Essa narrativa que eu vou fazer agora e vou apresentar para vocês fala da visão de um ribeirinho, de dentro do rio, da Volta Grande do Xingu e do TVR [Trecho de Vazão Reduzida]. Como era antes nosso rio e como está agora. Então, vamos lá. O colapso de um rio e a visão de um ribeirinho. A esperança e o colapso do nosso rio. A omissão de um empreendimento e a exclusão de um povo. Isso é de que nós vamos falar. Então, vamos lá.
A exuberância de um rio, a história desse rio não é capaz de mensurar o seu tempo de exuberância, e ninguém pode. Um rio majestoso e belo. E, ao mesmo tempo, desafiador e perigoso. Confuso de entender. Quanta água, quantas correntezas, quantos lagos, quantas piracemas, quantos peixes, incontáveis espécies. Quanta água vinda para tudo que ali está no seu leito.
Desafiando o tempo de nunca envelhecer e sempre mantendo sua forma jovial. E realizando, anos após anos, ciclos e ciclos de vidas, um berço paterno de todas as espécies que dele dependem. E, entrelaçadas nesse majestoso rio, famílias indígenas, ribeirinhos e pescadores subsistindo de suas vastas farturas imencionadas.
Quanta fartura esse majestoso rio proporcionava. Quantas praias e lazer com suas famílias, a garantia certa de um peixe assado. Na areia, as famílias pulavam e corriam com suas brincadeiras. E depois pulavam no rio e se banhavam, banhavam. Até não aguentar mais. Assim eram felizes aquelas famílias. Eram felizes daquele jeito, sem tirar e sem colocar mais nada. Eram felizes somente do jeito que o rio lhes proporcionava. Era de encher os olhos de água e de estufar o peito e dizer: estou num lugar escolhido por Deus.
Essas famílias moravam num paraíso natural e elas sabiam disso, elas sempre sabiam aproveitar o que o rio lhes dava de melhor. Certo dia, um turista me perguntou: “Quem é mais rico, os ribeirinhos ou os turistas com todo o empresariado que se mostra?”. Não me deixou nem responder, ele disse: “Vocês, vocês, pois moram às margens de um rio dessa grandeza e belo”. E disse mais: “Igual a esse são poucos com tanta beleza”. E ele tinha razão. Naquele momento, vi que o empresário ficou com inveja dos ribeirinhos. E fiquei muito bem com meu ego. Porque aquele empresário sabia que não podia desfrutar daquela maravilha por muito tempo. Tinha que voltar para sua empresa, trabalhar, trabalhar, para que um dia, sabe-se lá quando, ele pudesse voltar àquele rio majestoso. Enquanto nós, ribeirinhos, nunca arredamos daquele rio com suas maravilhas. Porque ali estão nossas vidas.
Dia após dia, nunca arredamos os pés das margens desse rio, propulsor de tantas riquezas. E os anos passavam e aquele rio, imponente, majestoso, flutuava em suas encostas. Com tanta água, tantas vidas que, de repente, viraram alvo de olhares obscuros. De empresas apoiadas por governos que juntaram forças, somente no intuito de transformar aquela imensidão de água em cifras. Com a desculpa de que o Brasil precisava daquele rio para lhes gerar energia. E fizeram estudos, especularam e investiram nessa ideia, mesmo com tantas negativas e indisposições com esse projeto. De todos os lados, indigenistas, ribeirinhos, entidades ambientais, ONGs, religiões e outras negativas. Por todos os lados, pois todos sabiam que tal feito seria irreversível e causaria tantas tragédias de todas as formas. Mas não, não foram capazes de mudar a ideia de cortar o nosso rio e fizeram estudos errôneos apresentados às autoridades licenciadoras e lhes mostraram amplas vantagens para o país. Como se o Brasil estivesse no escuro.
Mas o posicionamento de forças governamentais foi mais forte que todos os pedidos de negativa e absorveram erroneamente a ideia. E cortaram nosso rio, majestoso e imponente, ao meio, somente com o intuito de alavancar seus cofres. Sem necessidade, cortaram nosso rio. Agora era questão de tempo para que aquele rio, imponente, exuberante, entrasse em colapso. E aos poucos aquele rio foi definhando, definhando.
Aquele mesmo rio, imponente, exuberante por séculos e séculos, pronto para servir e dar boas-vindas a quem nele passasse, agora se definhava. E sangrado ao meio, sem forças para lutar, em ver o seu fluxo de vida ser desviado e gerar riquezas para pessoas que nunca o conheceram e nunca colocaram os pés em suas margens. Angustiado está esse rio, pois as vidas ribeirinhas que sempre subsistiram do seu leito o imponente rio já não tem mais forças para sustentar. Desamparadas estão essas famílias, ficando desamparadas essas famílias e todas as espécies viventes, à mercê de mitigações que nunca chegam. Projetos elaborados sem comprovação de eficácia para as vidas aquáticas tentam reparar a desordem que fizeram. Sem êxito. Pois a solução é deixar o imponente rio fluir naturalmente. Assim também os povos habitantes daquele rio ficaram excluídos de seu hábitat, à mercê de mitigações. E pedem socorro a todos que aparecem.
Autoridades não nos veem, mas estamos aqui, excluídos de nosso hábitat, sem forças, tal qual nosso rio, entrando em colapso aos poucos. Autoridades, não nos deixem à mercê desses empreendimentos que nos omitem nossos direitos. Que façam cumprir suas condicionantes de forma justa com todos os impactados daquele rio. Pois no momento que cortaram ao meio o nosso rio e o sangraram também fomos sangrados, pois o rio era nossas vidas, ali tínhamos tudo. Como dizia nosso saudoso cantor e compositor Belchior, eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais. Assim era nosso povo ribeirinho, livre como pássaros. É assim que o ribeirinho Raimundo da Cruz e Silva vê a história do nosso rio Xingu, cortado ao meio, sangrado.
Cortaram. Cortaram nosso rio imponente ao meio.
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica: Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray. Edição: Diane Whitty
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Raimundo da Cruz e Silva e sua mulher, Rosilene Sousa dos Santos, navegam preocupados por um rio Xingu que, sob a influência de Belo Monte, já não pode sustentar as vidas ribeirinhas. Foto de 15 de janeiro de 2023: Soll Sousa/SUMAÚMA