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O povo Sarayaku, na Amazônia equatoriana, luta há quatro décadas para manter seu território preservado. Foto: Misha Vallejo

O ano de 2024 começou com um marco para a proteção dos Indígenas da região amazônica. Depois de uma longa luta no sistema de Justiça, o povo Sarayaku, no Equador, conseguiu que seja criado um plano para retirar os explosivos colocados por petroleiras e que a etnia seja consultada para qualquer intervenção em seu território. A conquista marca um novo capítulo na luta judicial e política dos Sarayaku, que há mais de 40 anos vêm defendendo com sucesso seus direitos contra as tentativas do Estado equatoriano e das empresas petroleiras de abrir seu território, localizado no leste do Equador, para a prospecção e exploração de combustíveis fósseis. A conquista, porém, não se limita a esse povo: ela ecoa em toda a Amazônia e abre caminhos para manter a floresta viva.

É um capítulo histórico em uma longa trajetória de luta e resistência. Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que, ao autorizar a exploração de petróleo no território Sarayaku, o Equador havia desconsiderado o direito do povo de ser escutado em consulta prévia, de forma livre e informada. Portanto, a Corte Interamericana ordenou que o Estado realizasse um processo genuíno de consulta à população antes de considerar a possibilidade de dar sinal verde a qualquer projeto relacionado a hidrocarbonetos no território. Essa talvez seja, ainda hoje, a decisão mais importante já proferida por um tribunal internacional sobre direitos indígenas. Entretanto, o governo equatoriano até agora não cumpriu integralmente a decisão. Assim, o povo Sarayaku teve que recorrer ao Tribunal Constitucional do Equador para exigir que o fizesse. Em 20 de dezembro de 2023, o tribunal finalmente se pronunciou, determinando que o Estado cumpra as ordens dadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos há mais de uma década.

Não se trata de uma decisão ou litígio qualquer. O caso Sarayaku se tornou um ícone da luta judicial e política dos povos da Amazônia e de outras regiões do planeta e teve influência direta em diversas causas, do ativismo global contra a mudança do clima à difusão da ideia dos direitos da natureza em todo o mundo. Portanto, o capítulo mais recente dessa história de luta e de resistência tem importância e pode oferecer lições a muitos movimentos e regiões.

Os Sarayaku propõem a Kawsak sacha, ou floresta viva, para assegurar que seu território seja gerido respeitando todos os seres vivos. Foto: EFE/José Jácome

Para compreendê-lo, é necessário viajar no tempo e no espaço e desembarcar, há mais de duas décadas, no coração da Amazônia equatoriana. Em 1996, o Estado equatoriano fez a concessão de um bloco de petróleo ao consórcio formado pelas empresas argentinas CGC e a Petrolera Argentina San Jorge. Pelo menos 65% da área coberta pela licença de prospecção e extração de petróleo é território que havia sido reconhecido como pertencente ao povo Sarayaku quatro anos antes. Como a Corte Interamericana declarou em sua decisão, o Estado concedeu a licença à CGC sem cumprir seu dever de realizar uma Consulta Prévia, Livre e Informada ao povo indígena. Em 2002, trabalhadores da empresa petroleira, acompanhados pelas Forças Armadas do Equador, ingressaram no território Sarayaku, mais uma vez sem permissão.

O povo Sarayaku lançou então uma campanha de defesa judicial e política para proteger seus direitos e os de seu território. Por meio de uma estratégia nacional e internacional que combina ações judiciais e mobilizações sociais, a etnia vem se opondo sistematicamente à entrada de empresas e à exploração de petróleo em seu território.

Desde o início, os líderes e porta-vozes sarayaku deixaram claro que a defesa do direito à consulta não era o fim, mas sim um meio de sua resistência. A finalidade é a defesa da floresta viva, cujos direitos são inseparáveis dos direitos dos seres humanos. Em outras palavras, a exploração de petróleo viola não apenas o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, mas o direito da própria terra de permanecer íntegra e continuar a regenerar a vida humana e não humana.

A campanha sarayaku reivindica a proteção daquilo que é conhecido em kichwa [quíchua] como kawsak sacha: a floresta viva habitada e animada por animais de todos os tipos, árvores de copas enormes, fungos de inúmeros matizes, plantas multicoloridas, o rio Bobonaza e outras águas, montanhas e rochas da floresta, todos os quais têm vida, na visão sarayaku. Portanto, as decisões do povo são tomadas em consulta não apenas com todos os integrantes do povo, mas também com a floresta viva.

Com o apoio de organizações como a Fundación Pachamama e advogados como o equatoriano Mario Melo, o povo recorreu primeiro aos tribunais do Equador para defender seus direitos e os de seu território. Mesmo assim, o consórcio formado pela CGC e pela Petrolera Argentina San Jorge continuou a avançar com a exploração de petróleo, chegando a enterrar quase 1,5 tonelada de explosivos que eles esperavam detonar como parte do trabalho de prospecção. Por isso, os Sarayaku e seus advogados, com o apoio do Centro para a Justiça e Lei Internacional, levaram a questão ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, primeiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2003) e depois à Corte Interamericana de Direitos Humanos (2004). Como é comum nesse tipo de processo, a Corte demorou vários anos para examinar o caso em profundidade. Quando finalmente o fez, entre 2011 e 2012, estabeleceu um precedente mundial para a proteção dos direitos indígenas.

Um dos fatos sem precedentes do processo da Corte Interamericana é que ele incluiu não apenas uma audiência pública em sua sede, na Costa Rica, mas também a primeira visita da Corte a um território indígena. Durante a visita da Corte ao território amazônico dos Sarayaku, os juízes fizeram perguntas e ouviram as reivindicações do povo. Na audiência, realizada em San José, o sábio Sabino Gualinga, líder espiritual dos Sarayaku, explicou em viva voz de que maneira a entrada sem consulta da empresa petroleira e do Exército equatoriano violou os direitos e levou ao deslocamento e até mesmo à morte de integrantes do povo Sarayaku e de centenas de outros seres vivos da floresta.

Em 2012, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu em favor do povo Sarayaku e condenou o Estado equatoriano a criar normas que lhe garantissem o direito de ser consultado, a remoção dos explosivos, bem como o pedido de desculpas do governo e o pagamento de uma indenização. Embora os governos equatorianos que se sucederam tenham acatado sem muito entusiasmo o pedido público de desculpas e pago a indenização, eles não removeram os explosivos nem criaram normas que regulamentassem e protegessem o direito dos povos indígenas à Consulta Livre, Prévia e Informada.

Ao contrário de outros litigantes, que às vezes se desmobilizam prematuramente quando obtêm uma decisão favorável histórica, o povo Sarayaku jamais deixou de fazer campanha pela proteção de suas vidas e da floresta viva. De lá para cá, seus esforços tiveram quatro características que oferecem lições para outros casos e movimentos.

Em primeiro lugar, a campanha continuou a combinar estratégias judiciais e políticas. A aposta no processo diante do Sistema Interamericano foi sempre acompanhada por atividades de âmbito político, começando pela participação decisiva dos líderes sarayaku no movimento e em organizações indígenas nacionais (como a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, Conaie) e regionais (como a Coordenação Indígena da Bacia Amazônica, Coica). Sua articulação com a Conaie contribuiu para a incorporação dos direitos da natureza à Constituição equatoriana de 2008, a primeira do mundo a reconhecer os direitos dos seres não humanos.

Em segundo lugar, embora se mantenha enraizado em seu território e em sua tradição cultural e espiritual, o povo Sarayaku vem usando criativamente os meios de comunicação e as tecnologias digitais. Por meio de documentários, vídeos, blogs, portais da web, webinars, petições virtuais e outros formatos altamente eficazes e criativos, eles capturaram a atenção de uma audiência cada vez maior de parceiros nacionais e internacionais.

Em terceiro lugar, o povo Sarayaku construiu pontes e influenciou novos movimentos sociais, desde a mobilização de jovens para a ação climática até a crescente onda de campanhas e processos em defesa dos direitos da natureza. Um exemplo particularmente revelador do impacto e da expansão do ativismo dos Sarayaku foi a presença de mulheres líderes desse povo na crucial Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de Paris, em 2015, durante a qual elas chamaram a atenção do mundo ao remar pelo lago Bassin de la Villette em uma canoa construída no território Sarayaku e transportada a Paris para a ocasião.

Em 2015, a comunidade Sarayaku construiu a ‘Canoa da Vida’ e a transportou do Equador a Paris para mostrar a Kawsak sacha na COP-21. Foto: Thomas Samson/AFP

Portanto, a estratégia dos Sarayaku não se limitou à via legal. Isso não significa que eles não tenham persistido no uso do direito. Na verdade, o capítulo mais recente de seus litígios e a decisão do Tribunal Constitucional do Equador oferecem uma quarta lição a outros casos e movimentos: para que as vitórias judiciais não fiquem no papel, os movimentos e seus advogados precisam continuar a pressionar e a litigar para que as decisões favoráveis sejam cumpridas. Foi o que aconteceu no litígio dos Sarayaku, como demonstra o recurso que o povo e seus consultores jurídicos apresentaram ao Tribunal Constitucional com o objetivo de fazer cumprir as ordens da Corte Interamericana.

O Tribunal Constitucional do Equador ordenou que o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos lidere o cumprimento das demais ordens da Corte Interamericana, por meio de um procedimento que respeite a Consulta Prévia, Livre e Informada. A consulta ao povo vai girar em torno de duas questões: a remoção de explosivos do território e a regulamentação da Consulta Prévia, Livre e Informada na legislação equatoriana. O povo Sarayaku começará a avaliar com o Estado as maneiras de remover os explosivos que, passadas mais de duas décadas, ainda estão enterrados no território Sarayaku, o que impede a circulação e o desenvolvimento dos integrantes do povo e dos seres não humanos que vivem na floresta.

Nesse exercício devem ser avaliados os processos participativos que vêm sendo realizados com o povo Sarayaku desde 2012. Por sua vez, o ministério deve conduzir um processo de coordenação entre instituições para que uma lei nacional de Consulta Prévia, Livre e Informada seja adotada, a fim de garantir que nenhum outro povo indígena no Equador tenha seus direitos de escuta e consentimento violados.

Nos próximos meses, o povo Sarayaku iniciará um processo de consulta para a construção de um programa que garantirá a remoção de explosivos e o saneamento de seu território. Como têm feito desde o início, seus representantes pedirão o reconhecimento de que seu território é um ser vivo, inteligente, consciente e dotado de direitos, como argumentou José Gualinga Montalvo, um dos autores deste texto, na entrevista para a série que SUMAÚMA publica em colaboração com o More Than Human Rights (MOTH) Project, da Universidade de Nova York.

A presença de explosivos não apenas impede a circulação de seres humanos pelo território como afeta os seres não humanos que convivem com o povo Sarayaku na Amazônia. Portanto, o reconhecimento da floresta viva é uma das formas de reparação que os Sarayaku exigiram e continuarão a exigir do Estado equatoriano.

Esse processo, sem dúvida, marcará um novo momento na mobilização do povo Sarayaku. Em meio à tríplice crise planetária – colapso do clima, redução da biodiversidade e aumento progressivo da poluição – o caso pode continuar não só a inspirar respostas, mas também a propor novas perguntas: de que maneira podemos consultar e ouvir genuinamente não apenas os grupos humanos, mas também o mundo mais-que- humano? Como podemos por fim reconhecer que o bem-estar e os direitos dos seres humanos dependem do bem-estar e da proteção dos direitos da rede de vida da qual fazemos parte?

Essas são algumas das perguntas que o povo Sarayaku faz não só ao sistema jurídico e ao Estado, mas a todas as pessoas. Perguntas urgentes que demandam respostas urgentes.

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José Gualinga Montalvo é assessor do Tayjasaruta (Conselho de Direção dos Sarayaku) e foi seu Tayak Apu (presidente). Ele é coordenador da iniciativa Kawsak Sacha

Carlos Andrés Baquero-Díaz é investigador do Centro de Direitos Humanos e Justiça Global de Nova York e faz parte da equipe de coordenação do projeto More Than Human Rights (MOTH) da NYU Law

César Rodríguez-Garavito é professor de Clínica Jurídica e Presidente do Centro de Direitos Humanos e Justiça Global da New York University School of Law. Ele é o diretor fundador da Earth Rights Advocacy Clinic, do Future of Rights and Governance Program, do Climate Litigation Accelerator e do projeto More Than Human Rights (MOTH) da NYU Law


Checagem: Plínio Lopes
Tradução para o português: Paulo Migliacci
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Charlie Coombe
Tradução para o espanhol (legendas): Meritxell Almarza
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Os Sarayaku defendem a ideia de que seu território é um ser vivo, inteligente, consciente e dotado de direitos. Foto: Misha Vallejo

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