Associações e cooperativas de fachada, comunidades tradicionais da Amazônia enganadas e a suspeita de uma articulação criminosa em atuação no Pará. Os quatro anos de destruição da política ambiental brasileira, promovida pelo governo de Jair Bolsonaro, deixaram mais um legado prejudicial para comunidades que vivem em unidades de conservação da Amazônia: planos de manejo madeireiros comunitários que beneficiam o setor privado em vez de funcionar como um mecanismo de renda para Ribeirinhos e Indígenas. Há suspeitas de que isso tenha acontecido, inclusive, com o aval de funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na gestão do governo Bolsonaro, órgão federal que administra as áreas protegidas e que dá a palavra final sobre manejos madeireiros comunitários. O extremista de direita foi derrotado nas urnas em 2022, mas projetos predatórios seguem em curso em terras indígenas e comunidades tradicionais.
Se a atuação de madeireiros é velha conhecida da Amazônia, nos últimos anos ela ganhou uma nova roupagem. “Temos indícios de um possível esquema criminoso que se articula no oeste do Pará, em que associações e cooperativas estariam sendo criadas como laranjas ou usadas de fachada para empresas operarem exploração ilegal de madeira em unidades de conservação federais. Ele [o esquema] ataca diferentes unidades de conservação”, afirma um servidor do ICMBio com atuação na área e que pede anonimato por questões de segurança. Ele cita a Reserva Extrativista Verde para Sempre e a Floresta Nacional do Tapajós. Também menciona a Resex Riozinho do Anfrísio, mas naquela região ainda não há um plano aprovado. “É basicamente uma estratégia de colonização dessas áreas usando lideranças e organizações coletivas, como as associações e cooperativas”, resume.
Os manejos madeireiros comunitários em unidades de conservação foram criados com o objetivo de gerar renda para as comunidades tradicionais e são organizados em ciclos de dez a 35 anos, justamente para que a extração de madeira seja seletiva, organizada e pensada de modo a manter a floresta em pé. Outro requisito é que sejam geridos por povos tradicionais beneficiários das unidades de conservação. A cooperativa ou associação comunitária gestora do manejo pode até contratar empresas terceirizadas para alguns serviços, como abertura de estradas, construção de pontes, fornecimento de alimentação, transporte de madeira e elaboração de plano de negócios. Mas a responsabilidade precisa seguir na mão dos comunitários, assim como os rendimentos.
O que aconteceu entre 2019 e 2022, período do governo Bolsonaro, foi a inversão dessa lógica em alguns casos: empresas cooptaram lideranças, abriram associações para servirem como laranjas ou firmaram contratos com cooperativas já existentes. Na prática, ficaram responsáveis por toda a gestão do plano de manejo. E pior: fazem acordos com essas associações de forma que todos os benefícios fiquem com a empresa, e não com os beiradeiros.
Dos 22 planos de manejo aprovados em dez unidades de conservação na Amazônia, 12 deles são, desde maio de 2021, alvo de um inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal (todos na Resex Verde para Sempre), e um foi suspenso judicialmente (Resex Tapajós-Arapiuns). As informações constam em planilha do ICMBio enviada a SUMAÚMA por meio da Lei de Acesso à Informação. Nos 13 casos, que atingem dois territórios protegidos, o problema é similar: a suspeita de desvio da função dos planos de manejo por conta do assédio de madeireiras e da alimentação de conflitos internos dentro das comunidades.
Após a abertura de inquérito para investigar denúncias dos moradores de que haveria irregularidades em planos de manejo e de que o ICMBio estaria se “afastando de sua missão institucional”, o MPF voltou a atuar. Em fevereiro de 2022, pediu ao ICMBio – que, na época, estava sob o comando de nomeados do ex-presidente Bolsonaro – que não autorizasse novos planos de manejo na Resex Verde para Sempre. Uma comissão do ICMBio analisa as denúncias desde abril. No último dia 30 de novembro, o órgão publicou portaria cancelando cinco planos de manejo na Resex Verde para Sempre e suspendendo outros quatro.
“Ao invés de uma atividade de impacto reduzido, desenvolvida de acordo com a melhor ciência e a melhor técnica, o que se tem, sob a fachada do manejo sustentável comunitário, é uma exploração predatória de recursos madeireiros que se configura mais como uma pilhagem, rapina ou roubo, promovida com a intenção de extrair o que há de valioso na floresta o mais rápido possível, sem maiores preocupações com os impactos e com os limites de regeneração natural do ambiente explorado”, diz uma apresentação de servidores do ICMBio obtida por SUMAÚMA. O documento afirma que uma das provas do esquema seriam contratos de extração da totalidade da madeira de cinco anos, o que não respeita a previsão de um ciclo de corte de 25 a 35 anos, período de tempo compatível com o ciclo de regeneração da floresta.
Na Resex Tapajós-Arapiuns, a situação ficou tão grave que o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, em parceria com o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), entrou na Justiça em 2020 contra o próprio ICMBio, argumentando que o plano de manejo, quando aprovado, não ouviu os moradores das comunidades. Como a extração de madeira foi suspensa por uma decisão judicial no ano seguinte, 2021, os cooperados revidaram: invadiram a sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, fizeram ameaças ao então presidente e vice-presidente e seguem intimidando as organizações que entraram com a ação.
Sindicato dos trabalhadores rurais de Santarém foi invadido em maio de 2021 por cooperados da Resex Tapajós-Arapiuns, que exigiam a volta dos manejos de madeira na área, suspensos por decisão judicial. Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real
Há ainda outras situações que mostram como madeireiras estão atuando nas comunidades. Na Floresta Nacional do Tapajós, primeira unidade de conservação a investir nos manejos madeireiros e hoje considerada uma referência na área, o que se viu nos últimos anos foi a criação de novas cooperativas – com a suspeita de madeireiras por detrás – pleiteando “planos de manejo” ambiciosos – e fomentando discordância e conflitos entre os moradores. José Risonei Assis da Silva, gestor da Flona, conta que com o sucesso do manejo no território surgiram outras cooperativas demandando planos com áreas grandes, acima de 30 mil hectares.
“Para esse tamanho de área a ser manejado, é caro. Tem que ter equipamentos, tem que ter estruturas como estradas, alojamentos, refeitórios, fazer inventários, adquirir ou alugar máquinas… A comunidade teria que ter no mínimo 1 milhão de reais para iniciar o projeto, e sabemos que eles não têm”, diz Assis da Silva, destacando que esse é um indício de que há empresários por detrás dessas novas cooperativas. “As empresas oferecem muitas promessas, e alguns caem na história, só que quem sai ganhando é o empresário. É muito ruim quando uma empresa de fora chega com um portfólio dizendo o que a comunidade precisa fazer. Acredito muito nos projetos em que é a comunidade que sente a necessidade, e vai amadurecendo o projeto aos poucos, no tempo dela.”
O servidor do ICMBio afirma: “Nos últimos anos da gestão Bolsonaro vimos um aumento muito significativo de planos de manejo no que se refere à área total explorada e ao volume de madeira. Entendemos que esse aumento foi artificial”. Segundo ele, o ICMBio está investigando responsabilidades, inclusive de ex-funcionários. Outro problema, para além dos contratos e do desvio de função de servidores do órgão fiscalizador, é a doação de presentes a pessoas da comunidade.
O ICMBio afirmou, por meio da Lei de Acesso à Informação, que a “Procuradoria da República em Altamira identificou indícios de prática de irregularidades relacionadas a planos de manejo comunitários aprovados para áreas no interior da Reserva Extrativista Verde para Sempre”. O órgão também informou que, em abril de 2023, criou uma comissão para apurar responsabilidades, e que concluiu o seu trabalho em 15 de dezembro. “Com relação aos casos averiguados pela comissão, há informações sensíveis que tiveram de ser protegidas por sigilo, para que não se comprometa a apuração em curso, não sendo possível o seu compartilhamento”, afirmou em nota enviada a SUMAÚMA.
Procurado, o MPF esclareceu que o inquérito civil tramita em sigilo e que por isso não poderia atender ao pedido de entrevistas e informações. O processo judicial da Resex Tapajós-Arapiuns também tramita em sigilo.
Sinais de alerta na Terra do Meio
O caso da Resex Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio, no Pará, é diferente. Nesse território ainda não há permissão para o manejo madeireiro – o que há é uma articulação de algumas pessoas para que isso aconteça. No entanto, a forma como esse processo vem sendo conduzido acendeu um alerta vermelho no ICMBio. E em parte dos beiradeiros.
Em 2022, a Associação de Moradores da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio (Amora) assinou um “termo de cooperação técnica e financeira” com a Associação Aliança dos Manejadores de Floresta Nativa de Rurópolis para a criação de um plano de manejo madeireiro na comunidade. O documento detalha as responsabilidades de cada associação e diz que ambas estão ali para “conjugar esforços para mútua cooperação”. Elogia manejos em algumas Reservas Extrativistas, incluindo os investigados da Verde para Sempre, e chega a dizer que “a comunidade [do Riozinho] teve um prejuízo econômico entre 103 milhões e 204 milhões de reais” com a exploração ilegal de madeira no território. Uma outra cláusula diz que “todas as informações e/ou materiais que digam respeito, direta ou indiretamente, ao objeto do presente acordo deverão ser tratados com o mais absoluto sigilo”.
O documento, assinado em 9 de setembro de 2022, circulou. SUMAÚMA esteve na comunidade do Morro do Anfrísio, onde escutou críticas de algumas lideranças da Resex de que tudo está acontecendo de forma atropelada. Elas afirmam que a comunidade não foi ouvida antes da assinatura do termo pelo presidente da associação, o Ribeirinho Herculano Camilo de Oliveira Filho, mais conhecido como Loro.
Além da assinatura do termo de cooperação, a associação Aliança dos Manejadores de Rurópolis confirmou a SUMAÚMA que repassou para a Amora “uma moto, um computador e sistema de acesso à internet”, mas que a realização da doação está esperando que a Amora quite suas dívidas com a Receita Federal. Em nota, a aliança disse ainda que houve também o apoio “ao deslocamento dos integrantes das diversas famílias que já participaram dessas visitas florestais em experiência de manejo em Porto de Moz, Santarém, Altamira, Rurópolis e em Brasília”.
A comunidade está em alerta – e dividida. Enquanto algumas pessoas veem o manejo madeireiro como forma de geração de renda para os moradores – e como uma maneira de reduzir a extração ilegal de madeira dentro do território –, outros beiradeiros temem o que pode vir a acontecer caso a extração de madeira seja autorizada. “Se esse plano de manejo for assinado, isso vai trazer ruindade pra nós. Porque vai entrar vários tipos de pessoas de fora. Em tudo que entra pessoas de fora, vai ter conflito. Vai mudar. Aí nós perdemos o controle”, diz Francisco dos Santos, mais conhecido como Chico Preto.
Francisco dos Santos é contra um plano de manejo madeireiro no Riozinho do Anfrísio com parceiros de fora: ‘Vai ter conflito’, resume. Foto: Soll/SUMAÚMA
O servidor do ICMBio analisou o termo de compromisso assinado pela Amora e pela Associação de Manejadores de Rurópolis e afirma que há sinais de alerta delicados. Entre eles, elogio ao plano de manejo na Resex Verde para Sempre, que está sendo investigado pelo MPF, e valores superestimados de madeira. Sem contar que, pelas normas brasileiras, uma associação comunitária não precisa de um parceiro, nem de um contrato nem de um termo de cooperação para aprovar um plano de manejo no ICMBio. O caminho normal é a cooperativa ou a associação comunitária da Resex aprovar o plano de manejo e depois fazer licitações com empresas para a compra da madeira extraída.
Além dos manejos madeireiros comunitários, existem as concessões empresariais, que seguem uma outra lógica e são licenciadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Seja de comunitários ou não, o universo madeireiro no Brasil, e especialmente na Amazônia, é tão intrincado que a organização Instituto Socioambiental parou de apoiar esse tipo de atividade, focando em outras possíveis fontes de renda para os beiradeiros. Principalmente aquelas em que não é necessário derrubar uma árvore, como a extração de castanha-do-pará, de açaí, babaçu, copaíba e andiroba.
Um dos problemas é que planos de manejo podem ser usados como forma de “lavar” a madeira extraída ilegalmente – em um mercado em grande parte dominado pela ilegalidade. Levantamento feito pelo Imazon, em parceria com outras três organizações, mostra que 46% da exploração madeireira no Pará (entre agosto de 2021 e julho de 2022) ocorreu em áreas não autorizadas. Ou seja, ilegalmente.
Autuações do Ibama revelam que podem acontecer fraudes mais graves em planos de manejo. Em maio deste ano, o órgão suspendeu cinco Planos de Manejo Florestal Sustentáveis no município de Lábrea, no estado do Amazonas. A fraude mais comum constatada é a “declaração” falsa de madeira extraída na área do plano de manejo, sem que a extração de árvores tenha ocorrido naquela área. Segundo nota publicada no site do Ibama, “essa prática visa acobertar madeira explorada ilegalmente em outros locais, como terras indígenas, unidades de conservação e áreas não autorizadas”.
O pra sempre sempre acaba
“Estamos passando por um momento muito crítico”, lamenta uma liderança da Reserva Extrativista Verde para Sempre, que pediu anonimato por questões de segurança. Ela se refere ao fato de que, nos últimos quatro anos, comunidades foram obrigadas a “cumprir” com alguns desses contratos desvantajosos. A ativista se lembra com clareza do que aconteceu alguns anos atrás. “A empresa veio e disse: ‘Vamos fazer tudo, explorar as toras, arrastar, pagar às pessoas’. Porém o preço que a empresa ofereceu pelo metro cúbico de madeira era muito abaixo do mercado. E foram quatro anos assim.”
Além do endividamento e do prejuízo financeiro, outra consequência de difícil reversão é a divisão das comunidades. “Estamos vivenciando conflitos internos e muita desconfiança dentro da comunidade. ‘Era para dar X, mas deu X menos 20, [porque] o fulano roubou”, diz, com tristeza, a pessoa que em 2010, acompanhou de perto o início das discussões sobre os manejos madeireiros. Ela conta que a crise dos últimos anos foi tão profunda que está quase destruindo tudo o que foi construído entre 2010 e 2016, quando algumas associações comunitárias tiveram treinamento e foram, pouco a pouco, desenvolvendo seus respectivos projetos de manejo madeireiro. “Voltamos a começar do zero.”
O processo de elaboração de um plano é longo e demorado. A gestão do empreendimento é complexa, demandando altos investimentos iniciais para a aquisição de máquinas e equipamentos, além de conhecimento técnico de gestão, contabilidade e finanças. Lideranças de quatro Resex ouvidas por SUMAÚMA, não identificadas nesta reportagem para proteger sua segurança, são unânimes ao dizer que essa abertura e exposição às madeireiras e a contratos desvantajosos aconteceu por falta de capital de giro para realizar os investimentos iniciais. Todas pedem políticas públicas mais sólidas para que possam realizar seus manejos sem a necessidade de investimento inicial feito por uma empresa.
“Eu falava para as minhas colegas: ‘Agora é rezar e pedir pra Deus que esse tempo passe rápido, e esperar que a pessoa que venha [o próximo presidente da associação] tenha diálogo’”, diz. “Agora a nossa esperança é que vamos recomeçar. Mas não vai ser fácil, essas empresas ganharam espaço dentro das unidades de conservação, e ganharam pessoas que acreditam nelas.”
O funcionário público do ICMBio esclarece que, em alguns contratos analisados, associações e cooperativas já começam devendo. “Recebem aporte inicial, mas têm que suportar custos altíssimos por serviços contratados. O valor que recebem na comercialização da madeira é bastante baixo e com uma repartição de benefícios muito injusta, com baixa transparência e nenhum controle social”, alerta, reforçando os relatos das pessoas das comunidades. “E o ônus é somente da organização comunitária.”
O curioso passado da turma de Rurópolis
A sala da prefeitura de Rurópolis está lotada. Há uma única mulher entre as pelo menos 14 pessoas presentes que se sentam em círculo em torno da mesa do anfitrião. Com os dois sofás ocupados, cadeiras de outros departamentos tiveram que ser trazidas. Ao fundo, bandeiras do Brasil, do Pará e da cidade fundada em 1974 pelo governo de Emílio Garrastazu Médici, o general que quatro anos antes mandou derrubar uma castanheira em Altamira para marcar o começo das obras da Transamazônica.
“A gente tá participando de uma reunião hoje juntamente com a Amora, da Resex Riozinho do Anfrísio, e a Associação dos Manejadores de Rurópolis, onde a gente tá tratando da assinatura do termo de cooperação técnica entre as duas associações com anuência da prefeitura e Câmara de Rurópolis”, explica Rodrigo Rabelo, engenheiro florestal, em vídeo postado em 11 de maio nas redes sociais da prefeitura. Além de Rabelo, outros dois protagonistas dão entrevista: Diego Barbosa, advogado, e Tarcísio Feitosa. Os créditos da reportagem apresentam Feitosa como ambientalista. “Se tudo der certo, se o plano de manejo for bem encaminhado, vai gerar emprego para 400 famílias em Rurópolis e para 102 famílias da Resex”, ele afirma.
Rodrigo Martins Rabelo se apresenta como engenheiro florestal no seu LinkedIn. O que a rede social não diz é que ele é réu na Justiça, juntamente com seu pai, Ilando Lemos Rabelo, e a empresa Madeireira Rabelo (Indústria e Comércio de Madeiras Rabelo LTDA), por crime ambiental e desmatamento ilegal de 73,39 hectares na região de Rurópolis. A ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal teve como base uma fiscalização do Ibama realizada em 18 de março de 2020 – em que foram constatadas irregularidades na atividade da serraria. Na ocasião, os responsáveis foram multados em 367 mil reais.
Já Tarcísio Feitosa tem uma história interessante. Uma breve pesquisa do Google revela um amazônida que em 2006 ganhou um prêmio internacional, o Goldman Prize, compartilhado por ambientalistas célebres como Marina Silva. Uma nota, intitulada “Em defesa da Terra do Meio”, diz que foi ele quem denunciou a extração ilegal de madeira em 2006 que resultou na apreensão de 6 mil toras de mogno na região. Algumas reportagens sobre o ambientalista ainda dizem que ele atuou em prol da demarcação das áreas de proteção na Terra do Meio, também no início da década de 2000.
A população do Riozinho, assim como as outras comunidades beiradeiras da Terra do Meio, tem seu berço na exploração da borracha. A maioria dos moradores é de descendentes de nordestinos pobres, especialmente do Ceará, que foram levados à Amazônia nos ciclos da borracha do final do século 19 e, depois, na Segunda Guerra Mundial. Quando o preço da borracha caiu, foram abandonados pelos seringalistas e passaram a se espalhar pela floresta, com frequência em uniões (algumas vezes forçadas) com mulheres indígenas, tornando-se uma população tradicional, com um modo de vida conectado à floresta, conhecida como população “ribeirinha” ou “beiradeira”.
Em meados de 2004, o território estava invadido por grileiros. As lideranças da comunidade do Riozinho estavam ameaçadas, casas chegaram a ser incendiadas, famílias começaram a fugir. Naquele momento, grande parte da comunidade nunca tinha ido à cidade. Não havia escola nem luz, a maioria não votava nem tinha documento, as trocas eram feitas exclusivamente pelos barcos chamados de regatões, atravessadores fluviais que até hoje atuam na Amazônia. Uma das únicas pessoas com carteira de identidade era Herculano Porto, justamente o pai do atual presidente da Amora. Ele e outros dois líderes, Raimundo Belmiro e Luiz Augusto Conrado, mais conhecido como Manchinha, falecido em 2022, enfrentaram risco de morte para que a reserva extrativista fosse criada. Após uma reportagem na revista Época denunciar a violência na Terra do Meio, a ministra Marina Silva mandou resgatar os líderes de helicóptero, para proteger a vida deles e levá-los a Brasília para relatar os acontecimentos. É uma história épica. Foi pela força desses três Ribeirinhos, com o apoio dos movimentos sociais de Altamira e do Instituto Socioambiental, que a Resex foi criada por Luiz Inácio Lula da Silva em novembro de 2004, então em seu primeiro mandato como presidente.
A comunidade Morro do Anfrísio e a floresta preservada ao fundo; desmatamento ilegal na reserva vem crescendo desde 2017. Foto: Soll/SUMAÚMA
Mais de 20 anos depois, Tarcísio Feitosa se tornou um defensor de manejos madeireiros comunitários. Na verdade, mais do que um defensor, um articulador desses projetos. “Manejo, primeiro, traz proteção ao território. Segundo, gera renda para essas comunidades e, terceiro, gera emprego para a juventude, porque a nossa juventude do Riozinho do Anfrísio está indo trabalhar nos garimpos e enfrentando problemas com drogas”, afirma Tarcísio em entrevista a SUMAÚMA, feita por videoconferência. Ele conta que entrou nessa história da parceria entre as duas associações porque, em julho de 2022, foi procurado por Loro, o presidente da Amora, que teria se mostrado interessado em um plano de manejo madeireiro na Resex.
Um mês depois dessa primeira conversa com Loro, ele diz ter sido procurado pelo vice-prefeito de Rurópolis, Erzenir Orben (MDB), que faz parte da associação, também interessado em atuar em planos de manejo comunitários no Pará. Segundo Tarcísio, Orben é secretário da associação de manejadores e atua como uma espécie de “ministro da economia” da prefeitura. O vice-prefeito também é sócio de uma madeireira, a Serraria União Cupari, que foi autuada pelo Ibama em 2017, com multa de 11 mil reais.
Quando questionado se sabe que Ilando, o presidente da aliança de manejadores, é réu na Justiça por crime ambiental, Tarcísio não demora a responder: “Todo mundo é réu, quem não é?”. E completa: “Se tiver condenação dele, aí beleza. Porque senão a gente vai fazer o papel do Sérgio Moro aqui”, disse, referindo-se ao ex-juiz da Lava Jato e atual senador pelo União Brasil, um dos principais defensores de prisão após condenação em segunda instância antes de o processo ser finalizado.
Sobre a crítica de moradores do Riozinho, de que a assinatura do termo foi “atropelada” e feita sem discussão prévia com os moradores da Resex, ele afirma: “Tem uma associação que tem autonomia, tem uma outra associação que tem autonomia e elas precisam ser respeitadas, entendeu? O termo de compromisso não é o plano [de manejo], gente. O plano ainda tem pelo menos dois anos de discussão. O termo de compromisso é para dizer se essa floresta tem condição ou não de fazer um plano e se as comunidades podem ou não ser capacitadas para trabalhar com plano de manejo”.
Tarcísio disse ainda que há uma comissão de pelo menos oito pessoas acompanhando as discussões e conversas, e que orientou os envolvidos a enviar o termo de compromisso a todos os órgãos, inclusive ao ICMBio. Questionado, Tarcísio disse que o pagamento pela sua consultoria é feito pelo escritório de seu filho, Diego Barbosa, no valor de 100 dólares (cerca de 490 reais) a diária. Ele disse, em nota, que não comentaria as acusações feitas pelo servidor do ICMBio.
Ilando Rabelo e Rodrigo Rabelo afirmaram a SUMAÚMA que o relatório de fiscalização do Ibama que gerou a multa e o processo judicial “é falho e com certeza será anulado”. Eles asseguraram que a autuação deveu-se a duas toras abandonadas, que “não eram de conhecimento da empresa e se localizavam na linha divisória de demarcação da área rural onde está instalada a madeireira”. Disseram ainda que a associação de madeireiros foi constituída como “continuação de um movimento que busca melhorar a qualidade das indústrias instaladas em Rurópolis” e que, na atual gestão, “houve um compromisso para apoiar a melhoria das indústrias de base florestal, assim como a verticalização da produção”. Sobre a divisão da comunidade, a nota afirma que “por necessidade e em busca de alimentos houve a participação de famílias que fizeram e continuam fazendo contratos com toreiros da região de Trairão para retirar madeira da área. Com um possível plano de Plano de Manejo Florestal Comunitário de Uso Múltiplo esses acordos comerciais proibidos deverão ser extintos, então há de se ter pessoas contrárias a essa atividade.”
Procurado por SUMAÚMA, o advogado Diego Barbosa afirmou que o seu escritório é contratado pela associação Aliança dos Manejadores de Rurópolis para “prestação de consultoria e assessoria jurídica” e que auxiliou o diálogo entre as duas organizações. Sobre as críticas de moradores da Resex ouvidas por SUMAÚMA, Barbosa destacou que a Resex é formada por mais de 130 famílias e que “dificilmente haverá consenso entre todos”. Disse ainda que as palavras do servidor do ICMBio possuem fé pública, portanto são passíveis de responsabilização, tanto na esfera administrativa quanto na judicial.
A prefeitura de Rurópolis não respondeu aos e-mails de SUMAÚMA. Erzenir Orben foi procurado por meio da prefeitura, mas não houve resposta.
A história da parceria entre as duas associações provoca algumas perguntas não esclarecidas: por que o termo de cooperação foi assinado em setembro de 2022 e só oficialmente divulgado oito meses depois? Por que o presidente da Amora não abriu discussão com a comunidade antes da assinatura do termo? Qual o interesse na doação de uma moto para a associação dos beiradeiros?
Parte dos moradores do Riozinho do Anfrísio também tem mais perguntas que respostas.
‘Não podemos competir com a ilegalidade’
Pedro Pereira é um grande contador de histórias. O beiradeiro, de estatura baixa e fisionomia jovem, nasceu nas margens do Riozinho em 1964, quando as pessoas da Terra do Meio não tinham escola, energia elétrica, posto de saúde e nem sequer documentos. Ele lembra de quando foi pela primeira vez à cidade, Altamira, na década de 1980, e conheceu o gelo. “O picolé tava desmanchando, tava esfumaçando. E eu pensei: ‘Esse bicho não vai esquentar para chegar no normal da gente comer, né?’”, diz entre gargalhadas. Lembra também de quando viu pela primeira vez um helicóptero e achou que era uma motosserra gigante. “Eu falei: ‘Isso aí vai acabar com tudo’”.
‘Qual o interesse? Quantas pessoas vão querer vir de fora?’ são os questionamentos feitos por Pedro Pereira, morador da Resex Riozinho do Anfrísio, sobre a possível criação de um projeto de manejo madeireiro no território. Foto: Soll/SUMAÚMA
Às margens do Riozinho, Pedro Pereira conta sua história e a da Terra do Meio. Sempre que pode, destaca como as coisas vêm melhorando. Isso porque a vida no Riozinho é desafiadora, a começar pela logística. Durante o período de seca, as comunidades da Resex ficam praticamente sem acesso à cidade – os barcos precisam ser carregados pelos pescadores em alguns trechos secos do rio. A viagem, que na cheia demora dois dias, pode passar a demandar sete. Mas o mais desafiador para uma família beiradeira com filhos para criar é, sem dúvida, o constante assédio da ilegalidade.
Aos 59 anos, Pedro já fez um pouco de tudo para ganhar a vida: foi seringueiro, gateiro (vendedor de pele de onça e outros felinos), madeireiro, garimpeiro e roceiro. Hoje afirma ser defensor da floresta de pé. É coordenador de uma cantina dentro do programa Rede de Cantinas da Terra do Meio, projeto que conta com o apoio do Instituto Socioambiental. Os moradores fazem parcerias comerciais com grandes marcas para vender os produtos extraídos da floresta – castanha-do-pará, babaçu, copaíba, andiroba e cacau – sem passar por atravessadores. E oferece a opção de o Ribeirinho conseguir vender o produto na mesma comunidade, sem ter que rodar dias em uma voadeira para a comercialização. Sobre o programa da rede de cantinas, Pedro tem todas as respostas. Mas quando perguntado sobre o manejo madeireiro, ele só tem questionamentos: “Qual o interesse? Quantas pessoas vão querer vir de fora [para trabalhar no manejo]? Por que que esse vice-prefeito [de Rurópolis] está envolvido? Nós vamos trabalhar com coisas que não sabemos trabalhar? ”, questiona.
Moradores do Riozinho do Anfrísio contam, pedindo anonimato, que alguns membros da Amora ganharam presentes daqueles que eles chamam de “a turma de Rurópolis”. Uma moto, que foi dada a membros da associação, chegou a ser alvo de discussão em uma assembleia da Resex, realizada no fim de novembro de 2022.
Segundo ata do encontro obtida por SUMAÚMA, uma moradora pediu esclarecimentos sobre o “termo de acordo” que foi sido assinado por Loro, poucos meses antes. Foi quando o presidente da Amora explicou o pedido da prefeitura de Rurópolis para manejo madeireiro e informou que “eles propuseram um termo de doação para a associação/comunidade de uma moto”.
Tanto a moto quanto a parceria com a turma de Rurópolis foram debatidas na assembleia. Foi decidido, por unanimidade, que a Amora teria que devolver a moto recebida pela turma de Rurópolis. Uma das pessoas presentes disse que houve má-fé da prefeitura de Rurópolis, que “criou uma narrativa que não era verdadeira”, pois eles teriam dito que já tinham os documentos do ICMBio, mas nada mais eram do que protocolos, e não uma autorização. Esse mesmo morador ressaltou que o que o “pessoal de Rurópolis” queria era exclusividade na parceria, mas que isso não é certo. “O correto é a Amora, após combinar com todos os moradores, pedir autorização para o plano de manejo florestal e só então decidir com a comunidade qual melhor parceiro para fazer – e se precisa de parceiro.”
Um dos problemas apontados por um dos presentes foi o fato de a Resex ter um Plano de Manejo Participativo, aprovado em 2010, que prevê atividades como a extração de seringa, babaçu e castanha-do-pará –, mas que não prevê comercialização de madeira. Assim, para que de fato aconteça um manejo madeireiro na unidade de conservação, será preciso reformular o plano de manejo da Unidade de Conservação, e isso precisa ser feito pela comunidade com anuência do ICMBio – um processo que pode demorar anos.
Houve, durante o debate, quem defendesse o manejo madeireiro como forma de reduzir a ilegalidade da atividade. Um deles, ligado à Amora, comentou que “se demorar três anos para fazer o plano de manejo florestal, não se acha mais nenhuma árvore no Riozinho”. A fala mostra como as atividades ilegais se tornaram parte da rotina da Resex, com o envolvimento de chefes de garimpo, madeireiros e grileiros de fora, num processo que se ampliou no governo Bolsonaro, em especial nos anos de pandemia, quando as organizações socioambientais e de saúde deixaram de atuar no território para cumprir os protocolos de segurança – e a fiscalização federal se tornou quase ausente.
A apenas 4 quilômetros do Morro do Anfrísio, sede da Resex, uma estrada clandestina é usada por madeireiros para escoar as toras cortadas ilegalmente, contam os moradores. A investida contra a floresta não escapa dos satélites: o desmatamento no Riozinho vem crescendo desde 2017 e a abertura de estradas bateu recordes em 2018 e 2020. Enquanto nas Resex Rio Xingu e Rio Iriri houve desmatamento de 6 e 26 hectares, respectivamente, entre 2019 e 2022, na do Riozinho foi de 1.632 hectares, segundo dados do Prodes compilados pelo Instituto Socioambiental. Nesses quatro anos, foram abertos 319 quilômetros de estradas clandestinas dentro do Riozinho do Anfrísio, para o escoamento das toras.
Procurado por SUMAÚMA por telefone, Herculano Filho, o Loro, disse que não deu continuidade à parceria com a turma de Rurópolis quando percebeu que nem toda a comunidade estava apoiando a proposta e depois de ter conversado com servidores do ICMBio. “Quando eu, como liderança, comecei a perceber que não seria como imaginávamos, comecei a recuar.” Ele comenta que terminou firmando o termo durante a pandemia, período que não foi fácil para a comunidade. “Tempo árduo que a gente viveu, ficamos totalmente isolados e acabou afetando de todas as maneiras, principalmente a questão financeira. E a gente olhava para os lados e via a quantidade de madeira que saía ilegalmente, e a gente falava, como morador, ‘será que a gente não consegue regularizar isso e trabalhar de maneira legal?’”, comenta. O presidente da associação diz que foi procurado por Tarcísio Feitosa com essa ideia da parceria com a Aliança de Manejadores – e não o contrário. “O que sempre a gente teve um pé atrás foi essa questão de ser uma associação de Rurópolis”, porque, segundo ele, é a região que representa “um dos vetores de pressão” sobre a comunidade.
Ele afirmou que não sabia do processo judicial ligado ao presidente da Aliança dos Manejadores e que errou ao não ter consultado a comunidade antes da assinatura do termo. Sobre a moto que foi doada à associação, Loro disse que não a devolveu, porque é de uso de todos da comunidade – e importante para situações de emergência, já que permite que moradores saiam da reserva por terra.
Os moradores mais velhos, que lembram bem o tempo em que a ilegalidade reinava no Riozinho do Anfrísio, costumam ser contrários a um plano de manejo. “O vagabundo, criminoso que vem tentar cometer crime e irregularidade numa região dessa, se ele chega e encontra todo mundo organizado, ele não consegue avançar. Agora, se ele chega e encontra facilidade, se oferece algo e a pessoa pega, essa pessoa consegue trazer mais um e mais um. Isso vira um negócio louco, que é o que está acontecendo aqui”, lamenta Francisco de Assis Porto de Oliveira, 60 anos, da Resex Rio Iriri, um ex-garimpeiro que hoje se diz guardião da floresta com orgulho e trabalha como coordenador da Rede de Cantinas. Mas baixa os olhos para falar sobre uma dura realidade: “Não conseguimos competir com a ilegalidade”. A ilegalidade paga bem.
Enquanto no Riozinho há uma disputa, ainda inicial, sobre se querem ou não um plano de manejo, na Resex Verde para Sempre há um processo de aprendizado com os erros do passado. “As comunidades erraram, mas estão sendo punidas de alguma forma. Este ano não vão vender [madeira], uma renda que vai deixar de entrar na cesta das famílias”, lamenta outra liderança, que pediu anonimato por questões de segurança, referindo-se à intervenção do MPF e ao congelamento na aprovação de novos planos na Resex. “E as empresas madeireiras, estão sendo punidas como?”, questiona.
A pergunta ecoa.
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Nascer do sol refletido no rio Iriri, na comunidade São Francisco, na Terra do Meio, conjunto de áreas protegidas cujo processo de criação teve início no início da década de 2000. Foto: Soll/SUMAÚMA