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Raimunda e Sumaúma: a escritora vive intimamente conectada com a Árvore que, como ela, foi violentada por Belo Monte

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“Sumaúma é uma árvore-mãe”, diz a escritora-floresta Raimunda Gomes da Silva, acariciando a casca da árvore sabida. Entre um gesto de abraço de sapopemas, raízes chatas da Samaúma, um portal para dentro de si. “Aqui tem uma mezinhagem espiritual”, comenta. A água represada pela usina hidrelétrica de Belo Monte, que invade e demora na sua “terra prometida” para além do ciclo natural do Xingu, ameaça a vida de ambas. Apodrece raízes grisalhas, que se esfarelam ao toque a despeito dos esforços da árvore trabalhadeira. Mas desistir não é opção. Como novas palavras escritas em sua cartilha, raízes de casca macia insistem em nascer entre as mortas. Cada novo parágrafo surge como semente lançada da mais alta copa, que eterniza, de dentro para fora da floresta, o que matutaram e ensinaram as antigas, escravizadas de outro tempo.

Lado a lado: Sumaúma e Raimunda cuidam uma da outra por caminhos de ancestralidades

Raimunda germinou na beira do Rio Parnaíba, no Maranhão, em 30 de novembro de 1959. Viveu em tantas outras margens, desembocando de rio em rio. Pindaré-Mirim, Tocantins, Itacaiúnas. Em sua trajetória, encantou-se com as árvores da Amazônia, tão diferentes das que conhecia no Maranhão. Outros encantamentos foram João Pereira da Silva, com quem se casou, e o Rio Xingu, onde divide um pedaço de chão com ele, uma Sumaúma e tantos outros seres de sua beirada de floresta. Enquanto Árvore-mãe, entende suas raízes como um legado, um compromisso com a sua ancestralidade.

“Você não pode sair daqui desse mundo sem deixar nada, uma história para as pessoas contarem o que viram, o que ouviram  quando estavam aqui. Isso que eu penso”, ela diz.

Daí vem a sabedoria de Raimunda. Da partilha e da capacidade de sentir uma vida outra fluir na sua. Sentir-se Árvore, Cobra, Águia. Da esperteza de abrir os olhos para o invisível e manter os ouvidos atentos aos ensinamentos da Floresta, dos Encantados, dos Espíritos das águas. Da arte de confluir com a diversidade mundo afora e tecer redes em um pensar coletivo que tornou real seu mais lindo projeto de vida, a escrita do seu primeiro livro: Cartilha de Mezinhagem. 

Ancestralidade e Natureza: o primeiro livro da Ribeirinha compartilha os conhecimentos transmitidos de geração em geração sobre plantas que curam

“Fechei os olhos e voei nas asas da imaginação.” É como ela conta de seu movimento de busca pela cura de um câncer, quando não tinha condições nem acesso ao tratamento convencional. Naquele momento de dor, o que tinha ao seu alcance eram os ecos dos antepassados na memória. A voz e a fé da bisavó, da avó Maria do Ó de Miranda, que era Quilombola. O conhecimento das ervas que ouvia da boca da mãe quando criança. “Com essa imaginação, que nasceu de volta, eu consegui me curar.” Passou a resgatar a mezinhagem.

A ideia da cartilha veio depois. O que sabia podia curar outras pessoas, mas esses conhecimentos, vindos de uma cultura de negros escravizados, estavam se apagando. “A cartilha é um tipo de assinatura, de uma escrita, um vocabulário que está morrendo.” O livro foi organizado pelas Buiúnas, uma rede de mulheres de diferentes partes do Brasil conectadas à Amazônia por caminhos diversos. Sua idealizadora, a atriz e diretora Gabriela Carneiro da Cunha, explica que a obra é resultado de muitos encontros. Raimunda conta que o primeiro deles foi uma porta aberta pelo ambientalista e empresário Marcelo Salazar, e dentro dela estavam a escritora Eliane Brum e o fotógrafo Lilo Clareto (1960-2021).

Eliane Brum escreveu “uma história linda, que foi a minha”, diz Raimunda. Ela se refere à reportagem “Vítimas de uma guerra amazônica”, que narra a sua diáspora, junto de João, após serem expulsos da ilha do Xingu pela hidrelétrica. Raimunda conta que Belo Monte foi um segundo câncer na sua vida, “pior do que o primeiro”. O texto, acompanhado pelos registros fotográficos de Lilo Clareto, foi publicado no jornal espanhol El País em setembro de 2015, ganhou o mundo e chegou até Gabriela Carneiro da Cunha: “Foi a primeira vez que eu li a Raimunda”.

A escrita de Eliane Brum conectou as duas e serviu de inspiração para Altamira 2042, uma instauração sonora com vozes do Xingu, dirigida por Gabriela. A peça é uma das ações do projeto de pesquisa “Margens – sobre Rios, Buiúnas e Vaga-lumes”, voltado para a escuta de rios brasileiros que foram afetados por experiências de catástrofe. Através do projeto, Gabriela passou a trabalhar com Raimunda durante alguns anos.

Dos encontros entre as mulheres envolvidas com o projeto Margens, na região do Xingu e do Araguaia, surgiu o desejo de criar uma rede de “Mulheres Cobras-Grandes”, a Rede Buiúnas, e nela Raimunda encontrou apoio para ver a sua cartilha florescer. O livro foi o primeiro gesto artístico criado pela rede, com ilustrações e direção de arte de Clara Morgenroth e Natalia Machiaveli, publicado pela editora N-1, que pensa os livros para além da literatura, unindo o industrial e o artesanal para a confecção de livros-objetos carregados de significados, como é o caso da cartilha de Raimunda, que vem embrulhada em uma profecia. Uma bolsa de chita estampada com florais, uma alça maior que a outra. “Essa aqui é a desigualdade social”, explica ela, segurando a alça comprida. “Quem tem mais quer ter mais, não se importa pra esse daqui”, diz, apontando para a alça menor. Para que exista um equilíbrio e a bolsa cumpra a sua função, a alça maior precisa se curvar, a profecia se cumprindo. “Hoje, eles têm que considerar que isso aqui é uma superação, todos são iguais e vão morrer iguaizinhos.” Passa, então, a alça maior por dentro da menor, formando um “coração pulsante”.

Vida Ribeirinha: Raimunda com a Galinha Pé-de-Pano em sua casa na “Terra Prometida”

A capa da cartilha é preta, fosca, macia e aconchegante ao toque. O título irrompe em amarelo queimado, junto do nome da autora. E depois segue em preto, nas palavras e nas ilustrações. “Eu gosto de preto porque o preto na mata camufla e impõe respeito”, escreve a autora. De boas-vindas, um sorriso de Raimunda num retrato seu em aquarela, os movimentos da água no papel. Um novo mistério a cada página virada, herdados  das mulheres, que “acreditam mais nos astros, nos ancestrais, as pessoas que deixaram a biodiversidade para elas como um espírito”, como descreve no bloco de mezinhagens do bem viver.

A escrita de Raimunda é falada, uma conversa com o leitor sobre mezinhagens de cozimento, como a do Óleo do Ovo, para feridas brabas. Sobre o Chá do Boldo, para os “pingueiros”, e o da Folha de Lima, para acalmar os nervos. Sobre os segredos para extrair o Leite do Quiabo por meio da torra e caminhos para cicatrizar feridas internas com o Leite da Manga. Ler a cartilha da Ribeirinha é também mergulhar em seus pensamentos, sonhos, em um pedacinho do seu mundo, onde habitam Formigas folgadas, que só sabem viver em casa alheia, Quatis afrontosos e Sucuris feiticeiras.

Numa segunda-feira, 20 de novembro de 2023, Dia Nacional do Zumbi e da Consciência Negra, aos 63 anos, no Sesc Pompeia, em São Paulo, Raimunda lançou sua semente ao mundo. No centro da confluência, um assentamento para um encontro de ancestralidades, e nele os signos, garrafadas e mezinhagens de Raimunda. Resultado de uma escuta atenciosa de Carmim Oxorô, artiste-trans, pessoa-Serpente, que preparou o espaço para acolher esse encontro de grandezas, “dos biomas-pessoas”, e dar passagem para a “multidão de invisíveis” que as acompanhavam. “Como a gente secularmente faz, a gente terreiriza”, conclui Carmim.

O lançamento se deu em redes de descanso. Sem roteiro, protocolo, ficha técnica nem credenciais. Guiado pela oralidade, pelos cantos, pela presença dos encantados e pelos chás de cura da cartilha. Em uma das redes, muito à vontade, outra grande Árvore: o pensador, escritor e ativista Quilombola Nêgo Bispo, um encontro muito desejado por Raimunda, que diz ter a certeza de que foi também uma despedida arranjada. O pensador Quilombola partiu no dia 3 de dezembro, aos 63 anos, só 13 dias depois de estar com Raimunda. A pensadora Beiradeira passa a adotar o termo “confluência” em seus dizeres, inspirada por ele, muito consciente da importância do conceito e de seu significado para a sobrevivência dos saberes de cura e tantos outros das culturas tradicionais. “Falamos a mesma língua.”

Árvores gigantes: o escritor quilombola Nêgo Bispo conversou com Raimunda no lançamento do livro em São Paulo, 13 dias antes de morrer. Foto: Viviane Zandonadi/SUMAÚMA

Nesta sexta-feira, 23 de agosto, Raimunda realiza mais um sonho, o de lançar seu livro no Xingu, seu território de escolha. O mesmo onde vive a Sumaúma amiga, que assistiu, lá do alto, ao brotar de muitas das palavras da cartilha, e que resistiu para viver com ela esse momento. O campus de Altamira, da Universidade Federal do Pará (UFPA), se abre para receber uma intelectual que pensa o mundo a partir de percursos de conhecimento diversos da academia. O lançamento é a primeira ação cultural de SUMAÚMA em seu território-semente, e conta também com o apoio da livraria Xingu, da rede Buiúnas, da N-1 e da UFPA.

Desta vez, Raimunda estará acompanhada de João, seu parceiro de vida, das suas filhas e netas, que herdarão seu legado. Dos seus vizinhos, pescadores do beiradão. Dos amigos de luta do Rio e da cidade de Altamira. Nesse mesmo chão, onde fixou suas raízes, Raimunda já começa a confluir e abrir caminhos para um novo livro, porque ainda tem muito que eternizar. Em suas palavras: “O que eu sei, não posso levar comigo”.

Amores de profundezas: João Pereira da Silva é o companheiro de uma vida de rios, hidrelétricas e tribulações. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA


Reportagem e texto: Soll
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Douglas Maia
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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