Em 18 de julho, SUMAÚMA revelou que uma Indígena do povo Kokama foi estuprada cotidianamente por pelo menos quatro policiais militares e um guarda-civil por mais de nove meses. Ela tinha ao seu lado seu bebê. Os estupros seguiram sendo infligidos nas dependências da cadeia da delegacia de Santo Antônio de Içá, no estado do Amazonas, até essa criança ter 10 meses. Percebam: em vez de aprender a andar e a falar, esse bebê assistia à mãe ser violentada, assistia à mãe sangrar, assistia à mãe gritar, assistia à mãe ser humilhada e destruída. E tudo isso aconteceu nas dependências do Estado, que tinha a responsabilidade de proteger essa mulher e essa criança, e por agentes do Estado, que tinham a responsabilidade de proteger essa mulher e essa criança.
A reportagem exclusiva do jornalista Rubens Valente obrigou as autoridades, em suas várias instâncias, a parar de fingir que não aconteceu o que aconteceu. Mas até a publicação da história por SUMAÚMA, todas as instituições silenciaram durante pelo menos dois anos. E teriam silenciado talvez para sempre se os crimes não fossem expostos, com repercussão nacional e internacional. Só depois da reportagem, quatro policiais e um guarda-civil foram detidos, o Estado passou da primeira oferta de 35 mil reais de indenização para 300 mil reais e a pena de K foi mudada para regime de semiliberdade.
Para compreender o que torna possível um silêncio de dois anos é preciso fazer as conexões – ou apesar da ampla exposição dos crimes, da violação sexual à omissão das autoridades, o que está determinando nossa extinção seguirá encoberto. E atenção: extinção aqui não é metáfora, é fato.
É importante que uma parte do Brasil e do mundo se assombre e se mova por um crime como este. É fundamental que K, como a Indígena foi chamada por SUMAÚMA para que sua identidade fosse protegida, receba justiça e toda a assistência para que possa se recuperar tanto quanto possível das sequelas físicas e psicológicas, assim como seu filho. É essencial que a série de violências sofridas por K, que se iniciou com estupros em série e seguiu com o silêncio e a cumplicidade das autoridades e instituições envolvidas, se torne um marco para que políticas públicas sejam construídas e as leis já existentes sejam cumpridas – porque se fossem, K não teria sido estuprada.
Mas tudo isso está longe de ser suficiente.
O relatório anual Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado no dia 28 de julho pelo Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, mostrou um aumento da crueldade, assim como uma redução da idade das vítimas. Em 2024, dos vinte episódios de violência sexual documentados no relatório, 14 foram cometidos contra crianças e adolescentes de 4 a 16 anos. Foram ainda 211 assassinatos de Indígenas em 2024 e 922 mortes de crianças entre 0 e 4 anos – muitas por causas evitáveis, como desnutrição e infecções.
A Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas – Makira-E´ta destacou dados que apontam para um agravamento brutal da violência contra Indígenas no país. Em uma década, entre 2014 e 2023, a violência contra mulheres indígenas aumentou 258%, mais do que o aumento médio nacional, de 207%. Ainda pior quando se observa o crescimento da violência sexual: enquanto os registros gerais cresceram 188%, entre mulheres indígenas o aumento foi de 297%. Os números integram um levantamento do portal Gênero e Número, a partir de dados sobre as notificações de violência contra mulheres indígenas tabulados no DataSUS.
K tampouco está sozinha nas horrendas violações cometidas contra as mulheres presas, com frequência misturadas a homens nas cadeias do Brasil. É aguda a observação da intelectual Carla Akotirene, citada na coluna da filósofa Djamila Ribeiro na Folha de S.Paulo: Carla lembrou que a prisão é uma microestrutura da sociedade dos cativos. Afirmou que as tecnologias de opressão – patriarcado, racismo, etnocídio, capitalismo – se entrecruzam e se materializam nas prisões. A cela, portanto, seria como uma reencenação colonial. “A cela torna-se um ambiente doméstico”, diz Carla, “onde o homem chega e estupra, e, quando a mulher tenta gritar por socorro, é punida por indisciplina.” Trata-se, segundo Carla e Djamila, de uma falha institucional sistêmica, que une omissões, cumplicidades e normalizações de violências contra os corpos racializados.

Santo Antonio do Içá, Amazonas: a Indígena Kokama ficou presa com homens e foi violentada por agentes do Estado. Imagem cedida pelo advogado Dacimar Carneiro
SUMAÚMA foi idealizada para fazer jornalismo a partir da Amazônia e de seus povos, cobrindo o colapso do clima e da biodiversidade com o obrigatório atravessamento pelos marcadores de raça, gênero, classe e espécie. Na coformação com jornalistas-floresta, buscamos fazer um jornalismo com o movimento da Natureza, em que tudo é conectado e interdependente – e não compartimentado, dividido em caixinhas/editorias, como é a lógica daqueles que, como diz o pensador Ailton Krenak, se separaram da Natureza.
Todos os esforços para barrar o crescente número de estupros das Indígenas não serão suficientes se não houver demarcação das Terras Indígenas. E a seguir ficará claro o porquê.
Escrevo e repito há muitos anos que não é possível compreender o avanço do desmatamento, que vira pecuária e monocultura de soja, sem compreender o papel do patriarcado. A mesma lógica que viola o corpo da Floresta, do Cerrado, do Pantanal, da Caatinga e do Pampa, elencando os biomas de norte a sul do Brasil, é a que viola o corpo das mulheres. Tanto o corpo da Floresta quanto o corpo das mulheres foram convertidos em corpos-objetos para invasão, dominação, violação e esvaziamento.
Os que lutam contra a violência contra as mulheres precisam lutar contra a violência contra a Natureza. Não é um debate e outro debate, uma luta e outra luta, mas a mesma luta.
Por isso o ataque à demarcação dos territórios indígenas pelo Congresso brasileiro. São corpos-territórios que estão em jogo. Sem demarcação, os corpos-biomas serão subjugados do mesmo modo que na chegada dos invasores europeus em 1500 e nos séculos posteriores, junto com o avanço sobre o território e a conversão da Natureza em mercadoria. Com a demarcação, a violação se torna mais difícil. Corpos demarcados estão menos sujeitos a estupros também nas cadeias do Brasil. O que está demarcado não está subjugado.
Para quem neste momento olha com perplexidade ou ironia para a tela onde este texto está estampado, lembre-se da frase antológica do ex-presidente, atual réu, Jair Bolsonaro. Em 2019, em seu primeiro ano de governo, ele disse, ao se referir à Floresta e à suposta cobiça dos europeus sobre a Amazônia: “O Brasil é a virgem que todo tarado de fora quer”. A brutalidade da ultradireita é iluminadora.
Só a intersecção com raça, gênero e classe permite a compreensão em profundidade dos recentes ataques a Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, no Congresso brasileiro. É essa mulher negra, vinda da população tradicional amazônica ribeirinha, que se alfabetizou aos 16 anos, quem ocupa hoje o lugar político mais difícil do Brasil, ao encarnar a resistência ao avanço da devastação da maior floresta tropical do planeta e de todos os biomas, dentro e fora do governo de Lula da Silva. É o seu corpo, mais do que qualquer outro, que está entre a motosserra e a Floresta.
Quando foi emboscada verbalmente no Senado, em 27 de maio, onde estava a chamado da Comissão de Infraestrutura, Marina foi deixada para sangrar por opositores e governistas. A cena, que viralizou na internet, escancara a relação íntima entre o patriarcado e a violação da Natureza que leva ao colapso do clima e da biodiversidade.
Lembremos.
“A mulher merece respeito, a ministra não”, atacou o senador Plínio Valério. O mesmo senador já dissera algum tempo atrás que tinha vontade de enforcá-la. O presidente da comissão, Marcos Rogério, um aliado de Jair Bolsonaro, cortava o microfone sempre que Marina se defendia dos ataques. Por fim, bradou: “Se ponha no teu lugar”.
Odeiam a ministra porque Marina tem impedido – menos do que ela mesma gostaria e muito mais do que o próprio Lula deseja – o avanço da exploração da Amazônia e de todos os biomas. Odeiam Marina pelo que ela tenta impedir de acontecer e manifestam esse ódio porque ela é mulher. Odeiam a ideia e violentam a mulher.

Marina Silva encarna a resistência: é o seu corpo que está entre a motosserra e a Floresta. Fotos: Andre Violatti/Ato Press/Folhapress e Lela Beltrão/SUMAÚMA
A violência sofrida por Marina Silva por resistir num lugar de poder, em que seu corpo [infectado pela leishmaniose e contaminado por mercúrio] é aquele que barra o avanço sobre o corpo-floresta, é chave para entender esse momento. Na Amazônia e em todos os biomas, o protagonismo da luta em defesa da Natureza é das mulheres, assim como também são jovens mulheres as líderes do movimento climático e humanitário iniciado por Greta Thunberg, outra hostilizada mesmo por autoproclamados progressistas quando apontou a conexão entre o genocídio produzido por Israel e o combate ao colapso do clima. Greta mostrou que não é possível afirmar-se ecologista sem combater o ecocídio infligido por Israel – e foi massacrada nas redes sociais e em artigos e vídeos de opinião. As mulheres estão em todas as linhas de frente da luta contra a extinção, e isso não é um acaso.
O colapso do clima e da biodiversidade, que condenará vastas porções de pessoas à morte se não for barrado, tem gênero – foi causado por homens e ainda hoje são majoritariamente homens que tomam as decisões que aceleram a catástrofe, como está escancarado no Congresso brasileiro. Tem também cor, já que tanto o colonialismo quanto o capitalismo que o produziram foram projetos de homens brancos. Não por coincidência a resistência a essa força de destruição também tem gênero, e nas últimas décadas há um protagonismo crescente de mulheres não brancas nas lutas globais.
Essa relação fica invisibilizada nos relatórios científicos, numa ciência também branca e em grande parte dominada por homens, mas ela está determinando o curso dos acontecimentos. Neste momento, a opressão é a destruição da casa-planeta. E enfrentar tanto misoginia e violência sexual quanto racismo é dizer não aos projetos de destruição da Natureza.
Lembremos ainda da agressão racista do deputado Kim Kataguiri (União Brasil) contra a deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL), na votação do PL da Devastação, o maior ataque à Natureza e ao nosso presente desde a ditadura empresarial-militar (1964-1985). “O pavão é um animal lá da Ásia, nada a ver com tribo indígena aqui no Brasil. Mas tem gente que parece que gosta de fazer cosplay”, disse Kataguiri, dirigindo-se claramente a uma das poucas deputadas indígenas da história do Brasil. Com as palavras “ecocídio legislado” e “futuricídio” escritas sobre o peito, Célia Xakriabá usava um cocar feito com penas de pavão. Cosplay é a prática de se vestir como um personagem da ficção. “Este foi um cocar sagrado usado pelo povo Fulni-ô”, ela reagiu. “Não tenho problema em saber de onde venho. Eu não preciso chamar de cosplay, porque isso é racismo televisionado”, disse Célia, a primeira Indígena a ser eleita deputada federal pelo estado de Minas Gerais.

A deputada indígena Célia Xakriabá reage a ataque racista no Congresso: ‘Isso é racismo televisionado’. Fotos: Luciano Candisani/SUMAÚMA e Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Acusar Indígenas de serem falsos Indígenas é um clássico amplamente disseminado. Alguns anos atrás, a moda era chamar de “índio paraguaio”, num duplo ataque racista, contra os Indígenas e contra os paraguaios. Ora são falsos, ora não estavam no território em 1988, na promulgação da Constituição, e então não teriam direito ao território, como prega a lei inconstitucional do marco temporal. Lei inconstitucional que deliberadamente ignora o fato de que, se não estavam no território, era porque ou foram dele expulsos ou tiveram que fugir para não serem exterminados. Vale lembrar que, durante a pandemia de covid-19, o governo Bolsonaro só registrava como Indígenas aqueles que viviam em territórios homologados. Os milhares que estavam em territórios não demarcados e nas cidades entravam na contagem da população geral, destituídos, portanto, de sua identidade e de seus direitos como pessoas originárias. A estratégia é clara: não demarcam os territórios e destroem os biomas, mas quem se diz Indígena é falso porque vive na cidade. É contra a Constituição, mas estão passando com correntão sobre a Constituição.
Minutos antes de atacar Célia Xakriabá, Kim Kataguiri tinha dito esta boçalidade: “Aí eu também quero que abra uma hidrelétrica do lado de casa, eu também quero que abra uma rodovia do lado de casa”. Ele havia sugerido que a oposição de povos indígenas ao PL da Devastação se devia a um suposto interesse econômico, por perderem o direito à compensação por danos irreversíveis causados por grandes obras aos territórios indígenas. “É dinheiro, é grana, esquema…” Com isso, debochava de todas as vítimas e de toda a destruição produzida pelas grandes hidrelétricas e rodovias, especialmente na Amazônia.
Vale lembrar que Kataguiri é fundador do MBL, milícia digital que abraçou os piores personagens da política brasileira a partir de 2013, de Eduardo Cunha a Jair Bolsonaro, e cujas mentiras fizeram com que pessoas fossem ameaçadas de morte. É dessa mesma fôrma que saiu também Arthur do Val, o “Mamãe Falei”, que, ao se referir às mulheres da Ucrânia atacada pela Rússia do déspota Vladimir Putin, disse que “são fáceis porque são pobres”.
E com esse nível de obscenidade o PL da Devastação, que destrói o sistema de proteção ao corpo-natureza e autoriza o estupro dos corpos-territórios, foi aprovado por um Congresso que majoritariamente representa os interesses das grandes corporações de soja, carne, minérios, ultraprocessados, agrotóxicos, fármacos, armas.

Sinop, em Mato Grosso, nem parece Amazônia: grande parte do corpo-floresta está destruída pela monocultura da soja. Foto: Diego Baravelli/SUMAÚMA
Vale notar ainda que, mesmo no campo progressista, a relação patriarcal é enraizada. PL da Devastação é o nome como o projeto de lei, agora lei, foi batizado para dar a real dimensão do que representa. Há um segundo nome, que também é popular: “Mãe de todas as boiadas”. Este refere-se à declaração de Ricardo Salles, então ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro (2019-2022). Numa reunião do então presidente com todos os ministérios, Salles defendeu que, com a imprensa ocupada com a cobertura da pandemia que matava milhares por dia, era hora de passar a boiada – ou avançar com a destruição do arcabouço legal de proteção à Natureza. Basicamente o que o Congresso acabou de fazer.
Mas por que “Mãe de todas as boiadas”? Não tem mãe nenhuma nessa história feita majoritariamente por homens. A crítica seria muito mais apropriada falando, sim, em “Pai de todas as boiadas”. Pode parecer insignificante, mas o clichê é clichê porque representa: o diabo mora mesmo nos detalhes.
Na Amazônia, os movimentos já conectam as lutas, as mulheres sabem que lutar contra a violência contra seus corpos é lutar contra a violência contra o corpo-floresta. Antonia Melo, no Médio Xingu, é um exemplo de liderança que sempre conectou as frentes, sendo uma das principais vozes contra Belo Monte e uma das principais vozes contra a violência infligida às mulheres. Antonia Melo sabe que não é uma luta e outra luta, mas a mesma luta.
Para a maioria dos movimentos urbanos, não. Arrancados da Natureza, para as organizações e os ativistas da cidade parece mais difícil restabelecer as conexões. Mesmo para o movimento ambiental de origem urbana, os temas de gênero raramente atravessam o debate. Separar o que chamam meio ambiente como um nicho próprio é péssima estratégia política, que permite à imprensa tradicional e a políticos de diferentes matizes dizerem que “ambientalistas estão contra” isso e aquilo, como se não dissesse respeito a toda a população e como se os protagonistas não fossem muito mais amplos. Desconexão e compartimentação é a lógica do capitalismo. Na Natureza (e não no “meio ambiente”) todos os corpos estão conectados e são interdependentes.
Em nível global, movimentos como o Me Too e seus derivados, que romperam o silêncio que envolvia a cultura do estupro, precisam dar um passo a mais e ampliar sua compreensão e ação: a luta só se completa se fizer a conexão entre os corpos das mulheres e os corpos-biomas, em acelerada destruição que poderá culminar com a extinção da vida. Enfrentar a violência de gênero é enfrentar a destruição dos corpos-natureza. Sem entender isso, mulheres como K seguirão sendo violadas, porque antes delas seus territórios foram violados. Para acabar com o estupro das mulheres, é preciso acabar com o estupro da Natureza. Sem impedir o estupro da Natureza, seguiremos rumo à extinção em ritmo cada vez mais acelerado.

Manifestação contra o PL da Devastação: não é possível compreender o avanço do desmatamento sem compreender o papel do patriarcado. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA
Texto: Eliane Brum
Colaboração: Rafael Moro Martins
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o castelhano: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum