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Povo Xukuru ergueu os maracás em marcha organizada pelo Acampamento Terra Livre 2023: indígenas ocuparam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no principal encontro anual dos povos originários do Brasil, para mostrar o enfrentamento aos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional contra seus direitos. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

Há séculos que a população originária está em luta, e não há livro de história capaz de abarcar a totalidade das violências que os povos vêm enfrentando há 523 anos. Ao som dos maracás, de rituais e cantos diversos, indígenas de norte a sul do país estiveram em Brasília, em abril, demarcando mais uma vez a capital federal, na 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que neste ano reuniu 6 mil pessoas. O movimento enxerga um comprometimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a retomada da política de demarcação e proteção das terras ancestrais, mas se ressente do silêncio do petista em relação à tese do marco temporal, cujo julgamento será retomado pelo Supremo Tribunal Federal a partir de 7 de junho. Para o movimento indígena, esse será o “julgamento do século”, o que definirá o futuro dos povos originários. Lideranças ouvidas por SUMAÚMA acreditam que o Congresso, hostil às pautas dos indígenas, é hoje o principal obstáculo para assegurar seus direitos – e é, também, o maior problema para que Lula consiga cumprir as promessas feitas aos povos originários.

O cacique do povo Xokleng, Tucun Gakran, acredita que Lula é contra o marco temporal, mas não se manifesta abertamente por receio da reação de parlamentares. Entre os 513 deputados federais, 350 se inscreveram na Frente Parlamentar da Agropecuária e são apontados como integrantes da chamada bancada ruralista. “Eu, como cacique do povo Xokleng, acredito que Lula tem interesse em demarcar terras, só que do outro lado tem os parlamentares que são contra os planos do governo. Então eu acho que ele está com medo de se declarar”, analisa Gakran.

Lula não falou abertamente, no ATL, sobre o marco temporal. Essa tese considera que só têm direito a terras indígenas os povos que ocupavam seus territórios até a data da promulgação da Constituição de 1988. Muitos povos, porém, foram expulsos de suas áreas antes ou durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985). Sobre o tema, o presidente fez um único gesto no Acampamento Terra Livre. Enquanto discursava, incomodou-se com um banner que estava impedindo a visão da plateia e pediu que o levassem ao palco. Na faixa, estava estampado: “Juventude Xokleng contra o marco temporal”.

Jovens do povo Xokleng, no Acampamento Terra Livre: juventude indígena está engajada na luta de seus parentes contra o marco temporal, a tese que concede o direito ao território apenas se os povos originários o ocupavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

O cacique Tucun Gakran diz que o povo indígena está esperançoso de que Lula cumprirá suas promessas. Mas faz ressalvas: “O momento que está se passando no começo do governo está sendo muito difícil, a gente está percebendo isso”. A expectativa do movimento indígena, acrescenta ele, era que Lula assinasse pelo menos 14 homologações de terras indígenas, e não apenas seis, como fez. “Nós acreditávamos que pelo menos o que estava ali no papel ele poderia homologar. Mas com essa dificuldade que ele está tendo, também dentro do governo, [onde] tem gente que é contra ele. E isso a gente sabe porque eu tive umas três reuniões neste ano lá na AGU [Advocacia-Geral da União].” Na visão de Gakran, há segmentos na AGU que são favoráveis à tese do marco temporal e querem que ela seja aprovada. “Lula tem uma boa ideia, uma boa intenção de ajudar o povo, mas a gente está com medo”, admite.

Com um olhar sereno, cabelos esbranquiçados, cocar de penas nas cores verde e vermelho, colar de miçangas na altura da barriga e muita firmeza nas palavras, Raoni Metuktire, do povo Kayapó, símbolo da resistência indígena no Brasil e no mundo, com mais de nove décadas de existência, pediu que os povos indígenas continuem lutando, mesmo confiando no governo. “Eu quero que este governo Lula seja bom pra nós. Mas nós, lideranças, continuaremos lutando. Vamos ficar firmes, e os jovens não podem dar moleza aos brancos, porque na nossa terra tem vários tipos de coisas, tem animais, tem frutos e tem outras espécies. E precisamos lutar por isso”, afirmou.

O cacique Raoni Metuktire Kaiapó discursa no lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, no Congresso Nacional. Símbolo da luta indígena por décadas, escaldado pela postura do PT em relação a Belo Monte, Raoni alertou lideranças indígenas para que continuem firmes e façam cobranças ao governo Lula. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

Raoni, que lutou contra Belo Monte e foi traído pelos governos do PT, sabe que o erro que os indígenas não podem cometer é baixar a guarda. Assim, pediu que todos se unissem para cobrar o governo. Disse também que é preciso apoiar os parentes que estão dentro do governo. “Todos precisam se reunir e falar em uma só voz para defender o nosso direito. Lideranças no governo têm que ouvir os povos que estão nos territórios. Juntos seremos fortes, esse é meu pensamento”, finalizou Raoni em sua passagem pelo ATL.

Congresso anti-indígena

Para o líder Almir Suruí, cacique geral do povo Suruí, da Terra Indígena Sete de Setembro, no estado de Rondônia, ter indígenas pela primeira vez no governo é importante e necessário. A presença de Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Ricardo Weibe Tapeba deve ser celebrada e fortalece o movimento, diz o cacique, mas papéis e espaços precisam ser delimitados: “Nós não podemos nos confundir com o governo. O movimento tem que continuar cobrando para que eles possam cumprir seu papel governamental, defendendo os direitos dos indígenas, protegendo os territórios, buscando alternativas que possam gerar emprego e renda dentro das comunidades que precisam, e também melhorar a política de saúde e de educação”.

O Congresso Nacional é um dos mais conservadores dos últimos tempos, diz a secretária da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Marciely Ayap, do povo Tupari. “A gente escutou muito [a pergunta sobre] o porquê do ATL, já que a gente tinha um governo que é a favor dos povos indígenas… Respondi que mesmo a gente, em um novo governo, a gente tem um enfrentamento muito grande, principalmente no Senado e dentro da Câmara dos Deputados, pois nem todos os parlamentares apoiam a luta dos povos indígenas”, afirma.

Ainda que o atual governo tenha criado o Ministério dos Povos Indígenas e que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) seja presidida por uma indígena, as mobilizações precisam continuar, afirma ela, “para mostrar pra todo mundo que nós continuamos unidos e reivindicando nossos direitos”. A presença de lideranças indígenas no governo Lula não é suficiente para dar tranquilidade porque, segundo Marciely, os indígenas são barrados em várias outras esferas de poder e também dentro do próprio governo.

Tuxaua (liderança) da comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Djacir da Silva, do povo Macuxi, conta que seus parentes permanecerão na retaguarda dos direitos indígenas. “Nossa mobilização é para dizer que não iremos ficar parados esperando. A gente tem que trabalhar junto com as autoridades. Estamos vendo a destruição e todas as invasões que estão chegando aos territórios indígenas”, afirma. “A gente tem que se mobilizar. Tem os parlamentares que estão violando nossos direitos, e por isso vamos continuar nos manifestando. Está vindo aí o marco temporal. Vamos nos unir e segurar firme a luta indígena – que nunca para.”


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

Indígenas também decretaram emergência climática durante os dias em que se reuniram no Acampamento Terra Livre 2023, em Brasília: povo Xucuru fez danças e rituais na marcha na capital federal. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

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