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‘Quando um Yanomami se torna um xamã é assim que os espíritos descem até ele.’ Por Joseca Mokahesi (2011)/Coleção Masp

O samba-enredo e o enredo que serão levados à Avenida pelo Salgueiro fazem referência a vários termos da cosmologia Yanomami. Como concebem o mundo e descrevem sua origem, o território que habitam e sua relação com a floresta, os outros seres da natureza e os napëpë (não indígenas). SUMAÚMA preparou um glossário para que nossas leitoras e leitores possam compreender o espetáculo que se desenrolará na Avenida. Ele foi elaborado a partir dos livros A Queda do Céu e O Espírito da Floresta (Companhia das Letras), ambos escritos em coautoria entre o xamã, pensador e líder Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert. A parceria dos autores se iniciou há quase 50 anos, e os livros têm como alicerce uma amizade profunda, o compromisso político pela vida dos Yanomami e um trabalho íntegro e rigoroso de Bruce para alcançar o pensamento de Davi ao traduzir suas palavras para outras linguagens-mundos.

Yanomami

Os Yanomami habitam territórios no Brasil e na Venezuela e formam um dos maiores grupos indígenas no Brasil, com uma população de cerca de 31 mil pessoas nos estados do Amazonas e de Roraima. Vivem hoje da caça, pesca, coleta, agricultura familiar e, em algumas aldeias, de alimentos vindos da cidade. Sua terra indígena, homologada em 1992, é a maior do país, com mais de 9,6 milhões de hectares.

O termo “Yanomami” deriva da simplificação de Yanomamɨ tëpë, que significa “seres humanos”, e é utilizado por alguns grupos que vivem na porção oeste do território para se referirem a si mesmos. A palavra “Yanomami” hoje é usada para definir toda a etnia, mas a expressão “ser humano” tem variações entre as seis línguas que compõem a família linguística Yanomami, que se identificam como Yanomam, Yanomamɨ, Sanöma, Ninam, Ỹaroamë e Ỹanoma.

Segundo sua cosmologia, os Yanomami foram criados por Omama depois que seus ancestrais, os yaroripë, perderam sua forma original, que era ao mesmo tempo humana e animal. Suas imagens vitais – utupë, parte constitutiva de todos os seres – transformaram-se em parte do elenco de entidades só visíveis aos xamãs, os xapiripë. Já a pele deles converteu-se em animais de caça, os yaropë, que continuam sendo portadores de características humanas, como subjetividade e sociabilidade.

Omama e Yoasi

Omama é o criador dos Yanomami, que são filhos de Omama e de sua esposa, Thuëyoma, “um ser peixe que se deixou capturar na forma de uma mulher”, segundo conta Davi em A Queda do Céu. “Omama tinha muita sabedoria. Ele soube criar a floresta, as montanhas e os rios, o céu e o sol, a noite, a lua e as estrelas. Foi ele que, no primeiro tempo, nos deu a existência e estabeleceu nossos costumes. Ele também era muito bonito”, diz Davi. Logo no começo do desfile, Omama será representado por uma estátua de 20 metros de altura.

No início, só havia Omama e seu irmão, Yoasi, que “vieram à existência sozinhos”, sem pai nem mãe. Yoasi, invejoso, se tornou antagonista de Omama. Deixou na terra entidades maléficas portadoras de destruição. É atribuída a Yoasi a origem da morte, das doenças e de todos os males existentes, enquanto Omama queria que as pessoas fossem imortais como o ser do sol, Mothokari. Diversas vezes Davi atribui a Yoasi o surgimento dos napëpë (não indígenas). No samba-enredo do Salgueiro, Yoasi é comparado às “famílias de bem”, uma alusão velada à da extrema direita bolsonarista, que cultua armas e despreza a floresta e seus povos.

Hutukara

Título do samba-enredo, é o termo usado pelos xamãs yanomami para designar o primeiro céu, que desabou em tempos ancestrais, formando a terra atual. O primeiro céu caiu depois de uma série de transgressões cometidas pelos yaroripë. Por isso o temor de que o atual céu caia novamente, medo que passou a ser associado à destruição e à poluição do planeta pelos não indígenas. Omama, o criador dos Yanomami, moldou a nova terra, “mais sólida”. Para evitar que ela desabasse, ele plantou nas profundezas “imensas peças de metal” que estavam no antigo céu e que não deveriam ser extraídas pelos napëpë.

Hutukara é também o nome de uma das dez associações Yanomami. Criada em 2004, a Hutukara Associação Yanomami é presidida por Davi Kopenawa e luta pelo direito dos povos Yanomami e Ye’kwana, habitantes da Terra Indígena Yanomami. Em seu logotipo está representado o mundo atual com a floresta, as montanhas, a terra e os rios. Na lateral dessa imagem se veem dois adornos feitos de pena de arara que simbolizam os xamãs, responsáveis por proteger a terra-floresta (urihi a) e dar sustentação ao atual céu, evitando sua queda.

Logo da Hutukara. Presidida por Davi Kopenawa, é uma das dez associações indígenas no território Yanomami

Urihi a

A palavra designa a floresta e seu chão, ou “terra-floresta”. Refere-se também, mais especificamente, à região de nascimento ou de moradia atual de uma pessoa. A terra-floresta é uma entidade viva e, portanto, não deve ser tratada como mercadoria. “O que vocês chamam de ‘natureza’, na nossa língua é urihi a, a terra-floresta, e também sua imagem vista pelos xamãs, Urihinari a. É porque essa imagem existe que as árvores estão vivas. O que chamamos de Urihinari a é o espírito da floresta”, diz Davi no livro O Espírito da Floresta.

O xamã explica que na floresta existem në ropë, o “valor de fertilidade”, que seria sua riqueza, e um “sopro vital” (wixia), que garante o poder de fazer as plantas crescerem e terem vitalidade. A terra-floresta sente dor quando suas árvores são derrubadas ou incendiadas, substituídas por uma terra seca, árida e quente.

Em seu significado mais específico, urihi a designa os espaços concêntricos ligados por trilhas que vão da moradia coletiva dos Yanomami aos locais de caça, de coleta e de roça, que podem ser próximos ou distantes. Como define Bruce Albert, trata-se de um “território transportável”, em que o modelo é reproduzido ao longo de migrações dos Yanomami. Essa é mais uma razão pela qual a invasão garimpeira e madeireira ameaça a vida desses povos, já que as atividades criminosas restringem, contaminam e destroem os espaços para caçar, coletar e plantar – os espaços em que a vida se move em entrelaçamentos.

Xapiripë

Omama criou os xapiri a pedido de sua mulher, Thuëyoma, preocupada em como curar as crianças. Os xapiri são convocados para sanar doenças e regular o ritmo da natureza, ditando os tempos de chuva ou de seca, garantindo o equilíbrio do mundo. Nas curas xamânicas, enfrentam as entidades maléficas, “que veem os humanos como sua caça (…) e se apossam de sua imagem vital para devorá-los”, como descreve Bruce Albert em O Espírito da Floresta. Nas palavras de Davi Kopenawa, “Os xapiripë são donos da ‘natureza’, do vento e da chuva. Quando os filhos e as sobrinhas dos espíritos do vento brincam na floresta, a brisa circula e tem frescor. (…) Se os xapiripë estão longe no céu, sem ser chamados pelos xamãs, a floresta fica quente. As epidemias e os espíritos maléficos se aproximam. Os humanos, então, não param de adoecer”.

Os xapiri pë, que estarão representados na comissão de frente do Salgueiro e em carros alegóricos, “são minúsculos como poeira de luz”, miniaturas de pessoas que usam ornamentos brilhantes e coloridos. “Os espelhos sobre os quais dançam são imensos. Seus cantos são magníficos e potentes. Seu pensamento é direito, e trabalham com empenho para nos proteger”, diz o xamã.

Os xapiri são muito numerosos e não morrem nunca. Correspondem às imagens originais (utupë) dos ancestrais míticos dos Yanomami, os yarori pë, e de todos os entes. Existem xapiri de todos os seres, de grandes árvores, como a sumaúma, de animais, das pedras, folhas, águas, da lua, do sol, dos trovões, e existem até os xapiri dos napëpë (não indígenas). “Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram”, diz Kopenawa.

Os xamãs, aqueles que possuem os xapiri e os enxergam, são chamados por sua vez de xapiri thëpë.

Yãkoana

É o pó feito a partir da resina de árvores do gênero Virola, que tem propriedades alucinógenas e é um dos mais utilizados pelos xamãs yanomami para entrar em contato com os xapiri e convocá-los. Os xapiri, por sua vez, se alimentam de yãkoana. O pó é soprado na narina do xamã por outro homem, com o uso de um tubo de 60 a 90 centímetros feito do caule de palmeiras ou de um tipo de gramínea conhecida como canaflecha.

Davi Kopenawa promete levar xamãs para fazer o ritual na Avenida. Em O Espírito da Floresta, ele diz temer que os jovens Yanomami “se preocupem demais com as mercadorias e as conversas dos brancos” e não queiram se iniciar como xamãs. “Alguns têm até medo da força do pó yãkoana e, às vezes, recusam-se a se tornar xamãs. Temem os espíritos e receiam sua hostilidade”, escreve ele. Sem que as novas gerações vejam os xapiri e escutem o que eles dizem, as palavras dos antigos se perderão, e a floresta e seu povo ficarão desprotegidos.

‘Quando nascem as sementes da yãkoana, os tucanos e os macacos-aranha se alimentam dela. Nós, Yanomami, também a usamos para fazer xamanismo entre nós.’ Por Joseca Mokahesi (2018)

Napëpë

Na língua yanomam, napë quer dizer pessoa não Yanomami, inimigo, estrangeiro. Acrescido pelo , que faz o plural – napë pë –, se refere aos inimigos, brancos, estrangeiros. Com o desaparecimento de quase todas as etnias vizinhas dos Yanomami no início do século 20, após a invasão de suas terras pelos brancos, o termo napë passou a designar sobretudo os não indígenas. A associação entre não indígenas e inimigos não parece trivial. Davi Kopenawa também chama os brancos de “povo da mercadoria”.

Xawara

Xawara significa “epidemia” e os Yanomami acreditam que ela se propaga na forma de fumaça, a “fumaça de epidemia” (xawara wakixi). Desde o início de seu contato com não indígenas, nas primeiras décadas do século 20, que trouxeram ondas seguidas de doenças, essa fumaça foi associada a ferramentas de metal, como facões, que lhes eram dados como objetos de troca, e à queima da pólvora.

Os contatos começaram através de missões religiosas e do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e aumentaram durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985). A ditadura construiu em terras yanomami uma rodovia nunca acabada, a Perimetral Norte, e deu início à exploração mineral, que prosseguiu com o garimpo ilegal. O garimpo teve um período dramático entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990, com a invasão de cerca de 40 mil garimpeiros. Mesmo depois da homologação do território, em 1992, essa invasão continuou. Em 2016 explodiu novamente e se agravou severamente durante o governo Bolsonaro (2019-2022).

Como explica Davi Kopenawa, a “fumaça de epidemia” também brota quando o metal e o petróleo escondidos por Omama no “mundo de baixo”, a antiga terra que fica sob a Hutukara, são explorados. Os Yanomami acreditam que foi Yoasi, o antagonista invejoso de Omama, quem revelou aos não indígenas a existência desses minérios. “Os brancos ficaram muito numerosos e começaram a destruir a floresta e a sujar os rios. Fabricaram quantidades de mercadorias. Construíram carros e aviões para correrem mais depressa. E para fabricar tudo isso eles cavaram a terra para arrancar as coisas que estão lá desde que Omama a as escondeu. Foi assim que começaram a espalhar fumaças de epidemia que estragaram a terra e adoeceram seus habitantes”, escreve Kopenawa em O Espírito da Floresta.

Ya temi xoa

Refrão do samba do Salgueiro, a expressão significa “Eu ainda estou vivo” e refere-se também ao estado de boa saúde, física, mental e emocional. Um dos pedidos de Davi Kopenawa aos criadores do enredo foi que não retratassem seu povo apenas como vítimas – mas como resistência. Os Yanomami são aqueles que seguram o céu e dão sustentação à vida da floresta e do planeta.

A letra do samba-enredo

Ya temi xoa, aê-êa
Ya temi xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar

É Hutukara, o chão de Omama
O breu e a chama, deus da criação
Xamã no transe de yãkoana
Evoca xapiri, a missão
Hutukara ê, sonho e insônia
Grita a Amazônia antes que desabe
Caço de tacape, danço o ritual
Tenho o sangue que semeia a nação original

Eu aprendi o português, a língua do opressor
Pra te provar que meu penar também é sua dor
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora
Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora

Tirania na bateia, militando por quinhão
E teu povo na plateia vendo a própria extinção
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém
Yoasi que se julga família de bem
Ouça agora a verdade que não lhe convém

Você diz lembrar do povo Yanomami
Em 19 de abril
Mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome
Quando o medo me partiu
Você quer me ouvir cantar em Yanomami
Pra postar no seu perfil
Entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito
Nem a pau, Brasil

Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom
Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom
Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso
Não queremos sua ordem, nem o seu progresso
Napê, nossa luta é sobreviver
Napê, não vamos nos render

Ya temi xoa, aê-êa
Ya temi xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar

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Reportagem e texto: Ana Maria Machado e Claudia Antunes
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo de edição, montagem e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Omama pescando Thuëyoma, a filha de Tëpërësiki, o ser do fundo das águas. O primeiro Yanomami surgiu a partir do namoro de Thuëyoma com Omama. Por Ehuana Yaira (2023)

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