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A carne alimenta o crime ambiental: fogo em área desmatada abre espaço para bois e vacas em Lábrea, no estado do Amazonas. Foto: Evaristo Sá/AFP

A Amazônia brasileira perdeu para o fogo, nos dez primeiros meses deste ano, uma área equivalente a 100 cidades de São Paulo, a mais populosa da América Latina. Entre janeiro e outubro, mais de 120 mil focos de incêndio destruíram 15 milhões de hectares do bioma, aponta o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Apesar do número recorde de queimadas e da certeza de que elas foram provocadas pela ação humana, os presos pelos incêndios não passam de poucas dezenas, segundo levantamento feito por SUMAÚMA com as polícias Federal e estaduais. Há casos como o de São Félix do Xingu, no Pará. No município que abriga o maior rebanho bovino do país e é recordista em áreas incendiadas em 2024, até agora ninguém foi punido por uma única queimada.

Os números ilustram como as leis são frágeis e as investigações, na Amazônia, difíceis e insuficientes, o que estimula os crimes a seguirem aumentando. Este ano, houve um acréscimo de 114% de área perdida para o fogo na Amazônia, em comparação com 2023, de acordo com o Monitor do Fogo, da organização MapBiomas. Polícias, Ministério Público Federal e autoridades ambientais consideram uma tarefa difícil obter provas que permitam processar criminalmente os autores dos incêndios. E, quando isso acontece, a punição para o delito de queimar florestas é branda: um incendiário pode cumprir toda a pena em regime aberto ou semiaberto.

Segundo o Monitor do Fogo, a maior parte do que queimou na Amazônia entre janeiro e outubro de 2024 era de formações florestais (40%), campos (12%) e campos e florestas alagáveis (11%). Apenas um terço da área destruída era de pastagens. Mas mais da metade (55%) dos focos de incêndio identificados até setembro começaram justamente nessas áreas de criação de gado bovino – a grande maioria delas (86%) aberta a partir de 2015. Isso significa que a maior parte dos incêndios começou em regiões onde há atividades agropecuárias mas se espalhou por áreas de vegetação nativa. Atualmente, 14% das florestas da Amazônia já foram substituídas por capim para alimentar bois e vacas.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Por isso, não surpreende que os poucos suspeitos presos e indiciados por causar os incêndios florestais que devastaram a Amazônia sejam pecuaristas, desmatadores e grileiros (ladrões de terras públicas) que usam o fogo como ferramenta para eliminar a vegetação nativa e abrir espaço para seus bois e vacas. É o que indicam as investigações da Polícia Federal e da Polícia Civil de Mato Grosso e do Pará.

A Polícia Federal diz ter aberto 112 investigações para apurar casos de incêndios ocorridos em 2024 em todas as regiões do país (não há dados apenas para a Amazônia). Sete pessoas foram presas,  e dez indiciadas (isto é, encaminhadas à Justiça por haver evidências suficientes para a abertura de processos criminais contra elas). Alguns desses inquéritos deram origem a operações como a Dracarys, que mira os responsáveis por desmatar 1.672 hectares e incendiar 2.368 hectares de florestas localizadas em terras públicas nos municípios de Boca do Acre e Pauini, no sudoeste do Amazonas – uma área queimada equivalente a quase 15 Ibirapueras, o maior parque urbano de São Paulo. Segundo a Polícia Federal, “o líder do esquema criminoso” e “principal financiador e articulador das operações ilegais nas duas cidades amazonenses reside em um condomínio de luxo em Campinas [interior de São Paulo]”. O nome dele não foi divulgado.

“Em vários casos [como o da Dracarys] temos indícios de atividades criminosas planejadas e coordenadas, com vistas a um crime subsequente, o de grilagem das terras para pecuária”, afirma a SUMAÚMA o delegado Humberto Freire, diretor da Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal. Outras duas operações policiais no estado miraram incendiários de florestas públicas. Uma delas apura incêndios que devastaram 5 mil hectares de mata para abertura de pastagens. Apesar de o crime ter sido cometido em Apuí, no sudeste amazonense, um dos suspeitos vive em Novo Progresso, no Pará. Duas fontes na cidade disseram a SUMAÚMA que o alvo da Polícia Federal é um pecuarista envolvido com o garimpo ilegal e o desmatamento da Floresta Nacional do Jamanxim, que já teve 17% de sua cobertura vegetal derrubada ilegalmente por grileiros da região.

Crime à distância: área pública queimada na Amazônia e a mansão do suspeito de ordenar a destruição, em Campinas. Fotos: Divulgação/PF

“A motivação [dos incêndios] é eminentemente econômica e individual, e o criminoso típico é pecuarista ou madeireiro”, afirma o delegado Iuri de Castro, integrante da força-tarefa Amazônia Segura da Polícia Civil do Pará. No estado, quatro pessoas foram presas e oito indiciadas por incêndios criminosos entre 2023 e 2024. Dois dos presos eram grileiros de terras na Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu, a mais desmatada da Amazônia. Um deles havia desmatado e incendiado 10 mil hectares contínuos de floresta. O outro suspeito queimou 7 mil hectares, apesar de se dizer “proprietário” de uma área de “apenas” 2 mil hectares.

Em Mato Grosso, a Polícia Judiciária Civil prendeu 21 pessoas em flagrante e indiciou 149 suspeitos de incêndios criminosos entre janeiro e setembro de 2024. “Normalmente é o proprietário [da terra] que faz a limpeza [da vegetação] e coloca fogo para fazer pasto. Aí vem o incêndio, e ele dá uma desculpa de que foi outra pessoa, ou o vento que trouxe [as chamas]”, explica a delegada especializada em Meio Ambiente Liliane Murata. Como cada inquérito é tocado pela delegacia da região onde ocorreu cada incêndio, e não há uma centralização dos dados, ela não sabe dizer se há indícios de alguma organização entre os suspeitos. “Nós não tivemos condição de traçar o perfil [dos criminosos]. Se fosse centralizado numa única delegacia, a gente até teria condições de fazer”, argumenta. Mato Grosso é o terceiro maior estado do Brasil em extensão territorial. Seu governador, Mauro Mendes, do União Brasil, é defensor intransigente do agronegócio e chegou a culpar – erradamente – os povos Indígenas pelos incêndios no estado.

SUMAÚMA também pediu informações sobre investigações de incêndios florestais às polícias do Acre, Amazonas, Maranhão e Rondônia. Não houve resposta. A Polícia Civil do Tocantins informou ter realizado “29 procedimentos referentes a incêndios criminosos” e dez prisões em flagrante, mas não deu detalhes dos casos.

O crime comanda: na terra de Almir Surui, brigadistas que combatiam o fogo foram expulsos. Foto: Ton Molina/AFP e Observa Rondônia

Tiros nos brigadistas

A seca sem precedentes que atinge a Amazônia, drenando rios e deixando a mata muito mais suscetível à proliferação do fogo, ajuda a explicar os recordes de incêndio. “Essa seca, que começou em 2023, impactou muito a estrutura da floresta. Quando as plantas são expostas a um estresse hídrico, elas perdem as folhas, num mecanismo de proteção para não perderem a pouca água que têm. Isso abre mais espaço para o vento seco, a radiação, e ao mesmo tempo aumenta a quantidade de material combustível no chão”, explica a SUMAÚMA a geógrafa Ane Alencar, que pesquisa as mudanças climáticas e o desmatamento na floresta e é diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Ipam.

Contudo, nem mesmo as “condições climáticas extremas”, como definiu Ane, fazem com que as chamas surjam espontaneamente. “Foram pessoas que iniciaram o fogo”, afirma a cientista. Ou seja: em 100% dos casos, a Amazônia foi vítima de incêndios provocados por ação humana.

Chama atenção o caso do engenheiro agrônomo Douglas Jobim Vieira. Ele foi preso em flagrante, em  9 de setembro passado, colocando fogo em uma fazenda em Sorriso, Mato Grosso. Localizada 420 quilômetros ao norte de Cuiabá, Sorriso é a capital brasileira da soja – foi apontada recentemente como a mais próspera entre as 100 cidades mais ricas do agronegócio brasileiro pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. “Por que um engenheiro agrônomo sai colocando fogo em propriedades no centro do agronegócio de Mato Grosso? Ou ele é doido, ou foi demitido e não lhe pagaram, ou tem um comando ali”, questiona o secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, André Lima.

Segundo ele, há a suspeita de que ao menos parte das queimadas seja uma reação à volta das ações de repressão ao crime ambiental por órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama. “Indícios [disso] há vários”, disse a SUMAÚMA. “Tivemos brigadistas sendo expulsos de área [que pegava fogo] a tiro. E anúncios explícitos [da intenção de incendiar para desgastar o governo], no caso da Floresta Nacional do Jamanxim”, complementa ele.

André Lima, do Ministério do Meio Ambiente: ‘Há vários indícios’ de incêndios como retaliação a ações de proteção ao meio ambiente. Foto: Diogo Zacarias/Ministério do Meio Ambiente

Uma brigada do Ibama que combatia os incêndios na Terra Indígena Sete de Setembro, encravada entre os estados de Mato Grosso e Rondônia, foi atacada enquanto combatia as chamas, iniciadas em outubro. “Eles começaram a ouvir tiros sendo disparados. Foi um ato de hostilidade”, diz o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Jair Schmitt. “Tivemos que recuar a equipe, pedir apoio de segurança, porque não tem como colocar o brigadista em risco. Não é só lá. Acontece em várias outras Terras Indígenas.” Lar do povo Surui Paiter, a Sete de Setembro é alvo de invasões frequentes por garimpeiros e madeireiros ilegais.

Em Novo Progresso, onde fica a Floresta Nacional do Jamanxim, um fazendeiro prometeu retaliar com chamas a apreensão de gado ilegal realizada na região pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio. “Eu vou incentivar para botar fogo em tudo”, disse o grileiro ao jornal Folha do Progresso, em julho passado. “O plano é esse. Vamos avançar com essa ideia e o governo que apague, que venha proteger a floresta deles.” Novo Progresso foi o ponto de partida das queimadas coordenadas de florestas no Dia do Fogo, em agosto de 2019, quando centenas de incêndios foram provocadas simultaneamente por grileiros de terras públicas, agricultores e pecuaristas em uma “sinalização de apoio” ao então presidente Jair Bolsonaro, do PL. O cenário voltou a se repetir às vésperas de outubro de 2022, quando o presidente de extrema direita e inimigo da conservação ambiental buscava a reeleição.

“Existe uma reação à mudança de chave”, argumenta Lima. “A política ambiental voltou a operar. E, obviamente, atividades clandestinas, criminosas, de alguma maneira alimentam as economias locais [na Amazônia]. Isso vai gerando revolta”, diz, antes de chamar a atenção para um dado. “[Em 2024] a gente está tendo mais de 35% de toda a área queimada dentro de floresta [na Amazônia]. Historicamente, isso nunca foi superior a 15%. Isso tem a ver, obviamente, com a floresta mais seca e mais vulnerável. Mas a origem desse fogo não necessariamente foi de fora para dentro.”

Principal líder dos Surui Paiter, o cacique Almir Narayamoga Surui suspeita de motivação política nos incêndios no território de seu povo. “Foi criminosa. E não deixaram que [os brigadistas] fossem lá. Porque era para [o fogo] acontecer”, diz. Os incêndios na TI Sete de Setembro já foram controlados. Mais de 6,9 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo em Terras Indígenas como a Sete de Setembro em todo o Brasil entre janeiro de outubro de 2024, de acordo com o Monitor do Fogo. É um crescimento de mais de 155% ante os 2,7 milhões de hectares do mesmo período em 2023″.

O delegado Humberto Freire é cauteloso quando questionado sobre eventual motivação política ou articulação entre os diferentes casos. “Pode ser constatado num segundo momento. A gente vai continuar as investigações para isso.” Alvo preferencial dos grileiros de terras, as florestas públicas não destinadas – áreas que pertencem ao Estado mas ainda não tiveram um uso definido – viram a área destruída por incêndios quase triplicar em 2024. Segundo uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o fogo destruiu mais de 870 mil hectares entre janeiro e agosto, ante 315 mil hectares no mesmo período de 2023. Trata-se de uma alta de 176%.

Fogo e seca: em Boa Vista, o Rio Branco baixou tanto que é possível caminhar pelos bancos de areia que eram o leito das águas. Foto: Suamy Beydoun/Folhapress

Fiança com 95% de desconto

Douglas Jobim Vieira, o agrônomo suspeito de agir como incendiário, foi solto pela Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso um dia depois de ser preso. Ele deveria ter pago uma fiança de 15 mil reais, arbitrada pela juíza Emanuelle Chiaradia Navarro Mano. Mas saiu após deixar apenas 800 reais com a Justiça – um desconto de 95%. A Defensoria Pública de Mato Grosso, que o defende, alegou que Vieira não tinha condições de arcar com a fiança integral – e a juíza aceitou o argumento. Dias depois, em 17 de setembro, ele foi indiciado pela polícia. SUMAÚMA pediu uma entrevista ao delegado do caso, que preferiu não falar por já ter concluído seu inquérito. O caso está nas mãos do Ministério Público Estadual. A promotora responsável pediu apurações complementares ao inquérito, e também não quis dar entrevista. A Defensoria Pública, que defende Vieira, disse que “só falará nos autos” do processo, que está sob sigilo. O pedido por uma conversa com ele também não foi respondido.

O caso de Vieira não passou despercebido pela Polícia Federal. “É tão grave esse crime que merecia ter majoração da fiança e não redução”, avalia o delegado Humberto Freire. “Infelizmente, nós temos visto que em nível mundial a legislação é muito branda e o trato com as ocorrências, muitas vezes, é quase que condescendente.” A lei que trata de crimes ambientais, de 1998, prevê pena máxima de quatro anos de prisão para quem “provocar incêndio em floresta ou em demais formas de vegetação”. É menos do que os seis anos previstos no Código Penal, uma legislação de 1940, para quem “causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”.

Para tentar fazer frente ao problema, o governo federal preparou um projeto de lei que aumenta a pena máxima de incêndios florestais para seis anos de reclusão. Além disso, prevê que, em casos de crimes ambientais com participação de organizações criminosas, possam ser usadas “técnicas especiais” de investigação, como infiltração de agentes e delações premiadas.

“As penas [atuais] são muito baixas. Esse é um ponto unânime entre todas as agências que atuam no combate aos crimes ambientais”, concorda o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Marivaldo Pereira. “Por mais grave que seja o crime, dificilmente resulta em prisão. É absolutamente desproporcional em relação a outros crimes. Por exemplo: fazer um garimpo ilegal, com balsas, destruindo o rio, dá uma pena menor do que um furto simples, que é um crime sem violência ou grave ameaça.”

Crimes sem castigo

O projeto de lei com as mudanças já está no Congresso, mas ainda não teve um relator definido. Em vez disso, Marivaldo Pereira negocia com deputados que relatam matérias semelhantes para que acolham as sugestões propostas pelo governo no relatório final. Para ser aprovado, qualquer projeto de lei precisa ser votado na Câmara dos Deputados e no Senado. Apenas crimes cometidos após a entrada em vigor da nova legislação seriam afetados por ela.

Mesmo que uma lei mais rígida venha a vigorar, restará a dificuldade de flagrar e prender os incendiários. “É um crime sorrateiro”, diz André Lima, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. O desmatamento com o uso de motosserras e tratores faz barulho, exige semanas de trabalho, é detectado por radares e combatido a tempo pela fiscalização ambiental. Já colocar fogo exige, em secas como a de 2024, apenas uma caixa de fósforos.

É corrente, no governo, a visão de que o fogo passou a ser usado como ferramenta de desmatamento por grileiros de terras públicas. “Com a baixa umidade e a seca prolongada favorecendo que o fogo se alastre, para que [o criminoso] vai usar equipamento pesado [no desmatamento], que é mais fácil de identificar?”, questiona Humberto Freire. “Pode estar havendo uma mudança na estratégia criminosa de devastação da vegetação nativa para a grilagem posterior. Isso vem sendo recorrente nas investigações.”

É um argumento que faz sentido, avalia Ane Alencar, do Ipam. “As pessoas que querem ocupar terras públicas sabem que o governo está mais presente, tornando a ação deles mais arriscada. Um grileiro não vai investir em motosserra, contratar pessoas, porque sabe que a Polícia Federal ou o Ibama podem bater lá. Com o clima deixando a floresta muito inflamável, é muito mais fácil apenas começar um incêndio.”

Lima faz uma comparação com o roubo de telefones celulares em grandes cidades. “Você não pega o ladrão em flagrante, em São Paulo, roubando um celular. O cara passa, arromba o vidro [do carro] e vai embora. Isso numa metrópole, com centenas de testemunhas. Imagina [colocar fogo na floresta na Amazônia] sem ninguém testemunhando. Você até recupera o celular, pelo rastreamento, encontra o receptador [comprador do objeto roubado]. Mas o ladrão você não pega. E o fogo? Quem é o receptador do fogo? A ‘vítima’”, afirma. Ou seja: o autor do incêndio pode se apresentar como vítima dele para as autoridades, já que é virtualmente impossível, em regiões remotas da Amazônia, identificar quem começou as chamas.

Trata-se de uma percepção compartilhada pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal. “A materialidade do crime, o incêndio, é evidente. Mas a autoria é quase sempre muito difícil de estabelecer. E não sai de um dia para o outro. Demanda investigação, que é algo demorado”, diz a procuradora Luiza Frischeisen, coordenadora da 4a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsável por crimes contra o meio ambiente. “A quantidade de casos é muito grande. Não temos como investigar cada foco de incêndio”, afirma o delegado Humberto Freire.

Isso abre uma janela de oportunidades para os criminosos, que sabem que têm ainda menos risco de serem pegos. “Com tantos casos, há um esgotamento da força de resposta estatal. E aí pode ser que pessoas se aproveitem do momento para fazer a limpeza de uma área, com fogo, que nunca tinha implementado, por medo”, explica o delegado. Um experiente agente de combate a delitos ambientais enxerga ainda outra possibilidade, que no linguajar criminal é chamada de copycat crime, em inglês, ou crime de imitação. “É comum que crimes com repercussão e visibilidade sejam replicados noutros lugares, seja pela notoriedade ou por motivação ideológica. O 8 de janeiro [em Brasília, quando eleitores de Jair Bolsonaro depredaram a Praça dos Três Poderes frustrados por não ter havido um golpe contra a posse de Luiz Inácio Lula da Silva] é um exemplo típico, inspirado na invasão do Capitólio nos EUA”, diz essa fonte.

Quer dizer: quem gostou de ver o governo Lula em apuros por causa dos incêndios florestais pode se sentir motivado a também riscar um fósforo e atirá-lo nalgum matagal seco por aí. E não há motivos, até agora, para acreditar que será diferente em 2025.

Em Brasília, como na Amazônia: a fumaça dos incêndios florestais também cobriu a capital federal em agosto e setembro de 2024. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

‘Correndo de um incêndio a outro’

“Os incêndios florestais passaram a ser um dos nossos maiores desafios para o alcance da meta de desmatamento zero [na Amazônia]”, afirma André Lima. Ele se refere à promessa de Luiz Inácio Lula da Silva de criar condições e políticas que permitam zerar o desmatamento no bioma até 2030.

Nesse cenário, combater os focos de incêndio é tão relevante quanto buscar os responsáveis. O ICMBio, responsável pelas unidades de conservação como parques e florestas nacionais, tem à disposição em todo o país 95 brigadas, compostas por 1.270 pessoas, até a data da publicação desta matéria. O Ibama, que atua em florestas públicas não destinadas e Terras Indígenas, conta com 65 brigadas integradas por 1.445 agentes para os estados da Amazônia. É pouca gente para um cenário como o verificado em 2024.

“O grande desafio é segurar as ignições [de novos incêndios]. O combate nós estamos fazendo, mas surgem 50 novos grandes incêndios no Cerrado por semana”, diz Lima. “E a gente não tem 50 novas equipes para enviar a esses novos focos, porque elas já estão apagando os incêndios atuais. O cara precisaria de dois dias para descansar antes de entrar no próximo, mas tem gente que está há três meses praticamente dormindo no caminho entre um incêndio e outro.”

Por causa disso, ele acredita que o combate aos incêndios precisa ser planejado “de baixo para cima”, construindo-se o que chama de comunidades resilientes ao fogo. “Se cada propriedade rural tiver dois apagadores de incêndio, num raio de 50 quilômetros a gente terá 200 pessoas que apagam fogo, conectadas por WhatsApp. Hoje nós não temos uma brigada com 200 pessoas em lugar nenhum no Brasil”, argumenta. Os proprietários rurais precisam participar do esforço. “Aquela boate que pegou fogo no Rio Grande do Sul [a boate Kiss, em Santa Maria, causando a morte de 242 pessoas em 2013] tinha que ter uma série de medidas contra incêndios. Mas não adotou, e por isso tem que ser punida. Em hotel, restaurante, shopping center, qualquer empreendimento econômico em que haja risco de incêndio, o empreendedor é obrigado a tomar medidas preventivas. Por que na propriedade rural não é assim?”, ele questiona.

Os incêndios em grandes propriedades rurais quase triplicaram entre janeiro e agosto de 2024, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Ipam. Mais de 2,8 milhões de hectares queimaram em latifúndios, ante pouco mais de 1 milhão no ano passado. Ainda assim, a poderosa bancada ruralista reagiu e promete derrubar um decreto do governo federal que pune fazendeiros que não atuarem contra o fogo. Se mantiver a postura em relação ao projeto de lei que trata do endurecimento das penas, a Frente Parlamentar da Agropecuária dará sua contribuição para que os incêndios assustadores de 2024 voltem a se repetir nos próximos verões amazônicos.

Luta desigual: brigadistas combatem chamas em Guajará-Mirim, Rondônia, em agosto de 2024. Foto: Mayangdi Inzaulgarat/Ibama


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Edição de Arte: Cacao Sousa
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol:  Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenacão de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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