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Micélio

Floresta Nacional do Bom Futuro, em Porto Velho, no estado de Rondônia: a unidade de conservação é alvo de grilagem pelo menos desde os anos 2000. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

“Se você não quer vender a terra, não tem problema, a sua viúva vai me vender mais barato.” Muito Ribeirinho e muito Colono – camponeses migrantes que se instalaram às margens das rodovias rasgadas na Amazônia na década de 1970 – já ouviram essa frase vinda do forasteiro ou do “fazendeiro” vizinho que quer aumentar seu pasto. Essa é a ação de uma figura conhecida por quase todos na Amazônia: o grileiro.

Mas o que é o grileiro? É só aquele que pressiona e ameaça os mais fracos para tomar suas terras? Ou é aquele que sai “cortando terra” em regiões mais distantes? E, afinal, o que é esse tal de “cortar terra” de que sempre se fala em regiões mais afastadas?

Na verdade, o grileiro é um personagem bastante antigo em nossa história. Muito do que o Brasil é hoje – e, em especial, a forma perversa como tanta terra está concentrada nas mãos de poucos – é resultado da grilagem. Este texto é uma tentativa de conhecermos melhor esse processo para entendermos quais são os efeitos da grilagem na Amazônia.

A palavra grilagem vem de uma antiga prática de falsificação de documentos. O falsificador trancava os documentos forjados em uma caixa com grilos. Os excrementos dos insetos oxidavam rapidamente o papel, que ficava com o tom amarelado, enferrujado, o qual ganharia naturalmente apenas em décadas e séculos. Ter essa aparência de antiguidade era um importante elemento para que o documento falsificado se passasse por verdadeiro e prestasse para o roubo de terra.

Na Amazônia, a grilagem acontece nas terras públicas e, mais precisamente, nas “terras públicas não destinadas”. Isto é, aquelas áreas que não receberam um destino – não se tornaram assentamento de reforma agrária, unidade de conservação, Terra Indígena ou outras formas diversas de ocupação.

A professora Eliane Moreira, promotora do Ministério Público do Estado do Pará, explica que a nossa Constituição Federal determina uma ordem de prioridade para o destino que essas terras devem ter. A primeira prioridade seriam Terras Indígenas, seguidas de terras Quilombolas e de outras comunidades tradicionais. Depois viriam o interesse ambiental e a reforma agrária. Entretanto, a promotora denuncia que os próprios governos estão invertendo essa ordem, colocando a prioridade nas propriedades individuais privadas, que só poderiam existir caso não houvesse interesse social e ambiental na área.

Na Amazônia, a grilagem se realiza em dois planos: um no chão e o outro no papel. No primeiro caso, é quando se toma a área materialmente. O grileiro precisa expulsar o ocupante original da terra, e seus pistoleiros “limpam” o local de seus ocupantes legítimos. Além disso, a floresta é derrubada para consolidar a apropriação. É nesse momento que acontecem as ameaças e outras formas de violência. Mas também é quando ocorre a resistência dos tantos movimentos sociais do campo: Indígenas, Quilombolas, camponeses e demais comunidades tradicionais.

O outro plano é no papel: por meio de falcatruas nos cartórios ou nos órgãos fundiários, acontece o destacamento da terra do patrimônio público e sua transferência para o patrimônio privado do grileiro. A violência (e incluo aqui o desmatamento como sua variante) é o principal instrumento de controle de terras griladas.

Quando esse mercado sujo de terras se agita, a violência, como mecanismo da grilagem, sobe junto. E nem sempre o destacamento da terra do patrimônio público acontece com a falsificação de documentos (como os colocados na caixa com grilos). Na verdade, a maior parte da apropriação ilícita das terras se concretiza justamente por meio de políticas públicas que “perdoam” e anistiam a grilagem. Mas quais são os documentos que os grileiros tentam conseguir?

A “história” de todo imóvel tem que começar com um ato do Estado, em que a terra deixa de ser pública e é alienada a algum particular. Isso recebe o nome de destacamento da terra do patrimônio público: o imóvel é transferido da União, dos estados ou dos municípios para alguém. É justamente esse ato de alienação do imóvel público o momento mais frequente da prática da grilagem. Entretanto, o termo que nasceu como menção à falsificação de documentos não tardou a ganhar generalidade e referir-se a diversos modos de apropriação de terras alheias.

Seria grilagem o caso de um Colono que ocupa, sem documentos nem autorização de órgão oficial, uma terra pública não destinada, do tamanho suficiente para sustentar sua família, mantendo ali seu trabalho e sua morada? Não!

A lei é clara ao dizer que a ocupação da terra pública só será legítima se for praticada por alguém que torne a terra produtiva com seu trabalho e o de sua família e que exerça morada permanente e cultura efetiva. O tamanho dessa terra não deve ser maior do que um módulo fiscal – na Amazônia, chega a 100 hectares. E, claro, desde que a área não seja um território tradicionalmente ocupado por Indígenas ou comunidades tradicionais, ou que não seja uma unidade de conservação.

O grileiro, então, se “fantasia” de Colono. Ele faz um mapa da área que considera sua, geralmente imensa, e a divide em lotes. Para cada um desses lotes, o grileiro indica um ocupante diferente. São os famosos “laranjas”, gente que empresta o nome ou que, às vezes, nem sabe que está sendo usada.

O grileiro monta processos separados, como se cada lote fosse ocupado por um Colono, nos termos postos acima, em que a ocupação seria legítima. Para cada laranja, é montado um requerimento ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com o pedido de que essa parcela seja reconhecida como do laranja em caráter de regularização fundiária. Depois de titulada a terra, o grileiro passa todos os lotes em nome dos laranjas para seu próprio nome. Era assim que funcionava até 2009.

Em 2009, a vida do grileiro ficou mais fácil. O governo Lula publicou a Medida Provisória (MP) 458, que virou a Lei 11.952/2009, e criou o Programa Terra Legal. Anunciado como instrumento em benefício dos pequenos e da “questão social”, o que o programa fez foi permitir a legalização da grilagem nos estados amazônicos. Basicamente, essa lei – e as que vieram em seguida – eliminou exigências e tornou mais fácil aos grileiros usarem dezenas de laranjas para conseguir os documentos das terras ilegalmente apropriadas. E o grande beneficiário com as facilitações foram alguns poucos grileiros que concentravam muita terra.

Embora os minifúndios e as pequenas posses, com até quatro módulos fiscais (400 hectares, no máximo), representassem 80% do total das demandas por regularização, eles ocupavam menos de 11,5% da área a ser regularizada. Por sua vez, as médias e as grandes detenções de terras, que representavam apenas 20% do total de imóveis com intenção de ser regularizados, ocupavam mais de 88,5% da área que seria regularizada. As ocupações camponesas inferiores a 100 hectares que atendessem a determinados quesitos já tinham garantias legais, ao contrário da grilagem em terras públicas.

A anistia à grilagem se repetiu e se aprofundou nos governos seguintes. Em 2016, o então presidente Michel Temer publicou a Medida Provisória 759, posteriormente convertida na Lei 13.465/2017. A norma ampliou em quatro anos o período de anistia. Antes, era preciso provar que a terra havia sido ocupada até 2004 – com a nova lei, a ocupação foi flexibilizada até 2008 (e, em alguns casos, até 2011). Além disso, aumentou de 1,5 mil para 2,5 mil hectares o tamanho das áreas passíveis de regularização na Amazônia Legal.

Dois anos depois, em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, foi apresentada a MP 910, que pretendia estender para todo o território nacional a possibilidade de regularização até o limite de 2,5 mil hectares e previa um procedimento autodeclaratório, que dispensaria a realização de vistorias para áreas de até 15 módulos fiscais, ampliando significativamente as facilidades dadas ao grileiro.

A MP 910/19 não foi votada no Congresso e caducou, mas seu conteúdo foi em parte transferido para o Projeto de Lei (PL) 2.633/20. Também foi proposto o PL 510/2021, muito similar ao anterior. Essas mudanças consagram a “legitimidade” do “fato consumado” e incentivam novas invasões de terras públicas, sob a expectativa de que logo serão regularizadas, dando origem a um ciclo perverso de destruição ambiental e criminalidade.

Quanto maiores as facilidades criadas pelas leis para que o grileiro consiga os documentos da terra que saqueou, mais vale a pena investir nos mecanismos de apropriação da área no chão: violência e desmatamento.

Grilagem digital

Outra mudança que modernizou os protocolos do roubo de terras públicas foi a criação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público eletrônico, implantado em 2012 para condensar as informações ambientais das propriedades e posses rurais numa base de dados com fins de monitoramento ambiental. A inscrição no CAR é obrigatória no Brasil todo e tem natureza autodeclaratória – o primeiro registro é totalmente feito sobre uma declaração do ocupante da terra. Porém não é qualquer um que consegue fazer tal declaração. A coisa demanda conhecimento técnico para preenchimento da documentação e uso de sistemas de projeção cartográfica dos imóveis: é preciso ter recursos para pagar um técnico para executar e assinar.

Na Terra Indígena Ituna/Itatá, no Pará, por exemplo, onde há registro de Indígenas em isolamento voluntário, quase toda a área está coberta por CARs, ainda que não possa haver propriedade privada ali. Os cadastros marcam a intenção dos grileiros de se apropriarem da terra.

De acordo com a promotora Eliane Moreira, embora o CAR não tenha sido concebido como mecanismo fundiário, ele sempre teve por pressuposto a existência de uma propriedade ou posse válida. “Ocorre, porém, que na prática esse pressuposto tem sido deixado de lado e com isso o CAR passa paulatinamente a se tornar instrumento para grilagem”, afirma.

Uma síntese do uso do CAR – e do parcelamento e do uso de laranjas e dos projetos de regularização fundiária – para a grilagem foi encontrada em um anúncio, em 2016, de uma fazenda de 100 mil hectares no município paraense de Jacareacanga. O vendedor, por meio do site OLX, oferta sem constrangimento a detenção de terras públicas de dimensão 40 vezes maior do que o limite constitucional para aquisição de terras da União sem autorização do Congresso Nacional: “É uma área de posse mansa e pacífica e está sendo feito o Geo [georreferenciamento] para na sequência fazer o CAR, requerer o título definitivo e consequente escritura definitiva. Está sendo feito o desmembramento da área de até 1.500 ha no projeto [Programa] Terra Legal”.

Publicamente, assume-se o parcelamento da imensa grilagem em frações menores, que, no cálculo do grileiro, estariam dentro do limite de área de atuação do Programa Terra Legal. E, note-se, novamente, coloca-se o CAR como etapa do processo de titulação fraudulenta da terra.

Os instrumentos legítimos, instituídos legalmente, como recolhimento de impostos, cadastros fundiários e o próprio CAR, quando possíveis de ser praticados em terras griladas, dão ao crime da grilagem um verniz de legalidade.

 


Maurício Torres é cientista social, professor e pesquisador. Trabalha na Universidade Federal do Pará (UFPA) e estuda conflitos territoriais, na defesa dos direitos de camponeses e povos tradicionais.

Este artigo foi publicado originalmente na cartilha entregue, em maio de 2023, aos participantes do primeiro encontro do Micélio – Programa de Coformação de Jornalistas-Floresta, realizado na Reserva Extrativista do Rio Xingu, no Pará, na Amazônia brasileira. Micélio é uma iniciativa de SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo, com o apoio da Moore Foundation e da Google News Initiative. SUMAÚMA agradece à comunidade que a acolheu.


Texto: Maurício Torres
Arte do Micélio: Hadna Abreu
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Maria Jacqueline Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de edição: Viviane Zandonadi
Direção: Eliane Brum

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