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Na costa do Amapá, o rio Amazonas encontra o Oceano Atlântico. A foto da pororoca foi feita em expedição aos  recifes amazônicos, um bioma único no mundo. Crédito: Marizilda Cruppe/Greenpeace

A margem equatorial do litoral brasileiro, que tem esse nome por sua localização na linha do Equador, é riquíssima em peixes, abriga 80% dos mangues do país e suas correntes e leitos, especialmente na bacia da foz do rio Amazonas, ainda são pouco estudados pela ciência. É nesse ambiente de extrema sensibilidade e incertezas sobre as consequências de um acidente que a Petrobras pretende perfurar um poço em busca de petróleo, no chamado bloco 59, a 159 quilômetros da região do Oiapoque, no extremo norte da costa do Brasil. Por contrapor interesses dentro do próprio governo, o empreendimento da estatal testa de maneira única a força do compromisso ambiental do presidente Lula e de Marina Silva, sua ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Os autos do processo no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), examinados por SUMAÚMA, mostram que o licenciamento da operação está perto do ponto de não retorno. A Petrobras intensificou a pressão nos estertores do governo Bolsonaro, ignorando um antecedente seu na foz do Amazonas, onde teve um navio-sonda arrastado ao tentar uma perfuração, há 11 anos. Uma licença do Ibama basta para que um empreendimento seja iniciado, mas ao mesmo tempo o instituto tem poder limitado, já que examina estritamente o impacto direto de um projeto em sua área imediata, como se estivesse isolado do meio socioambiental mais amplo. Com frequência, é necessária uma decisão de política ambiental do governo. É por isso que o projeto da Petrobras representa um desafio direto para Lula e Marina, no momento em que prometem correr para salvar a floresta amazônica da própria degradação sem volta – e depois de o presidente se comprometer, desde antes da posse, a cumprir os compromissos que preveem a substituição dos combustíveis fósseis para impedir que o aquecimento do planeta chegue a um nível catastrófico.

Questionados por SUMAÚMA sobre o projeto na foz do Amazonas, a Petrobras e o Ministério do Meio Ambiente enviaram, por meio de suas assessorias de imprensa, respostas que indicam a configuração de um embate entre os dois lados.

A estatal diz que, sob a nova gestão de Jean Paul Prates, apontado por Lula, não pretende abrir mão de perfurar aquela área: “A exploração de novas reservas é essencial para a manutenção dos negócios em petróleo e gás, mesmo num panorama de transição energética, que naturalmente conduzirá à priorização de fontes de energia limpa. Essas atividades de exploração e produção são realizadas sob protocolos rigorosos de responsabilidade social e ambiental, em linha com o Planejamento Estratégico da companhia, e submetidos ao controle externo dos órgãos fiscalizadores”, afirma a empresa.

Já o ministério de Marina Silva, em resposta conjunta com o Ibama, destacou um trecho do último parecer técnico do instituto sobre o projeto, publicado em 31 de janeiro, no qual se afirma que “a ausência de avaliação ambiental estratégica, como a AAAS, e de outros instrumentos de gestão ambiental, dificulta expressivamente a tomada de decisão a respeito da viabilidade ambiental da atividade, inserida em uma área de notória sensibilidade socioambiental e de nova fronteira para a indústria do petróleo”. AAAS, sigla de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, é um instrumento criado em 2012 que permitiria justamente uma avaliação mais ampla de toda a região afetada pelo empreendimento petrolífero.

Caso a Petrobras perfure o bloco 59, chegando a até estimados 2,8 quilômetros de profundidade, isso poderá representar a abertura de uma “nova fronteira” petrolífera pela estatal. A decisão de conceder ou não a licença, que potencialmente abriria uma enxurrada de autorizações em efeito cascata, está no centro do futuro da região, do destino da floresta e também do rumo da própria Petrobras: se continuará sendo uma companhia concentrada na exploração de petróleo para ganhos de curto prazo dos acionistas e do Tesouro – o que um especialista que fez parte da equipe de transição do governo Lula chamou de “estratégia kamikaze” – ou se usará sua capacidade técnica para virar uma empresa de energia voltada para os combustíveis verdes que vão predominar depois de 2030, como biomassa, hidrogênio verde e parques eólicos implantados no oceano.

Suely Araújo, que presidiu o Ibama entre junho de 2016 e dezembro de 2018 e hoje é especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, diz que qualquer vazamento de petróleo na foz do Amazonas causaria uma tragédia. “A Petrobras deveria usar as áreas que já estão abertas, e não ficar investindo em novas explorações em áreas ecologicamente frágeis”, afirma. “No governo Bolsonaro, tentaram licitar perto de Abrolhos, do lado de Fernando de Noronha e no Atol das Rocas. A foz do Amazonas é uma região não estudada, ninguém sabe na verdade o que tem ali de biodiversidade, é única no mundo com essas características, com a quantidade de sedimentos que vêm do rio. O que tem lá de verdade? Tem indícios, mas não sabemos.”

Mapa da posição do bloco 59 da Petrobras. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Um derrame de óleo na região do bloco 59 colocaria em risco sistemas naturais como os recifes amazônicos e os manguezais da Guiana Francesa e do Brasil. Foto: Elsa Palito/Greenpeace

O grande sistema de recifes

Edmilson dos Santos Oliveira, do povo Karipuna, é coordenador do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque, que tem 67 integrantes. Ele, assim como outros parentes, pescadores, ambientalistas e procuradores que atuam no meio ambiente, sente angústia e insegurança pelo que pode acontecer com o Oiapoque, uma região de mangues e campos alagados que abriga três terras indígenas e dois parques nacionais de proteção ambiental.

“A projeção que foi feita pela Petrobras não mostra a mancha de óleo vindo para a terra indígena, só mostra indo para o lado francês. E isso é inacreditável, porque a gente sabe que, a partir do momento que a maré dobrar, a maré encher, essa corrente vai vir em direção aos rios e vai entrar. Para nós, a preocupação é muito grande, porque nossos rios são cheios de várzeas, muitos açaizais de onde a gente tira o sustento, muitos lagos. Caso aconteça um acidente, a gente vai perder muita coisa”, diz ele. “Tudo isso é nossa vida. Sem o rio, a gente não existe.”

Edmilson se refere a um dos itens mais controvertidos do processo de licenciamento ambiental em curso no Ibama: os cenários de um eventual derrame de petróleo apresentados pela Petrobras não preveem sua chegada à costa do Oiapoque. Eles se baseiam na força da corrente Norte do Brasil, que tende a levar o óleo derramado para o mar da Guiana Francesa, do Suriname e da Guiana, chegando até a ilhas do Caribe como Martinica, Trinidad e Tobago e Granada – uma possibilidade muito grave por si só.

Cenários de dispersão de óleo, segundo a Petrobras. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Embora reconheçam as premissas dessa hipótese, pessoas da região como Edmilson e o oceanógrafo Ricardo Motta Pires, chefe do Parque Nacional do Cabo Orange, que protege o ecossistema da foz do rio Oiapoque, têm muitas dúvidas, que se baseiam em sua experiência no terreno. “No Cabo Orange, a amplitude da maré é, em média, de 4 metros e meio. Tem uma ilha ao sul, Maracá-Jipioca, que também é uma área de proteção integral, em que a maré chega a 11 metros. No Sudeste, para comparação, é de cerca de 1 metro. É um terreno de lama mole, que vai acima do joelho. A vegetação é de siriúba, que respira por milhões de tubinhos que ficam na superfície. Se uma mancha chegar ao litoral na maré alta, ela vai entrar mais de 1 quilômetro dentro da costa. Quando assentar, será o fim do mangue. Não tem como limpar esses tubinhos, como recuperar nada”, diz Ricardo, que comanda o parque há 20 anos.

Por causa dessa e de outras dúvidas, o licenciamento, iniciado pela companhia britânica BP, que até 2020 capitaneava a operação do bloco 59, se arrasta há nove anos. A Petrobras, que assumiu a operação em seguida, embora a BP continue como sócia, buscou apressar o processo no segundo semestre do ano passado. Num assunto em que é inevitável trafegar por muitas siglas, neste exato momento o Ibama – responsável pelo licenciamento de todos os projetos petrolíferos na costa brasileira – está muito perto de marcar a data da chamada Avaliação Pré-Operacional (APO) do Plano de Emergência Individual (PEI) apresentado pela empresa, momento em que ela deve demonstrar sua capacidade de gerenciar acidentes. Se a simulação passar no teste, a aprovação do PEI será quase automática, abrindo caminho para a emissão da Licença de Operação. Recentemente, numa reunião entre os dois lados em 31 de janeiro, a Petrobras propôs marcar a APO para antes do Carnaval, mas o Ibama disse considerar o prazo “inviável”, uma vez que a proposta do PEI feita pela companhia ainda não foi aprovada.

A margem equatorial é dividida em cinco bacias, começando no Rio Grande do Norte e chegando à foz do Amazonas. Das cinco, só há exploração de petróleo no litoral do Rio Grande do Norte. Na foz do Amazonas, perfurações anteriores em águas mais rasas não encontraram petróleo. Em 2011, num alerta sobre os riscos da exploração na região, uma sonda da Petrobras foi levada pela correnteza quando tentava achar petróleo a 110 quilômetros do litoral do Oiapoque. A estatal acabou abandonando o poço.

Bacias da margem equatorial do Brasil. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Em 2013, apenas dois anos depois do acidente, nove blocos na bacia da foz do Amazonas foram concedidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Até agora, nenhum obteve a Licença de Operação. Em 2018, a empresa francesa Total se retirou da bacia, onde pleiteava fazer perfurações em blocos próximos ao 59, depois de fracassar na obtenção da licença do Ibama por ter sido incapaz de demonstrar que poderia conter um vazamento de petróleo numa área em que os ventos são sempre fortes e a corrente Norte é muito veloz. Na época, a Total estava sob grande pressão de grupos ambientalistas, além de enfrentar novas diretrizes da União Europeia para a redução do uso de combustíveis fósseis.

Foi também em 2018 que uma expedição do Greenpeace fez imagens inéditas do que cientistas chamam de “grande sistema de recifes amazônicos”. A cerca de 200 quilômetros da costa, a formação foi descrita pela primeira vez em detalhes em 2016. Tem bancos de esponjas e presença de corais de águas profundas, onde a “pluma do Amazonas”, como é chamada a área em formato de pena dos sedimentos lançados pelo rio, permite a chegada de luz. Com tamanho e estrutura que ainda são objeto de divergências na comunidade científica, esse sistema de recifes é outra grande preocupação de ambientalistas, que apontam a necessidade de mais estudos sobre a região.

O grande sistema de recifes amazônicos. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Ouriços brancos e rodolitos (algas calcárias) encontrados no sistema de recifes amazônicos na costa do Amapá. Foto: Greenpeace

“A piscosidade da área se deve à combinação do estuário amazônico com o grande sistema de recifes amazônicos. A captura de carbono por esse ecossistema ainda está no âmbito da fronteira acadêmica”, diz o biólogo Vinicius Nora, analista de conservação sênior do WWF-Brasil. “Com esse cenário de inúmeras lacunas do conhecimento, de inúmeros fatores de importância socioambiental, podemos questionar se é o lugar para o avanço da fronteira de exploração do petróleo no final de sua era.”

No segundo semestre de 2022, quando apresentou seu plano estratégico para o período de 2023 a 2027, a Petrobras previu gastar na margem equatorial metade dos 6 bilhões de dólares (cerca de 30 bilhões de reais) destinados à descoberta de jazidas petrolíferas. A ideia exposta no plano era perfurar 16 poços na área, um número alto se comparado aos 24 previstos para a região já produtora do pré-sal.

O que motivou a cobiça pelo litoral norte do Brasil foi o caso da Guiana, país de 800 mil habitantes vizinho à Venezuela onde grandes jazidas foram descobertas no mar pela americana ExxonMobil a partir de 2015. No Suriname, também foram encontradas reservas, mas não na escala guianense, e o início da exploração de petróleo no mar foi adiado para 2027. Já na Guiana Francesa houve uma sequência de perfurações fracassadas, e a Total suspendeu sua operação em 2019. O plano de descarbonização da França baniu a exploração de combustíveis fósseis a partir de 2040 – o país já usa amplamente a energia nuclear, que tem suas próprias controvérsias.

À parte os cálculos financeiros e logísticos, a Petrobras costuma alegar que tem expertise na prevenção de desastres. Só que, quando se trata de petróleo, um único acidente traz consequências duradouras e causa a intoxicação de peixes, aves e plantas. Para citar apenas um exemplo, no ano 2000 o vazamento de 1,3 milhão de litros de um duto da Refinaria Duque de Caxias se espalhou por 40 quilômetros quadrados e contaminou todo o mangue do fundo da Baía de Guanabara. Apesar do mutirão para recuperar a área, quase 20 anos depois ainda havia depósitos de óleo na lama.

Restos de foguete encontrados no Parque Nacional do Cabo Orange, na região do Oiapoque: indício de que corrente poderia trazer mancha de óleo para o Brasil. Foto: divulgação/ICMBio

O rabo do foguete

No início de novembro de 2022, a Petrobras se mexeu para remover o que tem sido o principal obstáculo à obtenção da Licença de Operação do bloco 59: a previsão de cenários de dispersão do petróleo em caso de acidente. A “modelagem”, como esse estudo feito em computador que embasa o Plano de Emergência Individual é chamado no jargão técnico, foi entregue em 2015 ao Ibama ainda pela BP.

A modelagem da BP foi questionada pelo Ibama. Em vários documentos, o instituto afirma que, para traçar cenários mais precisos, seria necessário construir uma “base hidrodinâmica” que representasse melhor a dinâmica costeira da região, incluindo a possibilidade de que outras correntes que não a Norte carregassem resíduos de óleo para a costa do Amapá. Essa base até hoje não foi concluída.

Em março do ano passado, 28 organizações ambientais e indígenas entregaram uma representação às Procuradorias da República no Pará e no Amapá em que pediam a ação do Ministério Público em vários pontos do processo de licenciamento. No documento, elas mencionaram um trabalho de pesquisadores do Instituto de Estudos Costeiros da Universidade Federal do Pará (UFPA) que aponta cinco fragilidades na modelagem de 2015.

Entre outros pontos, o estudo afirma que a projeção usou cartas náuticas “defasadas” e que não detalhou as áreas não relevantes para a navegação. Diz ainda que não levou em consideração a complexidade da costa local, “que possui reentrâncias, estuários e manguezais com larguras que variam de 100 metros até poucos quilômetros”. E também que, nesse tipo de sistema, as correntes da maré que vão em direção à costa são mais eficientes para “empurrar” materiais do mar para o continente do que as correntes que vão da terra para o mar para levar materiais no sentido oposto.

O estudo da UFPA encontra eco na experiência de Ricardo Motta Pires, chefe do Parque Nacional do Cabo Orange. Ele conta que, em abril de 2014, sua equipe foi avisada de que haviam sido encontrados “restos de um avião” no mangue. Depois de uma busca de cinco horas apoiada por bombeiros, foram achados vários pedaços de um foguete que, mais tarde se confirmou, tinha sido lançado no mês anterior do Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa, de onde é enviada ao espaço grande parte dos satélites europeus. Nesse tipo de lançamento, partes do veículo que leva o satélite para a órbita da Terra vão se soltando pelo caminho.

Segundo o próprio Ibama, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra o parque, consultou parceiros na Guiana Francesa que estimaram que os destroços do foguete haviam caído em uma área situada 350 quilômetros a leste do bloco 59, numa distância muito maior da costa do Oiapoque. “Se a gente supõe que essa parte caiu ali e chegou ao parque, é porque existe alguma corrente que traz para a costa. Normalmente era pra ir para Guiana e Suriname, boiando, só que deve existir alguma corrente que se forma e desforma, aparece só de vez em quando. Essa é a grande interrogação diante do que eles [da Petrobras] apresentam”, diz Ricardo.

Ele afirma que, em seu período à frente do parque, também já encontrou um barco da competição de remo entre Dacar, capital do Senegal, e Caiena, capital da Guiana Francesa, cujo ocupante passou mal e foi resgatado de helicóptero. Achou ainda boias de deriva lançadas no Maranhão para estudos científicos.

Apesar das dúvidas, os documentos do processo de licenciamento mostram que o Ibama concordou em não esperar pela construção da “base hidrodinâmica” para continuar com o processo de licenciamento. Numa reunião virtual em 15 de setembro do ano passado, o representante da Petrobras já dava por acertado que não seria exigida a elaboração de uma modelagem totalmente nova para a eventual dispersão de óleo vazado do bloco 59. Prometeu, em vez disso, entregar um estudo complementar com informações mais atualizadas sobre aquela área marítima, antecipando que não haveria “grandes alterações” em relação ao documento apresentado pela BP em 2015.

De fato, o estudo que a Petrobras chamou de “complementação da modelagem”, apresentado finalmente em 7 de novembro, afirma que “não houve alterações significativas” na análise dos riscos ambientais. O documento reitera que não haveria a chegada de óleo derramado à costa brasileira, embora admita que ele poderia alcançar o litoral de países vizinhos depois de 10 dias caso não houvesse uma ação rápida de contenção. “A Petrobras informa que os novos resultados da modelagem ratificaram o comportamento indicado no estudo anterior, ou seja, confirmaram a tendência de que a dispersão de um eventual derrame de óleo seguiria um fluxo para Noroeste (NO), influenciado pela corrente Norte do Brasil, consequentemente se afastando da costa brasileira, e fluiria em direção a águas internacionais, com tempos de toque em costa de países vizinhos ao Brasil superiores a 10 dias”, diz o documento, concluindo que as hipóteses do PEI, o Plano de Emergência Individual, “permanecem adequadas e não necessitam de ajustes técnicos”.

A “complementação da modelagem” recebeu, no dia 31 de janeiro, um parecer técnico do Ibama que cita inclusive o caso do foguete no Parque do Cabo Orange e levanta dúvidas a serem esclarecidas pela Petrobras. Diz, porém, que elas não são “neste momento impeditivo para a aprovação do novo estudo”. O parecer já se refere até ao processo de licenciamento de outros blocos, como o 57, vizinho ao 59, afirmando que eles deverão aguardar as atualizações de modelagem sugeridas pelo instituto, “principalmente por se tratar de uma área extremamente sensível, pouco conhecida e com grandes desafios de logística, tanto para situações de emergência como para as atividades rotineiras”. No futuro próximo, diz a análise do Ibama, a “base hidrodinâmica” para a margem equatorial estará pronta, “permitindo abrir caminho para mais melhorias”.

Suely Araújo lembra que, em 2018, o projeto da Total não recebeu licença porque, entre outros motivos, a empresa não conseguiu provar que impediria a chegada de óleo ao mar da Guiana Francesa. “Em menos de 6 horas, pelo que dizia o processo, o petróleo já estava fora das águas brasileiras. Você estaria liberando uma área que vai ter interface com outro país. Imagina na hora que vazar, como seria?”, questiona. No caso do bloco 59, a Petrobras calcula em 10 horas a chegada de óleo ao mar do território francês e diz que foram feitas reuniões no ano passado com representantes das duas Guianas e do Suriname. Ainda que a estatal não tenha relatado os acordos feitos nesses encontros, o Ibama considerou que a exigência de “comunicação com outros países” foi atendida.

Moradora do Parque Nacional do Cabo Orange e seu filho, no município de Oiapoque: extração de petróleo pode comprometer modo de vida e ecossistema. Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace

Fabricação de expectativas

A elaboração do plano estratégico da Petrobras para este ano e os próximos coincidiu com a intensificação da presença da estatal na cidade de Oiapoque. Na reunião de 15 de setembro do ano passado, a empresa apresentou um cronograma no qual esperava obter a Licença de Operação até novembro. Em dezembro, enviou um navio-sonda à região, o ODN II, e chegou a anunciar à imprensa que a simulação de uma situação de emergência, a APO, seria realizada ainda naquele mês. Na época, Rafael Chaves, diretor de relações institucionais da Petrobras, declarou ao Diário do Amapá: “O diálogo com o Ibama é excelente. O próprio Ministério do Meio Ambiente também, todo mundo entende a importância disso para a região em termos de geração de emprego, geração de renda, mais investimentos”.

O protocolo do Ibama para o licenciamento, no que se refere à comunicação das companhias pleiteantes, diz que elas devem evitar gerar expectativas na população do lugar dos possíveis empreendimentos. Mas declarações como a de Chaves – que provavelmente deixará a diretoria com a nova gestão da estatal – explicam por que expectativas irrealistas brotam na região. Entre outubro e novembro de 2022, a empresa realizou “reuniões informativas” em 18 municípios do Amapá e do Pará. Duas delas foram mais amplas, uma no Oiapoque, onde planeja instalar a base aérea do projeto, e a outra em Belém, onde ficaria a base naval. Nas audiências, houve perguntas recorrentes sobre empregos, formação de pessoal local e pagamento de royalties.

Nessas reuniões, das quais participaram funcionários do Ibama, os porta-vozes da Petrobras foram mais contidos. Disseram que apenas na fase de produção, se for encontrado petróleo, será possível falar em royalties e capacitação de pessoal. Mas, acrescentaram, a reforma do aeródromo local, que começou a ser feita pela estatal, “ficará de legado” para o Oiapoque já nessa fase. O pequeno aeroporto, aliás, já provocou um impasse: o aterro sanitário da cidade está na rota das aeronaves que levariam a tripulação para o bloco 59, e a ideia original era removê-lo. Só que o local escolhido ficaria em frente a uma aldeia e próximo a igarapés, os “berçários de peixes”. A questão ainda não foi decidida.

“Para quem está na cidade, a chegada da Petrobras cria uma expectativa muito grande, falam que vai trazer riqueza, melhoria, emprego. Tem muita gente se mobilizando, empresários se mobilizando”, conta o cacique Edmilson. “A gente fica malvisto e malfalado também, ‘porque o povo indígena é contra o progresso’. Mas a gente tenta de alguma forma esclarecer que o povo indígena não é contra o progresso. O que a gente quer é achar uma maneira de não correr risco.”

Em relação às expectativas no Oiapoque, o mais recente relatório técnico do Ibama sobre o processo, de 31 de janeiro, faz considerações atípicas, interpretadas como um pedido de socorro à direção do Ministério do Meio Ambiente. O texto lamenta que as normas do processo de licenciamento ambiental não incluam avaliações obrigatórias da adequação de uma cadeia de produção do petróleo à região do empreendimento. O licenciamento “não é capaz de avaliar as transformações socioambientais provocadas pelo desenvolvimento do conjunto de empreendimentos. Não é capaz de prever se o petróleo é uma adequada vocação econômica para a região, compatível com as demais vocações. Não é capaz, portanto, de responder a uma pergunta fundamental: determinada região tem aptidão para o desenvolvimento da exploração e produção de petróleo, considerando toda a cadeia envolvida? Em quais condições?”, diz o parecer.

A chegada da Petrobras ao Oiapoque quase levou o aterro sanitário da cidade para perto de uma aldeia indígena e de igarapés, que são verdadeiros berçários de peixes. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

Pescando para comer

Dos 28 mil habitantes de Oiapoque, cerca de 8 mil pertencem aos povos Karipuna, Palikur, Galibi Kali´nã e Galibi-Marworno. As três terras indígenas – Uaçá, Juminã e Galibi – correspondem a 23% do território do município. Muitas das 53 aldeias tiveram que mudar de lugar por causa da construção da BR-156, que liga Macapá a Oiapoque, uma distância de quase 600 quilômetros. Quatro grandes rios ditam a vida na região: além do Oiapoque, o Uaçá, o Urucauá e o Curipi. Em 2017, foi inaugurada uma ponte sobre o Oiapoque que liga o município à Guiana Francesa.

Territórios potencialmente impactados pelo projeto de exploração. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

O cacique Edmilson mora no quilômetro 50 da BR-156 – sua aldeia foi uma das realocadas na construção da estrada. São 75 pessoas que vivem em casas de alvenaria, mas só têm eletricidade à noite, quando podem se comunicar pelo WhatsApp. O lugar é banhado por um braço do rio Curipi: há muito peixe, mas não se pesca nem se caça para comércio. “A gente janta aquele peixe do almoço ou pega mais”, conta Aniceia Forte, mulher de Edmilson. Se alguém mata uma paca, uma cotia ou uma anta, divide a carne com outras famílias. Só a roça pode ter o excedente vendido, e a atividade comercial mais comum é a produção de farinha. “A gente dorme à noite bem tranquilo mesmo, deixa a casa aberta de dia”, diz ela.

Por isso há preocupação com a chegada de gente de fora, não só funcionários da Petrobras, mas “outros que vêm se aventurando, para tentar uma vida melhor”, como diz Edmilson. Ao serem frustradas, as expectativas podem levar ao crime, como costuma acontecer em grandes empreendimentos. Eleita há dois anos, a primeira e única indígena dos 11 vereadores de Oiapoque, Lília Ramos Oliveira, a Lília Karipuna, conta que os indígenas se organizam em “mutirões de limpeza” das reservas para vigiar a pesca ilegal e a retirada de madeira. Lília, do Republicanos, diz que no ano passado, quando houve indícios de uma invasão de garimpeiros que tentavam aliciar pessoas das aldeias, as comunidades ativaram com sucesso a Polícia Federal e a Funai.

Indústria petrolífera representa uma ameaça ao meio ambiente e ao modo de vida de populações tradicionais do Oiapoque, no Amapá. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

Sem consulta prévia

A representação feita em março de 2022 pelas entidades ambientais e indígenas resultou numa “recomendação conjunta” enviada em setembro ao Ibama e à Petrobras por procuradores federais no Pará e no Amapá. No documento, três procuradores pediram a suspensão da Avaliação Pré-Operacional e também da Licença de Operação no bloco 59 enquanto não fosse apresentada uma nova modelagem de dispersão do óleo.

Os procuradores mencionaram também a necessidade de que seja feita “consulta prévia, livre, informada e com boa-fé aos povos indígenas e comunidades tradicionais interessadas”, na qual devem ser observados “os protocolos de consulta e consentimento elaborados pelas próprias comunidades impactadas”. Em 2019, os quatro povos do Oiapoque lançaram um protocolo para essas consultas, previstas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Brasil e incorporada à legislação nacional desde 2003.

Em sua resposta à recomendação, a Petrobras minimizou os impactos da primeira fase do empreendimento, dizendo que tudo que pretende é furar um poço para ver se encontra petróleo e avaliar se vale a pena explorá-lo, um processo que pode durar mais de uma década. Caso essa decisão seja tomada, disse a estatal, será necessário obter novas licenças de produção. É sabido, porém, que, uma vez concedida a licença para a prospecção, será muito difícil barrar a exploração.

Na resposta, a Petrobras afirmou também que não se previu a possibilidade de chegada de petróleo à costa brasileira porque as modelagens não fazem “simulações reversas”, isto é, não traçam cenários de ação com base em hipóteses não previstas pelas próprias modelagens. A respeito da consulta prévia, a Petrobras argumentou que ela era “uma etapa já superada”, uma vez que em 2016, quando a BP estava à frente do projeto, foram realizadas reuniões com as comunidades indígenas e quilombolas do Amapá e do Pará. “Algumas audiências públicas com a comunidade local não caracterizam consulta prévia, que é feita com cada comunidade específica”, alerta a procuradora Gabriela Tavares Câmara, uma das signatárias da recomendação do Ministério Público.

Embora prevista na legislação brasileira, a consulta prévia não é considerada um requisito para o licenciamento ambiental feito pelo Ibama. Para o Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque, porém, é uma questão de direito e de honra. “Em qualquer empreendimento que passe ou seja desenvolvido próximo à terra indígena, a gente exige a consulta”, afirma o cacique Edmilson, que tratou do assunto numa reunião em 25 de janeiro, na sede da Funai em Macapá, com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. “Eles alegam que agora é só um teste para ver se encontram, mas a gente se preocupa porque depois do teste não faz a consulta, toca pra frente e esquece”, acrescenta ele. O impasse será discutido em uma reunião marcada para 14 de fevereiro entre os representantes indígenas e a Petrobras, depois que um encontro previsto para 6 de dezembro teve que ser adiado por causa de um surto de covid-19 na Terra Indígena Uaçá.

Imagem do navio-sonda ODN II, enviado pela Petrobras à região do Oiapoque para perfurar um poço em busca de petróleo. Foto: reprodução/Facebook (Ocyan)

O impasse só cresce

Depois da apresentação da “complementação da modelagem”, o passo seguinte da Petrobras, em 8 de dezembro, foi informar a incorporação de quatro navios fretados – C-Warrior, C-Viking, MS Virgie e Corcovado – na estrutura de resposta a acidentes. Uma quinta embarcação, a Mr. Sidney, já havia sido vistoriada pelo Ibama no Rio de Janeiro e considerada apta em 6 de dezembro: 11 dias antes, ela havia sido reprovada numa primeira simulação de exercícios de contenção de óleo.

Os quatro novos navios foram vistoriados em meados de dezembro nos arredores de Belém. No dia 24 de janeiro, o Ibama entregou os relatórios das vistorias nos navios e na “base avançada de emergência” em Belém: todos foram considerados aptos para o Plano de Emergência Individual, mas a agência recomendou maior treinamento das tripulações, assim como a incorporação de equipamentos sobressalentes, pedindo que as pendências fossem sanadas “antes da eventual realização da Avaliação Pré-Operacional”. Ainda em janeiro, agências de noticiário econômico informaram que a estatal estaria gastando uma fortuna por dia, estimada em 5 milhões de reais, com o equipamento mobilizado na região: o navio-sonda, três helicópteros e os cinco navios do plano de emergência.

Nos últimos dias, a Petrobras tem informado à imprensa que a principal pendência para a emissão da Licença de Operação pelo Ibama é o licenciamento do Centro de Reabilitação de Despetrolização da Fauna, sediado em Belém, que deve ser feito pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará – estado governado por Helder Barbalho (MDB), que preside o Consórcio Amazônia Legal e procura se projetar como ambientalmente responsável, buscando obter financiamento para combater o desmatamento e produzir energias verdes no estado. O centro seria inicialmente construído em parceria com a Universidade Federal Rural da Amazônia, mas a parceria não vingou e foi contratada uma empresa privada, a Mineral. A secretaria paraense informou que o pedido de licenciamento foi protocolado em 20 de outubro e que a partir daí tem até seis meses para analisá-lo. Em 19 de janeiro, pediu à Petrobras informações complementares. O Ibama marcou uma vistoria ao centro em 14 de fevereiro.

Os cenários da modelagem, porém, ainda são considerados o maior obstáculo ao licenciamento da operação, bem como a repercussão nos países vizinhos. Basicamente, não há confiança nem sobre o caminho que uma mancha de óleo faria nem se a Petrobras conseguiria controlá-la na área do bloco 59. Em meio a qualquer decisão, existe a transição de governo: nos próximos dias, tomam posse o novo presidente do Ibama, o biólogo e deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB), e em seguida o diretor de licenciamento que ele e a ministra Marina Silva nomearem. Dificilmente, acredita-se, um diretor interino tomará uma decisão tão delicada.

“Eu não sei se sobreviveria mais de um mês no Ibama dando não a tudo quanto é licença na foz do Amazonas, mas eu acho que seria minha tendência”, diz Suely Araújo, ex-presidente do órgão. “É uma região difícil, complicada, sensível ecologicamente, o que gera de renda para o local não justifica o impacto causado. É quase uma maldição porque depois acaba a exploração e volta tudo a ser como era. Você cria uma dependência que uma hora vai acabar, e a perspectiva é acabar logo. O Brasil quer ser o último grande vendedor de petróleo do mundo, quer ficar com a bucha na mão, quer ficar com o mico na mão?”


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