhuma finalidade econômica?”, questiona Gelson Dill, cerca de uma hora depois, já em seu gabinete. Numa das paredes da sala, mantida fresca pelo ar-condicionado sempre ligado, destaca-se uma montagem com as bandeiras do Brasil e do Pará. Devidamente emoldurado, o tecido traz os autógrafos dos políticos que ele admira e por quem faz campanha: Jair Bolsonaro e Helder Barbalho. O do governador é precedido por uma dedicatória: “Um grande abraço aos amigos do Progresso”.

Escoltado: o prefeito Gelson Dill em seu gabinete. Ao lado, o quadro com as bandeiras autografadas por Jair Bolsonaro (PL) e Helder Barbalho (MDB) que decora o ambiente. Fotos: Avener Prado/SUMAÚMA

Progresso é como era conhecida a localidade surgida no início dos anos 1980 de colonos atraídos à região pela abertura da BR-163. O site oficial da Câmara de Vereadores registra que o surgimento da cidade “se deve à construção da Rodovia Santarém-Cuiabá, que em 1973 rasgou e desmatou a Floresta Amazônica”. Em 1983, porém, era apenas “um pequeno povoado, com uma igreja e um campo de futebol”. Tudo mudou em 1984, com a descoberta de ouro na região, “atraindo milhares de pessoas à localidade”.

Foi o garimpo de ouro que fez Novo Progresso, então um distrito de Itaituba, a capital da lavagem de ouro na Amazônia, crescer. Em 1991, o lugarejo se tornou município, adicionando o termo “Novo” ao nome para se diferenciar de uma cidade gaúcha. Tinha por volta de 5 mil moradores. “Me considero um filho da BR-163”, diz o prefeito Dill. Ele tinha 3 anos quando, em 1975, sua família deixou o oeste do Paraná, no Sul do Brasil, subindo a rodovia rumo a Mato Grosso. Pararam na cidade de Sorriso antes de se mudarem para a pequena Nova Guarita. Ali, Dill foi vereador por dois mandatos pelo PDT.

Em 1998, ele fez as malas rumo a Novo Progresso, no Pará, atrás de terras para ocupar. Explorou madeira numa área pública que hoje integra o Parque Nacional do Jamanxim, outra unidade de conservação criada para amenizar os impactos ambientais da BR-163, localizada ao norte da Flona, já no município de Itaituba. Ali, “constituiu propriedade” em 2002. Ele diz que pleiteia, com dois irmãos, a regularização de 2,5 mil hectares de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. O tamanho não é casual: trata-se da maior área que pode ser titulada, pelo governo federal, sem autorização do Congresso Nacional. Não ficou claro, contudo, se os 2,5 mil são a soma dos lotes ou se se trata de três lotes contíguos desse tamanho – o que, na prática, pode configurar um latifúndio e é uma estratégia habitual na Amazônia para grilar porções enormes de terras. Questionado a respeito, o prefeito não respondeu. O pleito dos Dill é também o de muita gente ao longo da BR-163: consultado por SUMAÚMA, o Incra informou que há 1,5 mil pedidos de regularização ao longo do trecho de 700 quilômetros da rodovia entre a divisa de Mato Grosso e Pará e o entroncamento com a Transamazônica. Na conta do Incra não estão os lotes sobrepostos a unidades de conservação como a Flona do Jamanxim.

Gelson Dill já foi autuado três vezes pelo ICMBio por desmatar ilegalmente cerca de 200 hectares em outra unidade de conservação da região, o Parque Nacional do Jamanxim. As multas, somadas, superam os 2,4 milhões de reais. Ele também teve uma área de 89 hectares embargada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama. Em 2020, na campanha em que se elegeu prefeito, declarou à Justiça Eleitoral a “posse” de duas fazendas localizadas no Parque do Jamanxim, em que criava 2.473 bois e vacas – avaliados, por ele, em 1,9 milhão de reais. “Eu não considero isso grilagem, porque foi o modelo de ocupação que teve na Amazônia praticamente inteira”, alega o prefeito. “São pessoas que foram chamadas para cá, para ocupar um pedaço de chão.”

Dill repete uma estratégia propositadamente empregada pelos grileiros de Novo Progresso para criar confusão a seu favor. A ditadura empresarial-militar (1964-1985) de fato convocou gente – principalmente do Nordeste e do Sul – para colonizar a região da Transamazônica. Era parte de uma iniciativa chamada Projeto Integrado de Colonização, o PIC, usado pela ditadura para reduzir a pressão pela reforma agrária no Sul do Brasil e, ao mesmo tempo, ocupar a Amazônia (casa de povos Indígenas, Ribeirinhos e Quilombolas, além de milhares de outras espécies) sob o lema “Integrar para não entregar”. Mas o PIC parou 200 quilômetros ao norte de Novo Progresso, no vale do Rio Aruri, durante a década de 1970.

Cena urbana: homens descansam à beira da BR-163, no trecho que corta Novo Progresso, enquanto um caminhão graneleiro segue rumo ao Porto de Miritituba. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Em outra frente, limitada a Mato Grosso, empresas privadas estabeleceram cidades e titularam terras agrícolas a mando da ditadura. Por isso, municípios como Sinop, Confresa, Colniza ou Colíder têm o nome de suas colonizadoras. Em Novo Progresso, ouve-se o tempo todo que os “proprietários rurais” do município chegaram ali para atender ao chamado de “Integrar para não entregar”. Só que não é verdade. Quando a corrida por terras se acirrou em Novo Progresso, em fins dos anos 1980 e começo dos 1990, a ditadura e o PIC já eram passado.

“A ocupação de colonos, principalmente sulistas, que ocorreu nessa porção da BR-163, deu-se totalmente na forma de colonização espontânea. Ou seja, fora de programas oficiais de colonização. Entretanto, de alguma forma, a ideia de que 10 quilômetros de cada lado da estrada eram destinados à instalação de colonos esteve presente na ocupação da região de Novo Progresso”, escrevem os pesquisadores Mauricio Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon em “Dono É Quem Desmata – Conexões entre Grilagem e Desmatamento no Sudoeste Paraense”, um longo estudo sobre a região publicado em 2017 pelo Instituto Agronômico da Amazônia.

É basicamente para defender os interesses de grileiros de terras públicas que se faz política em Novo Progresso. “Quando me mudei para cá, não queria mais mexer com política. Mas em quatro anos já me chamaram para a diretoria do Sindicato Rural, onde estou há 20 anos. E lá me falaram: por que você não coloca seu nome à disposição [para as eleições]?”, afirma Dill. Dias antes, em Brasília, após a reunião com Marina Silva, ele deixou claro o que o levou a mudar de ideia: “A função que estou exercendo, como prefeito de Novo Progresso, é lutar por todos os produtores da região da BR-163”.

Fogo inimigo: a ministra Marina Silva (de costas, no centro) recebeu a comitiva liderada pelo prefeito Gelson Dill, em Brasília, ‘a pedido’ do governador Helder Barbalho (MDB). Fotos Ascom Novo Progresso e Marco Santos/Agência Pará

Não que a cidade não tenha problemas. Com 33.638 habitantes, segundo o Censo 2022, Novo Progresso tem apenas 1,4% de seus domicílios com coleta de esgoto e 8% das ruas com arborização adequada (esses números são de 2010, pois o IBGE ainda não tabulou os do último levantamento). Com 15,45 mortes a cada mil crianças nascidas vivas, ocupa a 1.808ª posição no ranking nacional de mortalidade infantil – o Brasil tem 5.570 cidades. Entre as 144 do Pará, estava em 56º lugar.

Um levantamento chamado Índice de Progresso Social (IPS) da Amazônia, produzido pelo Imazon para comparar a qualidade de vida nos municípios do bioma a partir de 12 critérios sociais e ambientais, conclui que as localidades com mais desmatamento recente têm também os piores desempenhos. “Os 20 municípios com maior desmatamento recente representam mais de 50% da área desmatada no período [e] a grande maioria tem um IPS muito baixo”, diz o estudo mais recente, de 2023. Nele, Novo Progresso ocupa a posição 637 entre os 772 municípios da Amazônia Legal. Pontua mal em critérios como segurança pública, evasão escolar, abastecimento de água e emissões de CO2. A rodovia asfaltada, celebrada localmente como vetor de desenvolvimento, não ajudou. “Municípios ao longo da rodovia BR-163 no Pará possuem baixas pontuações” no que o levantamento classifica como “Necessidades Humanas Básicas – Nutrição e Cuidados Médicos Básicos, Água e Saneamento, Moradia e Segurança Pessoal”.

Sem progresso: vista aérea da capital do ‘Dia do Fogo’, que ostenta um dos piores índices de qualidade de vida da Amazônia, segundo estudo do Imazon. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Desembargador e juíza decidem contra a floresta

A Fazenda Ferradura ocupa pouco menos de 1,9 mil hectares desmatados dentro da Floresta Nacional do Jamanxim. Ela é o epicentro da operação realizada pelo ICMBio para retirar gado criado ilegalmente na unidade de conservação, que começou em maio com uma força-tarefa de 60 agentes, formada também pela Força Nacional, pela Polícia Rodoviária Federal e pela Agência de Defesa Agropecuária do Pará, a Adepará.

Em Novo Progresso, é costumeiro ouvir que a Ferradura “pertence” a José Pereira. Mas a área, embora tenha 64 quilômetros de cercas de arame farpado, currais, casa e banheiro para vaqueiros e uma antena de vários metros de altura erguida para acessar a internet, não tem registro no Cadastro Ambiental Rural, o CAR. Ali, agentes do ICMBio encontraram 2.058 bois e vacas criados ilegalmente. Por causa dos brincos pregados nas orelhas dos animais, o órgão ambiental suspeita que eles seriam vendidos a frigoríficos em nome de outra propriedade, localizada fora da Flona, chamada Arara Azul.

Os 2.058 bois e vacas pertencem a Rodrigo da Cruz Pereira, filho de José Pereira. Não tinham o obrigatório registro sanitário na Adepará. Mas, antes que o ICMBio pudesse apreendê-los, Rodrigo obteve uma liminar concedida pelo desembargador Eduardo Filipe Alves Martins, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF1. Na decisão, de 22 de maio passado, Rodrigo foi nomeado “fiel depositário” do gado que criava irregularmente em área pública. Com isso, em poucas horas ele retirou os animais da Ferradura, sem que os agentes pudessem fazer nada. O desembargador é filho do ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, que chegou a ser cogitado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL). Em sua posse no TRF1, em março de 2024, Eduardo Martins prometeu que seu gabinete seria “a embaixada da advocacia”. SUMAÚMA pediu duas vezes uma entrevista ao desembargador, para entender o que motivou sua decisão. Ele ignorou os pedidos.

A boiada passou: o desembargador Eduardo Martins e a Fazenda Ferradura, instalada dentro da Floresta Nacional do Jamanxim, onde o gado ilegal não pôde ser apreendido graças a sua decisão. Fotos: Ruy Baron/BaronImagens e Avener Prado/SUMAÚMA

Vizinhas de cerca da Ferradura, as “fazendas” Búfalo Branco e Cancioneiro estão inscritas no CAR em nome de Sandra Mara Silveira e somam quase 4 mil hectares de terras contínuas – e desmatadas. Apesar de terem nome e registro no Cadastro Ambiental Rural, são na verdade áreas públicas griladas dentro da unidade de conservação. Isso é possível porque o CAR é autodeclaratório – o que quer dizer que o sistema permite a qualquer um se declarar “dono” de qualquer pedaço de chão do país. As terras em nome de Sandra no CAR  foram embargadas 11 vezes pelo ICMBio entre 2015 e 2022. Segundo um levantamento da Agência Pública, foi ela quem mais recebeu multas ambientais por destruir a vegetação dentro de todas as unidades de conservação da Amazônia entre 2009 e 2021 – são, ao todo, 96 milhões de reais em autuações.

Os agentes ambientais suspeitam que uma outra área, de mais 4,1 mil hectares (2,9 mil dos quais já desmatados e embargados) e contígua às “fazendas”, mas sem inscrição no CAR, também seja dela e do marido, Márcio Piovezan Cordeiro. O ICMBio investiga se os 3,5 mil bois e vacas de Sandra, criados sem registro sanitário, circulam livremente entre as duas “fazendas” e a área vizinha. Mas esse gado também não foi apreendido, graças a outra ordem judicial, esta da juíza federal de primeira instância Lorena de Sousa Costa, da comarca de Itaituba. A juíza não respondeu ao pedido de entrevista de SUMAÚMA.

“Houve erro de procedimento do ICMBio no processo administrativo”, argumenta o advogado Pedro Henrique Gonçalves, que defende Sandra e Rodrigo na Justiça. “Faltou intimação correta e [faltou] o devido processo legal, com direito à defesa”, ele sustenta – e o argumento foi acolhido por uma juíza federal e um desembargador de Tribunal Federal. O órgão ambiental, por sua vez, refuta os argumentos. “Em todos os autos lavrados contra os mencionados, foi seguido o devido processo legal, com direito a ampla defesa e cientificação [notificação] das autuações”, afirma, em nota enviada a SUMAÚMA. “O ICMBio tem feito um trabalho de muita acuidade, em propriedades – propriedades não, ocupações – que são irrefutavelmente ilegais, não têm Cadastro Ambiental Rural, não têm regularidade sanitária e têm embargos transitados em julgado [na esfera administrativa]”, disse a ministra Marina Silva após a reunião com o prefeito Gelson Dill em 22 de maio. SUMAÚMA pediu ao advogado uma entrevista com os suspeitos de grilagem de terras públicas, mas ouviu que eles não falariam.

“A pressão pela recategorização das unidades de conservação a fim de tornar as regras para o uso da terra mais flexíveis tem sido um mecanismo cada vez mais comum na Amazônia e faz parte de uma estratégia para buscar legitimar ocupações ilegais, sem qualquer título legítimo de domínio, acompanhadas, em sua grande parte, de desmatamento de extensas porções de floresta”, afirma a procuradora da República Isadora Chaves Carvalho. Ela acompanha, pelo Ministério Público Federal do Pará, a operação na Flona do Jamanxim e atribui a ousadia dos grileiros em Novo Progresso “ao próprio processo histórico de ocupação desordenada da Amazônia” e à “inoperância do poder público em gerir suas próprias terras” – ou seja, tanto unidades de conservação como a Flona do Jamanxim quanto as terras públicas sem destinação, alvo principal da grilagem. “Revisar os limites de um espaço protegido não é a solução dos problemas. Ao contrário disso, pode servir como um estímulo para mais invasões na região, já que vai servir para premiar ocupações clandestinas e a grilagem de terras públicas, sem contar os aspectos sociais negativos, como a maior pressão sobre os povos da floresta”, enfatiza.

Enquanto o governo Lula e o Ministério Público Federal trabalham para derrubar as decisões, os grileiros aproveitam para retirar o gado da região da Flona. Se, por um lado, isso garante que a ocupação ilegal da área cesse (ao menos momentaneamente), por outro frustra um dos principais objetivos de operações como a realizada pelo ICMBio na Flona do Jamanxim – descapitalizar criminosos ambientais. Enquanto aguardam, os agentes do ICMBio trabalham fazendo o pouco que a Justiça não impediu, como destruir as cercas das fazendas ilegais dentro da Flona.

Mesmo assim, são ameaçados. Em 13 de junho, um vídeo que circulou pelos celulares de moradores de Novo Progresso causou furor em sites de notícias da cidade. Na gravação, feita em parte dentro de uma caminhonete que aparenta ser nova (e cara), um homem confronta um agente da Força Nacional e lhe diz que “é melhor vocês voltarem e se informarem” sobre a decisão judicial da juíza de Itaituba antes de derrubar as cercas da “fazenda” Cancioneiro. Trata-se de Márcio Piovezan Cordeiro. SUMAÚMA apurou que, no dia seguinte, ele e Sandra registraram um boletim de ocorrência contra o ICMBio, entregue pessoalmente aos agentes, na Fazenda Ferradura, pelo delegado da Polícia Civil de Novo Progresso, Marcelo Diniz Santos Filho.

Dupla face: a pecuarista Sandra Mara Silveira, dona de gado criado ilegalmente na Flona do Jamanxim, e o delegado Marcelo Diniz Santos Filho, que entregou boletim de ocorrência a agentes do ICMBio. Reproduções: Facebook e TV Progresso

Seja como for, quando a operação terminar, é bastante provável que as áreas desmatadas na Flona do Jamanxim voltem a ser invadidas pelos grileiros. Para isso, eles podem contar com a falta de estrutura do ICMBio na região. O órgão não tem posto em Novo Progresso. A unidade mais próxima é a Unidade Especial Avançada de Itaituba, distante 397 quilômetros pela BR-163. A equipe de 77 pessoas – das quais apenas 19 são servidoras de carreira – é responsável por vigiar 12 unidades de conservação que se espalham pelo oeste do Pará, uma pequena porção do leste do Amazonas e somam mais de 9 milhões de hectares. É uma área comparável ao tamanho de Portugal, com a diferença de que as unidades não são contínuas e têm acesso difícil. Para piorar, servidores dos órgãos ambientais entraram em greve por tempo indeterminado em 17 estados (inclusive no Pará) a partir de 24 de junho, após quase seis meses esperando que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentasse uma proposta satisfatória de reajuste salarial e reestruturação das carreiras. O governo recorreu à Justiça – com sucesso – para que a paralisação fosse declarada ilegal, mas uma parcela dos servidores segue parada.

Matéria do jornal ‘Folha do Progresso’ de 10 de julho: grileiro promete incêndio como ‘vingança’ ao combate contra o crime ambiental

No início de julho, um jornal de Novo Progresso publicou matéria em que um grileiro não identificado ameaçava atear fogo à Flona do Jamanxim como retaliação às ordens de retirada do gado ilegal emitidas pelo ICMBio. Seria um novo “Dia do Fogo”, nome pelo qual ficou conhecido o evento de agosto de 2019 em que ruralistas de Novo Progresso, empoderados pelo governo de Jair Bolsonaro, incendiaram vários trechos de floresta ao longo da BR-163. “Eu vou incentivar para botar fogo em tudo”, disse o grileiro ao jornal Folha do Progresso. “O plano é esse. Vamos avançar com essa ideia e o governo que apague – não estão lá no Pantanal? –, que venha proteger a floresta deles.”

Mauricio Torres, coautor do estudo “Dono É Quem Desmata”, explica a lógica da grilagem: “Na Amazônia, as unidades de conservação e Terras Indígenas são as grandes barreiras contra o desmatamento. Basta olhar para as imagens de satélite para ver que o avanço da devastação não obedece a critérios topográficos, de qualidade de solo ou qualquer outro elemento técnico, mas se esgueira por entre as áreas protegidas, por terras públicas ainda não destinadas. Quando uma área pública é destinada, tornando-se unidade de conservação ou Terra Indígena, não é mais possível que essa deixe de pertencer ao patrimônio público para ser privatizada, apropriada por um particular e integrada ao mercado de terras”. Cientista social, Torres é professor e pesquisador na Universidade Federal do Pará, onde há anos estuda os conflitos territoriais no estado, tema de sua tese de doutorado. “O problema da Flona do Jamanxim é que o governo federal já sinalizou a possibilidade de reduzi-la. As terras, nesse caso, voltariam a ser passíveis de apropriação privada, o que gera uma corrida pelo controle dessas áreas. Sabemos que o desmatamento é o principal instrumento de apropriação e controle da terra por grileiros”, explica. Ele acompanhou SUMAÚMA na viagem a Novo Progresso para esta reportagem.

Questionada a respeito, a assessoria de imprensa do ICMBio respondeu que “a Flona do Jamanxim diferencia-se de outras [unidades do tipo] principalmente pelo histórico de ocupação e pelo perfil dos ocupantes, que vieram do Sul do Brasil estimulados por programas federais da época de ocupação da Amazônia sob o slogan ‘Integrar para não entregar’”. Ou seja, o próprio órgão ambiental compra a versão difundida pelos grileiros. “Parte dos ocupantes da Flona Jamanxim não teve interesse na criação da unidade de conservação, criando dificuldades na instrução dos processos de regularização fundiária, não participando do conselho consultivo e, em alguns casos, estimulando a grilagem de terras e desmatamento na região. Esses grupos possuem forte articulação política e bons advogados, que buscam na Justiça garantir sua permanência, mesmo contrariando a legislação ambiental vigente”, afirma a assessoria. “Seguem as tratativas para a implantação de atividades sustentáveis por meio de concessão florestal na Flona do Jamanxim (via Serviço Florestal Brasileiro), num esforço do governo federal de buscar alternativas de geração de renda aliada ao desenvolvimento sustentável da região”, finaliza a nota.

Estupro: área devastada por grileiros de terras públicas para a criação ilegal de gado na Floresta Nacional do Jamanxim. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

‘Será que todo mundo aqui é idiota?’

A ousadia com que grileiros investem contra a Flona do Jamanxim é estimulada por um precedente histórico. Em outubro de 2003, primeiro ano do primeiro mandato de Lula, a pressão dos invasores de terras públicas de Novo Progresso fez com que o Ministério da Justiça aceitasse um “acordo” que tungou mais de 300 mil hectares, o equivalente a 17% do total, da área da Terra Indígena Baú, território tradicional de Indígenas Mebêngôkre, mais conhecidos entre os não Indígenas como Kayapó. A TI Baú fica à direita da BR-163 – a margem da rodovia oposta ao da Flona. Em troca, e com a chancela do Ministério Público Federal, os “fazendeiros” se comprometeram a pagar à prefeitura de Novo Progresso 120 mil reais anuais, ao longo de dez anos, valor que deveria ser investido em “benefícios” para os Indígenas.

A capitulação foi obtida com ameaças de violência. Em setembro de 2003, um grupo de mil pessoas, a maioria grileiros e garimpeiros, bloqueou o tráfego no trecho da BR-163 que corta Novo Progresso. O comércio da cidade fechou as portas e houve relatos de que homens armados foram à floresta dispostos a retirar a bala os servidores da Funai que faziam a demarcação física do território Indígena. “A vitória da pressão para reduzir a TI Baú ensinou aos grileiros que, com ameaça e violência, dá para conseguir tudo que eles querem”, afirma Mauricio Torres. “Após aquela conquista, eles definiram a Flona do Jamanxim como o alvo da vez, usando as mesmas estratégias de ação.”

Na liderança do movimento contra a TI Baú estava Agamenon Menezes, então presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, o Siprunp – foi ele, aliás, quem convidou o prefeito Gelson Dill a se juntar à direção da entidade. Menezes é autor de frases como esta, de 2008: “Será que tudo aqui é como eles [ONGs] pensam? Idiota? Burro? Ribeirinho comedor de cipó e palmito?”. O pendão à violência nunca lhe bloqueou acesso a assentos em entidades como a Federação da Agricultura e Pecuária do Pará ou a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a CNA. Atualmente padecendo de uma doença neurodegenerativa, ele deixou a presidência do Siprunp, mas segue ativo. Em junho, SUMAÚMA o procurou em sua casa em Novo Progresso. Ouviu que ele estava em Belém, capital do estado, para uma “reunião de ruralistas”. Ele é também um dos suspeitos de liderar o “Dia do Fogo”, mas nega que os incêndios tenham sido combinados.

A área extirpada da TI Baú se tornou um paraíso para a grilagem de terras e para o desmatamento. Está ali o que Torres considera “o maior desmatamento individual de que se tem registro na Amazônia nas últimas três décadas”: uma área de mais de 30 mil hectares da qual se apropriou o pecuarista Antonio José Junqueira Vilela Filho, ou AJ Vilela, também conhecido como Jotinha. Filho de um pecuarista premiado que estrela revistas do setor e ex-marido de uma designer de joias que vende para celebridades como Madonna, Jotinha vive num bairro nobre em São Paulo – por isso foi apelidado de “grileiro dos Jardins” – e raramente vai à sua “fazenda”. “Os 30 mil hectares são a soma das notificações que ele recebeu por desmatamento, de dados do Prodes e de informações georreferenciadas obtidas em campo, e fariam dele o maior desmatador individual da Amazônia desde que se iniciou o monitoramento das derrubadas”, afirma Torres. Pelo desmatamento e por outras acusações, Jotinha teve 420 milhões de reais em bens bloqueados, foi preso e é processado pelo Ministério Público Federal.

Retrato fiel: garimpo, criação de gado, exploração de madeira e plantação de soja ilustram o brasão de Novo Progresso; ao lado, caminhão transporta toras de árvores pela BR-163. Reprodução: site da Prefeitura de Novo Progresso Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Procurado, ele disse que “todos os autos de infração têm vícios e nulidades”, que a Justiça anulou as multas pelo desmatamento de 15 mil hectares e que espera que as demais também sejam extintas. Afirmou, ainda, que uma denúncia contra ele por organização criminosa nem “sequer foi aceita pelo juiz” do caso e ameaçou processar SUMAÚMA caso a reportagem viesse a “faltar com a verdade”. O Ministério Público Federal afirma que “tem ressaltado para a Justiça Federal que os danos ambientais estão claramente documentados e que há uma relação causal com as ações dos réus, e que todos os elementos de prova preexistentes são suficientes para estabelecer a ocorrência do dano ambiental, identificar os responsáveis pelo ilícito e estabelecer a relação de causa e efeito. A eventual anulação de alguma delas não invalida todo o conjunto consistente de provas”.

A advogada Soraya Saab, que defende Jotinha nos processos, diz que “Antonio não é proprietário, detentor e tão pouco possuidor de nenhum imóvel rural na área desafetada da Terra Indígena do Baú, sendo completamente falaciosas e sem qualquer fundamento ou prova as acusações promovidas pelo Ibama”. Afirmou, ainda, que “a Justiça sequer aceitou a denúncia de organização criminosa, para se ter ideia da tamanha injustiça que foi criada a partir da falsa notícia de um desmatamento de mais de 13 mil hectares que nunca existiu”. Ao todo, sete ações judiciais foram abertas como consequência da operação em que Jotinha foi autuado e preso. Ele é réu por dano ambiental, exploração de trabalho análogo à escravidão e lavagem de dinheiro. Todas aguardam julgamento na primeira instância.

Na porção da TI Baú que o governo federal retirou dos Kayapó também está o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa. Trata-se de um assentamento de pequenos agricultores organizado pelo Incra em 2006 e que é uma das poucas iniciativas de reforma agrária da região de Novo Progresso. Ainda assim, grande parte dos 150 mil hectares previstos para acomodar 300 famílias de pequenos produtores rurais foi grilada ou está sob controle de uma mineradora. Por isso, as poucas dezenas de famílias vivem espremidas numa área de apenas 8 mil hectares e ainda não receberam seus títulos.

A mineradora é a britânica Serabi Gold, que opera uma mina chamada de projeto Coringa sem licença do Incra e sem consulta aos Indígenas da TI Baú, como deveria. No caminho até o Terra Nossa, SUMAÚMA cruzou com um gigantesco caminhão carregado de minério retirado pela Serabi – veículos como esse circulam o tempo todo pelas estradas vicinais, segundo os moradores. A empresa já disse estar “completamente confortável com [sua] posição legal”, que cumpre o marco legal da mineração brasileira e opera com autorização.

Mesmo ocupando menos de 10% da área original do assentamento, os moradores do Terra Nossa relatam uma profusão de ameaças e o assassinato de quatro de suas lideranças desde 2017. Caso de Cleve Gonçalves da Silva, que todos conhecem por Tiririca, um cearense de 61 anos que foi à região quando jovem para tentar a sorte no garimpo. “Vim pra cá fugido da seca. No garimpo, peguei mais malária do que ouro. Larguei. Tem 15 anos que estou aqui no Terra Nossa”, conta, ao lado da pequena casa de madeira onde vive, erguida no lote em que planta uma roça e cria uns poucos animais para sobreviver.

Há algum tempo, uma advogada influente na região invadiu e desmatou um lote abandonado vizinho ao dele. Tempos depois, ela moveu a cerca dela para dentro da área de Tiririca. Por reclamar, ele diz ter sido espancado e em seguida levado a um posto da Polícia Militar do Pará às margens da BR-163, onde teria sido fotografado algemado. Tiririca registrou o caso num boletim de ocorrência. SUMAÚMA apurou que os policiais que teriam agredido o assentado foram transferidos de Novo Progresso. A cerca que consolidou o roubo de uma área de 90 por 400 metros, contudo, permanece.

Ameaçado: Cleve Gonçalves da Silva, o Tiririca, de pé sobre um dos mourões da cerca que invadiu o seu lote no assentamento Terra Nossa. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Também moradora do Terra Nossa, Maria Márcia Elpídia de Melo, de 46 anos, é a mais atuante na defesa dos direitos dos assentados. Por causa disso, relata seguidas ameaças de morte. “Já passaram atirando contra a minha casa”, diz. “Outra vez me perseguiram e precisei me esconder na mata para escapar.” O medo de simplesmente sumirem com ela levou-a a tatuar, no tórax, uma imagem do filho, José Rael, de 27 anos, em outubro do ano passado. No Índice de Progresso Social da Amazônia, Novo Progresso está entre os 12 piores municípios dos 772 da região quando o quesito é a segurança pública. Tiririca e Maria Márcia fazem parte de um programa estadual de proteção a defensores de direitos humanos. Raramente, contudo, recebem a visita dos agentes que devem garantir sua segurança.

É provavelmente por isso que não existem lideranças populares de destaque atuantes na cidade. A última sindicalista combativa de que se tem notícia, Ivone Alves, fechou sua organização, que representava trabalhadores rurais, quando a filha se casou com um chefe de garimpo. SUMAÚMA procurou-a em sua casa numa das principais avenidas da cidade. Ela não estava – ou não quis atender aos insistentes chamados à porta. A uma quadra fica o primeiro grande monumento erguido na cidade: a estátua de um garimpeiro com uma bateia de ouro, feita de concreto e com 2,5 metros de altura. Seu autor, Apolinário Oliveira, um artista de fama local, é mais uma vítima da violência do oeste paraense: morreu de complicações causadas por um tiro que levou em 2020, quando participava da festa pela eleição de um vereador em Santarém.

Prevenção amazônica: a defensora Maria Márcia Elpídia de Melo fez no peito uma tatuagem do filho por medo de ser morta e não identificada. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Os grileiros da Flona Jamanxim vivem bem longe dela

Além da história da convocação pelo “Integrar para não entregar”, um dos principais argumentos brandidos pelo prefeito Gelson Dill e por defensores da transformação de parte da Flona do Jamanxim numa Área de Proteção Ambiental é que a Assembleia Legislativa do Pará decidiu em 2005, ao aprovar uma lei sobre o macrozoneamento do estado, que a região ao longo da BR-163 seria destinada à expansão econômica do setor produtivo. E isso apesar de as terras ali serem, todas, federais. É um argumento que não para de pé, afirma o cientista social Mauricio Torres. “O governo federal tem autonomia para destinar as suas terras, principalmente quando atendem a uma previsão constitucional como, por exemplo, as Terras Indígenas”, diz.

Também não se sustenta o argumento de que os ocupantes da Flona do Jamanxim são pequenos produtores que sobrevivem produzindo na terra que ocupam. Em 2009, o ICMBio mandou a campo uma equipe com a missão de realizar um estudo sobre o perfil da ocupação da floresta. O levantamento concluiu que de 90% a 100% dos “posseiros” eram empresários que viviam no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e que pagavam empregados para tocar suas “fazendas” ou moradores de Novo Progresso ou Castelo de Sonhos com parentes administrando as invasões da Flona mas com outros negócios fora dela. As “propriedades” variavam de 1,5 mil a 50 mil hectares – muito maiores do que seria administrável por um pequeno produtor e muito além do que a legislação permite que sejam tituladas em programas de regularização fundiária.

“Pouquíssimos posseiros são efetivamente moradores da área da Flona, estimados pela equipe em 30 a 40 famílias em toda a extensão da unidade”, afirma o documento. Por fim, o estudo sugere a retirada de algo entre 22,6 mil e 35 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim, o que “traria maior capacidade de gestão da unidade e retiraria uma área com grande apelo social e impacto ambiental gerados tanto pelo garimpo como pelas pequenas posses existentes”. Trata-se de uma área de dez a 15 vezes menor que os 348 mil hectares ambicionados pelos políticos e “produtores rurais” de Novo Progresso e prevista no projeto de lei enviado ao Congresso Nacional por Michel Temer.

Isso não importa para os grileiros e para a ampla frente política que dá sustentação a eles em Brasília. Desde o início da operação do ICMBio se sucedem na cidade as reuniões entre políticos e produtores rurais. Na última realizada até o fechamento desta reportagem, em 17 de junho, o deputado federal Henderson Pinto garantiu que ele e os colegas Airton Faleiro e José Priante estão empenhados em fazer avançar o projeto de lei de Michel Temer.

Nenhum dos três políticos quis dar entrevista a SUMAÚMA sobre o caso. Já Zé Geraldo, vice-presidente do PT, falou – em defesa da proposta. “Não tem como tirar aquele povo de lá. A grande maioria tem direito adquirido. O governo decretou [a Flona] e nunca tentou buscar solução. Sou defensor da proposta de transformar a área em APA.”

Em 2022, 83% dos eleitores de Novo Progresso votaram em Jair Bolsonaro para presidente no segundo turno – a maior vitória proporcional dele em todo o Pará. Após o extremista de direita perder a reeleição, manifestantes derrubaram uma Castanheira centenária para bloquear a BR-163 e chegaram a atacar equipes da Polícia Rodoviária Federal. Abriu-se uma disputa, na cidade, para ver quem é mais alinhado a Bolsonaro. De olho nisso, o senador bolsonarista Zequinha Marinho, defensor de invasores da Terra Indígena Ituna/Itatá, também no Pará, patrocina a candidatura a prefeito de Juscelino Alves Rodrigues, ex-prefeito pelo PSDB. Ele terá como companheiro de chapa Ubiraci Soares Silva, o Macarrão, que foi vereador pelo PT e prefeito pelo PSC. Ambos têm ligação com o garimpo: Juscelino era piloto de avião e Ubiraci administra uma casa de compra de ouro na cidade, a Macarrão Metais. Ubiraci também já foi indiciado por “crime de lavagem de dinheiro e usurpação de bem público da União, haja vista a extração ilegal de minério”, segundo a Repórter Brasil. Os dois agora estão filiados ao Podemos e se apresentam como “uma alternativa à direita” de Gelson Dill. O atual prefeito reage: “Não são 100% de direita. Macarrão foi do PT. Juscelino nunca se envolveu na coordenação das campanhas de Bolsonaro aqui. Eu, sim, e nas duas”.

Assim, em outubro, há dois favoritos para vencer a disputa pela prefeitura de Novo Progresso. Um é o candidato à reeleição, que defende e possivelmente tem ligação com a grilagem de terras. Ele terá o apoio do governador Helder Barbalho. Na oposição, candidatos suspeitos de envolvimento com garimpo e apoiados por um dos mais radicais aliados de Jair Bolsonaro no Senado. O PT, por seu turno, busca se abrigar na chapa de Gelson Dill, confirmou o presidente municipal da legenda, Aldecir Nardino, um gaúcho que diz ter sido o primeiro ocupante da área onde hoje está a Flona do Jamanxim, em 1979. O MDB resiste. “Já faz três mandatos que não fazemos vereador. Tenho dificuldade até para juntar 12 candidatos”, diz Nardino. Ou seja: ainda que o PT defenda  que se reduza a unidade de conservação, seu apoio é indesejável.

Monumento: estátua celebra o garimpo, atividade que povoou a cidade, no cruzamento de duas das principais avenidas de Novo Progresso. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Primeiro prefeito da história de Novo Progresso e até hoje considerado seu mais influente líder político, Neri Prazeres, do MDB, é próximo da família Barbalho e o fiador da candidatura de Dill. Diretor do Sindicato de Produtores Rurais de Novo Progresso e conselheiro da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará, é também um dos agentes da pressão da pequena cidade sobre Belém e Brasília – e contra a Flona do Jamanxim. Num domingo de junho, ele postou numa rede social um discurso de 2017 do senador Jader Barbalho, pai do governador Helder, em favor da medida provisória de Temer.

SUMAÚMA pediu entrevistas a Zequinha Marinho, Juscelino Rodrigues e Macarrão. Nenhum deles quis falar com a reportagem. Mas o presidente municipal do Podemos, o vereador Chico Sousa, deu entrevista. Cearense que migrou para a região para tentar a sorte no garimpo, ele diz já ter sido eleitor de Lula e Dilma Rousseff. Tornou-se bolsonarista convicto “por causa da roubalheira” do PT – um exemplar de Tchau, Querida: O Diário do Impeachment, escrito pelo ex-deputado federal e algoz da presidenta Eduardo Cunha, ex-MDB e atualmente no nanico PRD, adorna sua mesa de trabalho.

Sousa jura que não mexe mais com garimpo e que nunca se envolveu com grilagem de terras nem com agropecuária. E tem uma versão curiosa para o retorno da fiscalização ambiental a partir de 2023: “O Lula tá com uma raiva muito grande da gente aqui, porque colocaram cartaz dizendo que ele é bandido aqui na região toda. E aí ele falou: ‘Ninguém vai garimpar, ninguém vai derrubar pau [árvore]’”. Sua visão sobre a questão da Flona do Jamanxim é emblemática do pensamento da região: “Por pressão internacional, criaram reservas em cima de onde já tinha propriedade. Nosso povo brasileiro é muito tranquilo, muito quieto, muito acomodado, muito passivo. Se isso aí fosse em outro país, a gente tinha tido lá uma guerra civil, já tinha morrido muito agente do governo, já tinham morrido muitos civis”.

Vereador: Chico Sousa (Podemos) acredita que as operações ambientais são vingança de Lula por ter sido chamado de ‘ladrão’ em cartazes da região. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Epílogo: ‘Tarcísio é diferente, entendeu?’

Há poucos homens tão admirados em Novo Progresso quanto Ezequiel Antônio Castanha. Paulista, ele chegou pobre à região e hoje é dono dos dois únicos grandes supermercados da cidade, onde é visto como um “empreendedor”, um sujeito com coragem de fazer o que precisa ser feito – no caso, desmatar e colocar terras públicas no mercado. Por causa disso, foi preso em 2015 acusado de liderar um grupo classificado pelos investigadores como a maior organização criminosa especializada em grilagem de terras e crimes ambientais na região de Novo Progresso. Estava foragido havia seis meses, desde a deflagração pela Polícia Federal de uma operação simbolicamente batizada de “Castanheira”.

É possível medir o prestígio de Castanha em sua região quando, menos de um mês após ser preso, se descobriu que na cela dele em Itaituba tinha aparelho de ginástica, cafeteira, frigobar, um notebook com conexão à internet e impressora – tudo com conhecimento e conivência da administração da penitenciária. Processado pelo Ministério Público Federal, o grileiro e supermercadista foi condenado a dois anos de prisão por “degradação de floresta em terras de domínio público sem autorização do órgão competente”. Mas a Justiça Federal do Pará sentenciou-o apenas a pagar multas e cumprir penas restritivas de direito em liberdade. Os procuradores recorreram, e o caso aguarda decisão no Tribunal Regional Federal, em Brasília.

Enquanto isso, Castanha circula e trabalha livremente em Novo Progresso. No final da tarde de quarta-feira, 5 de junho, a reportagem foi procurá-lo em um de seus supermercados. Após uma espera de alguns minutos, ele apareceu. Corpulento e com cerca de 1,90 metro, Castanha é um homem cordial, de fala mansa e articulada. Recusou-se a gravar entrevista, mas conversou por alguns minutos, de pé à porta da loja. Tempo suficiente para disparar contra Marina Silva: “Não é ministra do Brasil, ela trabalha como se fosse ministra da Europa”. Em seguida, defendeu os grileiros da Flona do Jamanxim: “Quando fizeram a reserva, já tinha gente lá. Enquanto não tiver documento, vão continuar desmatando. Mas a esquerda não quer documentar ninguém”.

A conversa já ia chegando ao final quando Castanha deu pistas de que sonha com o mesmo presidente que os banqueiros de roupas de grife, que andam em patinetes e bebem cafés especiais e vinhos caros na Avenida Faria Lima, coração financeiro de São Paulo. “Eu gosto da direita, mas sou Tarcísio, não Bolsonaro. Nem Bolsonaro nem Lula – não dá nem pra acreditar que esses caras foram presidentes. Mas o Tarcísio, a mente desse cara… Tarcísio é diferente, entendeu?” Dito isso, despediu-se, embarcou com a esposa numa caminhonete prata e se embrenhou na BR-163.

Almas achadas: culto evangélico celebrado em bar na região de prostíbulos de Novo Progresso, uma das mais movimentadas da cidade. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão e Soll
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty e Sarah J. Johnson
Infográfico: Ariel Tonglet
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Chefa de reportagem: Malu Delgado
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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