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Parque Nacional do Cabo Orange, na costa do estado do Amapá. Mangues, florestas tropicais e o sistema de recifes amazônicos são biomas ameaçados pela exploração de petróleo na foz do Amazonas. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

Em meio a divergências dentro do governo Lula sobre os planos da Petrobras de iniciar a busca de petróleo na bacia da foz do Amazonas, num poço em alto-mar no litoral do Amapá, 80 organizações da sociedade civil enviaram um ofício a ministérios e agências governamentais em que pedem que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não licencie a operação enquanto não sejam atendidos critérios de precaução.

O ofício, protocolado em 12 de abril, foi endereçado aos ministros de Minas e Energia, Alexandre Silveira; das Relações Exteriores, Mauro Vieira; da Pesca e Aquicultura, André de Paula; e dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Entre os destinatários também estão os presidentes da Petrobras, Jean Paul Prates; do Ibama, Rodrigo Agostinho; e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana; e o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Rodolfo Saboia. Uma cópia foi enviada à ministra Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

O documento, de 23 páginas, se baseia em pareceres técnicos do próprio Ibama ao longo do processo de licenciamento da operação de prospecção no chamado bloco 59, a 160 quilômetros da costa – processo que já se prolonga há nove anos, desde que a empresa britânica BP era titular da área, transferida à Petrobras em 2021.

Assinado por organizações ambientalistas com atuação local e nacional e por associações de indígenas, de pescadores e de comunidades extrativistas da região amazônica, o texto ressalta que o licenciamento do bloco 59 “não pode ser visto de maneira pontual”. Se for encontrado petróleo e houver a decisão de explorá-lo, afirmam os signatários, isso abrirá caminho para a exploração em águas profundas em toda a chamada margem equatorial do litoral brasileiro, que vai do Rio Grande do Norte ao Amapá.

Essa faixa litorânea, destaca um trecho do ofício, inclui 80% dos mangues do país e um sistema de recifes ainda pouco estudado e considerado fundamental para a atividade pesqueira. Muitas de suas áreas são oficialmente classificadas como “prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade brasileira” e têm relevância biológica “extremamente alta” e “muito alta”.

Além do 59, há mais 11 blocos que já foram concedidos pela ANP na margem equatorial, oito dos quais também em processo de licenciamento para a perfuração, outros 47 que estão em “oferta permanente” para concessão pela agência e 157 em estudo para serem levados a leilão.

Aves sobrevoam área de mangue na costa do Amapá. Vários ecossistemas e modos de vida humanos e não humanos serão afetados se houver exploração de petróleo no chamado bloco 59, a 160 quilômetros do litoral. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

Por isso, argumentam as organizações no documento, qualquer decisão que represente a abertura de uma nova fronteira de exploração petrolífera na margem equatorial deve ser precedida de estudos mais amplos sobre a compatibilidade dessa atividade com as características da sociedade e do meio ambiente locais. Além disso, alegam que tal “projeto político e econômico” é “incoerente” com a necessidade de uma “transição energética justa e inclusiva” e com os “compromissos socioambientais assumidos pelo governo brasileiro perante a população brasileira e a comunidade global, colidindo com as diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima e o Acordo de Paris”.

“Nos colocamos à disposição para contribuir com informações científicas que possam servir de suporte técnico para um debate amplo com a sociedade brasileira sobre a abertura de novas fronteiras exploratórias, considerando seus impactos e riscos de curto, médio e longo prazos”, afirmam no texto as 80 organizações.

Tomando como referência análises do Ibama, o organismo responsável pelo licenciamento de empreendimentos no litoral brasileiro, o ofício pede que, antes de qualquer decisão sobre o bloco 59, sejam adotadas as seguintes medidas:

A elaboração pelos ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), instrumento estabelecido em 2012 que permitiria considerar os “impactos cumulativos e sinérgicos de toda a cadeia produtiva [do petróleo] sobre fatores ambientais e socioeconômicos”.

Um maior diálogo com as comunidades potencialmente afetadas, incluindo a consulta prévia a povos indígenas e tradicionais, com a “garantia do acesso à informação e participação” sobre os impactos e riscos da eventual instalação da indústria de petróleo na região, “notadamente os cumulativos”, considerando todos os blocos de exploração concedidos pela ANP e listados para concessão.

A conclusão da elaboração da “base hidrodinâmica” da margem equatorial, o que permitiria traçar com maior precisão os cenários de dispersão de petróleo em caso de acidente. Tal base, sob responsabilidade da Petrobras, poderia potencialmente sanar dúvidas sobre os atuais cenários projetados pela estatal, que não preveem a chegada de óleo ao litoral do Amapá se houver um vazamento.

A demonstração da eficácia das ações de resposta nacional e transfronteiriça previstas pela Petrobras em caso de vazamento, considerando a possibilidade de que o óleo chegue, em cerca de dez horas, às águas da Guiana Francesa.

O texto das organizações da sociedade civil pede que sejam divulgados os documentos das tratativas feitas pela estatal brasileira com as autoridades da Guiana e da França.

O ofício foi enviado no momento em que o processo de licenciamento do bloco 59 se encontra em um impasse. Uma Avaliação Pré-Operacional do Plano de Emergência Individual – ocasião em que a Petrobras deve demonstrar sua capacidade de gerenciar acidentes na área do bloco – chegou a ser marcada para o fim de março, mas acabou adiada. A estatal mantém um navio-sonda no bloco 59 desde agosto do ano passado, além de seis navios ancorados em Belém, à espera da simulação.

Tanto a ministra Marina Silva quanto Rodrigo Agostinho, o presidente do Ibama, afirmaram a SUMAÚMA que estão analisando a possibilidade de realização da Avaliação Ambiental de Área Sedimentar antes de uma decisão sobre o licenciamento, mas isso exige uma decisão do governo, e não apenas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

O ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, já disse considerar que a exploração petrolífera na margem equatorial é “o passaporte para o futuro das regiões Norte e Nordeste”. Em suas mais recentes declarações sobre o assunto, Prates, o presidente da Petrobras, afirmou no fim de março que, depois dos resultados das perfurações no bloco 59, quando a empresa tiver um quadro preciso do potencial de produção de petróleo na região, “a sociedade” deverá decidir sobre sua exploração. “Estamos preparados para explorar novas reservas se assim a sociedade decidir”, disse ele em vídeo. É sabido, porém, que depois que as perfurações começam é muito difícil pará-las.

As declarações de Prates reafirmam o conteúdo de uma carta enviada pela estatal ao Ibama em 21 de março para se contrapor à perspectiva de realização de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar antes do licenciamento. Na carta, a companhia destaca que a AAAS não é uma exigência legal para a emissão da licença de operação para a perfuração do bloco e diz que outros instrumentos de avaliação mais ampla da região poderiam ser executados antes da etapa seguinte, de produção petrolífera. “Tanto o Ibama como a Petrobras possuem experiência na utilização de instrumentos aplicáveis para empreendimentos de maior complexidade ou com maior grau de incerteza, os quais podem suprir lacunas relevantes decorrentes da ausência de AAAS e que podem ser planejados para as etapas futuras do desenvolvimento da produção na região Amapá Águas Profundas”, argumenta a empresa.

O impasse, portanto, se aprofunda. Em seu ofício, as 80 organizações dizem estar em “alerta gravíssimo” no momento em que “a exploração de combustíveis fósseis tem levado o planeta à crise climática e à crise de biodiversidade e que o Brasil volta a se colocar como protagonista globalmente nessas agendas”.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

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