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Seu Gui e Dona Edna (à dir.) e os filhos. A família colhe açaí na comunidade Ribeirinha de Patauateua e pede estrada até lá. Foto: Marina Lima/Delibera Brasil

Antonio Magno Vieira dos Santos é, como ele diz orgulhosamente, “filho de Bujaru”, cidade do Pará banhada pelo caudaloso Rio Guamá, que deságua na Baía do Guajará, em Belém. Bujaru é uma terra de agricultores familiares, e Magno, de 38 anos, é um deles. Filiado à Associação Bujaruense dos Agricultores e Agricultoras, a Abaa, criada nos anos 1990 por incentivo da Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, ele e dois irmãos vivem de um lote de 55 hectares, onde introduziram no final da primeira década deste século um sistema agroflorestal – que combina cultivos diversos com a preservação da floresta.

No lote, a família de Magno cria abelhas e colhe açaí, cupuaçu, laranja, limão, tangerina e maracujá. Parte da produção é beneficiada numa fábrica da associação. Graças à persistência de pequenos agricultores como ele, de famílias Ribeirinhas que vivem do açaí e da comunidade do Quilombo São Judas Tadeu, que recebeu o título de seu território em 2018, Bujaru tenta resistir ao avanço nesta região do nordeste do Pará da monocultura do dendê – que reduz a biodiversidade e faz uso intensivo de agrotóxicos.

Plantação de dendê na área rural de Bujaru. O avanço da monocultura provocou queixas de contaminação de igarapés por agrotóxicos. Foto: Marina Lima/Delibera Brasil

Magno foi um dos participantes da Assembleia Cidadã de Bujaru, realizada durante cinco sábados nos meses de abril e maio. O evento mostrou os dilemas de uma comunidade que deseja manter sua floresta em pé e seus igarapés saudáveis, mas ter mais renda e oportunidades de trabalho. Uma preocupação especial dos bujaruenses é a saída dos jovens da cidade, o que faz a população local diminuir – de 25.695 habitantes no Censo 2010 para 24.383 no de 2022. Boa parte desses moradores pratica o que vem sendo chamado de “bioeconomia”, palavra da moda em políticas públicas e objeto de um plano do governo do Pará. No entanto, eles desejam ter mais compradores para o que produzem, mais infraestrutura e acesso a programas como o Fundo Amazônia.

A Assembleia Cidadã de Bujaru foi organizada pelo Coletivo Delibera Brasil, criado em 2017 sob inspiração do conceito de “democracia deliberativa”, que propõe a participação direta das pessoas em políticas públicas – ideia que também deu origem aos orçamentos participativos. A organização sem fins lucrativos já promoveu reuniões do tipo em cidades como Belém, sobre a coleta seletiva de lixo, Fortaleza, sobre educação em tempo integral, e Niterói, no estado do Rio, sobre o acesso universal e gratuito à internet. Os encontros acontecem em parceria com as prefeituras. Ao final, uma carta com recomendações é entregue a prefeitos, vereadores e governos estaduais.

A Assembleia em Bujaru foi a primeira realizada pelo Delibera Brasil no interior da Amazônia e também a primeira em que o impacto local das mudanças climáticas foi proposto como tema. O coletivo lançou um edital para a escolha do município, e 15 prefeituras amazônicas concorreram. Quem inscreveu Bujaru na disputa foi a secretária de Agricultura, Alessandra Marvão, que é também a única engenheira agrônoma concursada da cidade. “Eu queria dar uma sacudida no pessoal e também dar visibilidade ao município, porque ninguém, nem no Pará, sabe onde é Bujaru. E a gente não consegue alcançar financiamento, programa, projeto”, explica Alessandra.

Natural de Belém, a secretária diz que trabalhar em Bujaru formou sua visão. “Não é a agricultura familiar que desmata. Quem desmata é o grande fazendeiro, é o grileiro. O agricultor familiar, o Ribeirinho, o Quilombola, só tira uma árvore quando precisa fazer uma casa”, afirma. “Quando ele tem uma precisão muito grande de dinheiro, e o madeireiro vai lá, aí ele vende às vezes uma árvore inteira por 100 reais, por 200 reais. Se tiver alternativa de renda, ele não vai desmatar. Pelo contrário, ele é um plantador de floresta.”

O agricultor Magno, a Assembleia Cidadã e a secretária Alessandra. Fotos: Marina Lima/Delibera Brasil

De certa forma, o isolamento tem sido a bênção e a maldição de Bujaru. A cidade está localizada a cerca de 50 quilômetros de Belém em linha reta, mas ir da capital à sede do município, que fica na margem esquerda do Rio Guamá, leva em torno de duas horas de carro. Até 2022, os motoristas usavam principalmente um serviço de balsa para cruzar o rio. Em 2023, o governo do estado concluiu a construção da Perna Leste, estrada que liga a parte rural de Bujaru a outra rodovia estadual que chega a Belém. A Perna Leste, que passa pela área onde há plantações de dendê, diminuiu o movimento na balsa, e a sede de Bujaru teme ficar ainda mais isolada. A nova estrada também aumentou a pressão para a venda de lotes para a dendeicultura em seu trajeto.

Árvore exótica na Amazônia, o Dendezeiro (Elaeis guineensis) começou a ser cultivado no nordeste do Pará no início deste século, mas se expandiu a partir dos incentivos do Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo (PPSPO), lançado no segundo governo Lula. Várias empresas chegaram à região, visando principalmente a produção de óleo para a fabricação de combustível.

Logo se multiplicaram denúncias de contaminação de igarapés e outras fontes de água por agrotóxicos e pela tibórnia, o resíduo da extração do óleo usado como fertilizante nas plantações. Desde 2018, um inquérito do Ministério Público do Pará investiga essas denúncias numa área que inclui Bujaru, mas ainda não foi concluído. Em 2014, uma coleta feita pelo Instituto Evandro Chagas em 18 mananciais dessa região, a pedido do MP paraense, identificou a presença de agrotóxicos em 14 deles. Em 2022, outra coleta do mesmo instituto identificou a presença acima dos limites considerados aceitáveis de tolueno, substância encontrada no petróleo, o que pode estar relacionado ao tráfego intenso de caminhões na área. Essas análises, porém, não são feitas com regularidade.

Em comparação com outras cidades vizinhas, Bujaru ainda tem uma área menor da monocultura de dendê: 1.524 hectares em 2022, segundo a plataforma MapBiomas, que monitora a cobertura vegetal no Brasil. Em Concórdia do Pará são 5.285 hectares. Em Acará, 34.469; em Moju, 35.990. O lote de Magno dos Santos fica na comunidade de Conceição do Guajará, perto da Perna Leste. Ele conta que, quando a dendeicultura chegou a Bujaru, há cerca de 15 anos – por meio da empresa Biovale (também conhecida como Biopalma), que pertencia à mineradora Vale, e foi depois vendida para a Brasil Biofuels, a BBF –, muita gente vendeu terras.

Na mesma época, porém, a Associação Bujaruense dos Agricultores e Agricultoras começou a estimular a implantação dos sistemas agroflorestais. A associação vinha de uma experiência de cultivo de arroz, que segundo Magno “não era sustentável” porque funcionava num sistema de corte e queima de árvores – “acabava a mata e ficava só a capoeira”.

Cerca de 80 agricultores familiares que têm registro no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar, o CAF, conseguem, por meio da associação, vender parte do que produzem para programas governamentais de compra de alimentos, como o da merenda escolar e o da Fundação Papa João 23, de Belém. Em Bujaru existe também a Cooperativa dos Agricultores Familiares de Bujaru, a Cooafab, que tem 42 associados e foi criada recentemente na comunidade rural do Castanheiro.

Cais na comunidade de Santana, banhada pelo Rio Bujaru. Uma das ideias dos moradores é promover o turismo comunitário. Foto: Marina Lima/Delibera Brasil

A maioria dos pequenos agricultores do município, porém, ainda está fora do associativismo, segundo a secretária Alessandra Marvão – não há uma estimativa oficial do número de donos de pequenos lotes na cidade. Na Assembleia Cidadã, alguns participantes expressaram o temor de perder benefícios sociais se saírem da informalidade: 7.253 pessoas recebem o Bolsa Família, cerca de 29% da população de Bujaru. O município recolhe pouco em impostos e é dependente da transferência de recursos federais e estaduais.

Márcio Kleber Oliveira dos Reis, biólogo que é professor concursado de Bujaru, leciona numa escola rural a 80 quilômetros da sede do núcleo urbano. Ele explica que, em sua área, muitos agricultores precisam de apoio para enfrentar qualquer burocracia, como o registro no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar. A maioria sofre com a falta de comunicação, pois o sinal de celular não chega e a internet é cara – o professor paga 260 reais por mês. Márcio conta que nessa localidade ainda há fome, principalmente em famílias que não têm lotes e vivem de diárias na terra dos outros. Com a Perna Leste, explica ele, chegaram atravessadores para comprar carvão, muitas vezes feito com madeira retirada irregularmente.

Desde 1985, segundo o MapBiomas, Bujaru perdeu pouco mais de 25% de sua área de florestas, que era de 87 mil hectares e passou para 65 mil. Algumas árvores, como a Castanheira, quase não existem mais. Não é à toa que o grande debate na Assembleia Cidadã versou sobre como melhorar a renda das pessoas e ao mesmo tempo preservar a Natureza que resta na cidade.

Jonison Chermont Neves, de 26 anos, também estava entre os assembleístas. Dos cinco filhos do Ribeirinho José Roberto Lameira Neves, que todo mundo conhece como Seu Gui, Jonison é o mais interessado em seguir a trilha do pai. Ele conta que já se viu tentado a plantar Dendezeiro, mas Seu Gui lhe disse que não era bom para a terra. Agora pensa em plantar mais cacau em meio aos pés de açaí, porque o fruto está valorizado no mercado.

Seu Gui e a mulher, Edna Chermont, que é agente de saúde da prefeitura, vivem com os filhos na comunidade de Patauateua, na beira do Rio Guamá, a 40 minutos de voadeira da sede de Bujaru. A família já plantou mandioca, mas há 15 anos tira o sustento do açaí. O patriarca se queixa da falta de opções de transporte, já que a Perna Leste é longe e a balsa, cara. Ele leva o açaí de barco para o Mercado Ver-o-Peso, em Belém, numa viagem que pode chegar a três horas. Quando o fruto está num bom preço, recebe até 300 reais pela caixa de 35 quilos.

Seu Gui com a Samaúma do seu terreno e o cais da casa dele, no Rio Guamá. Fotos: Marina Lima/Delibera Brasil

Bujaru é a quarta maior produtora de açaí do Pará, com 71 mil toneladas em 2021. Mas a maior parte dos produtores locais vende o fruto fora da cidade, sem beneficiar a polpa localmente. Seu Gui tem um carro e uma moto, que não chegam até sua propriedade. Assim como outros Ribeirinhos, ele reivindica a construção de um “ramal” de estrada até Patauateua para facilitar o escoamento da produção e afirma que isso poderia também propiciar a venda de outros produtos do seu terreno, como a semente da Andiroba e o Taperebá, que às vezes estragam no pé ou no chão. Na Assembleia Cidadã, participantes contaram que outros ramais e estradas foram construídos em Bujaru assoreando igarapés. Daqui para a frente, é preciso ter mais cuidado, recomendaram.

Os cidadãos de Bujaru têm muitos sonhos e amor à cidade. Jonison reflete sobre se seria bom criar uma cooperativa dos Ribeirinhos. Magno insiste em ter uma ponte no lugar da balsa, porque isso incrementaria o comércio no núcleo urbano. A Quilombola Alessandra Costa do Carmo, de 36 anos, gostaria que o município tivesse mais técnicos para apoiar as atividades agrícolas. Ela criou um coletivo de artesanato e busca retomar técnicas dos seus antepassados. Alessandra, a secretária, pensa em organizar com as mulheres uma cadeia de fibra de muriti, o Buriti-do-brejo, usada nos artesanatos levados pelos romeiros do Círio de Nazaré. Falou-se bastante em crédito de carbono – a Amazon, gigante americano do comércio eletrônico, financia projetos no Pará para a geração desses créditos a partir do cultivo de agroflorestas em terras degradadas. Muita gente citou o turismo comunitário como uma possibilidade, dada a beleza do lugar, banhado também pelo Rio Bujaru, um afluente do Guamá. O rio margeia a comunidade de Santana, onde há uma igreja de 177 anos.

Em certo momento da última Assembleia Cidadã, em 25 de maio, quando os participantes foram divididos em grupos e instados a sugerir o que o mundo e Bujaru poderiam fazer para mitigar a crise climática, ninguém se acomodou à modéstia. A cidade, concluiu um dos grupos, deveria ser declarada “território de preservação nacional” e países que poluíram muito deveriam investir nela.

Reunião no Quilombo São Judas Tadeu de preparação para a Assembleia Cidadã. A comunidade quer diversificar a produção. Foto: Michel Ribeiro/Delibera Brasil

A jornalista Claudia Antunes viajou para Bujaru a convite do Delibera Brasil


Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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