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Ilha de Marajó, no Pará, onde um projeto de carbono em reservas extrativistas federais é contestado na Justiça Federal. Foto: Pablo Albarenga

A expectativa de ganhar milhões de reais fazendo o que já fazem sem receber remuneração – cuidar da floresta amazônica – pareceu sedutora aos líderes da Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará. Em dezembro de 2022, 30 deles, representando as sete associações da TI, passaram três dias em São Paulo a convite da Carbonext, desenvolvedora de projetos para geração e comercialização de créditos de carbono a partir da conservação de florestas. Nas reuniões, a direção da empresa detalhou a proposta de um “compromisso de parceria” que lhe daria exclusividade, por no mínimo 30 anos, na gestão do carbono capturado pela vegetação do território de 3,28 milhões de hectares, uma área do tamanho da Bélgica e 21 vezes maior do que a da capital paulista. O contrato foi assinado já no mês seguinte, em janeiro deste ano, num encontro na aldeia Kriny, na cidade paraense de Bannach. Porém, em maio, quatro meses depois, acabou desfeito pela própria Carbonext. Segundo a empresa, para proteger a sua reputação.

No encontro em Bannach, com a participação de caciques de quase todas as mais de 70 aldeias da terra Kayapó, em 21 e 22 de janeiro, foi discutida até mesmo a venda antecipada de créditos, para sustentar o território enquanto o projeto de carbono fosse elaborado e certificado – um processo que pode durar três anos. Lideranças indígenas que pediam mais tempo para analisar a proposta foram pressionadas pela maioria, que argumentava que o contrato era uma oportunidade de obter recursos e superar o garimpo ilegal, que divide o grupo – os Kayapó, ao lado dos Munduruku e dos Yanomami, estão entre os povos mais afetados pela garimpagem, segundo um estudo de 2022 da rede de pesquisadores MapBiomas. Como acontece também com os Munduruku, parte das lideranças Kayapó está envolvida na mineração ilegal.

Ainda em janeiro, as tratativas do projeto de carbono levaram à abertura de um procedimento extrajudicial de apuração dos fatos pelo procurador da República Rafael Martins da Silva, da cidade paraense de Redenção. Embora avaliasse que, “em princípio”, não havia ilegalidade no contrato, o procurador manifestou dúvidas sobre “a real realização de consulta prévia, livre e informada” aos cerca de 4.500 habitantes do território Kayapó, como preveem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a legislação brasileira.

No início de maio, Rafael Martins informou que a Carbonext concordara em desfazer o contrato até que ficassem prontos o protocolo de consulta e o Plano de Gestão Territorial e Ambiental da terra Kayapó. Um decreto de 2012 tornou o plano obrigatório para todas as terras indígenas do país, mas o esvaziamento das estruturas de apoio aos povos originários durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL) atrasou a implementação dessa política pública. Em meados de maio, os diretores da Carbonext disseram a SUMAÚMA que já haviam feito ou estavam em vias de fazer o distrato não apenas com os Kayapó, mas também com associações de outras quatro terras indígenas em diferentes estados da Amazônia e de reservas extrativistas marinhas no norte do Pará.

O cancelamento dos seis acordos entre uma das maiores empresas brasileiras do setor de créditos de carbono e populações originárias e tradicionais que têm o usufruto ou a concessão de terras públicas reflete a insegurança que cerca a expansão no Brasil do “mercado de carbono voluntário”. Esse mercado internacional é chamado também de “não regulado” porque não passa pelo aval de governos nem está integrado às metas oficiais de redução da emissão de gases causadores do efeito estufa. Na Amazônia, os territórios do Estado brasileiro são a última fronteira de uma corrida para “reservar” grandes áreas da floresta com o objetivo de certificar créditos obtidos com o chamado “desmatamento evitado” e vendê-los a companhias que desejam compensar as próprias emissões ou melhorar sua imagem.

Turbinada por dinheiro de bancos, fundos e grandes empresas, essa disputa tem levado a uma sucessão de denúncias de “grilagem verde” – projetos de particulares que avançam sobre áreas do Estado – e de abusos nas negociações com as populações da floresta. Há dezenas de empresas de carbono no Brasil, algumas grandes como a Carbonext e outras que nem sequer têm página na internet. “Parece um jogo de tabuleiro em que intermediários correm pela região disputando quem vai fincar uma bandeirinha nos territórios e imobilizar estoques de carbono”, compara Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa, dedicado a políticas para enfrentar a emergência climática. “Há quem peça exclusividade sobre as gestões e a organização dos serviços ambientais, inclusive além do carbono. Isso está sendo percebido como assédio e prejudica oportunidades que poderiam ser de interesse dos povos indígenas e tradicionais.”

O carbono emitido sobretudo pelo uso de combustíveis fósseis, mas também pela queima ou degradação de vegetações nativas, é o principal responsável pelo aumento da temperatura média do planeta desde o século 18. Esse aumento causa a intensificação de eventos extremos, como inundações e secas prolongadas, e pode inviabilizar a vida se não for contido. Os créditos de carbono são dados a negócios que – em tese – provam que reduzem essas emissões mais do que ocorreria se o investimento não existisse. Os créditos podem vir, entre outras origens, da mudança de fontes de energia, da reutilização de resíduos, do reflorestamento e da conservação de florestas ameaçadas de desmatamento – é o que se chama de “desmatamento evitado”, foco do negócio do carbono na Amazônia. No mercado voluntário ou não regulado, os créditos também são certificados por empresas privadas. No caso dos projetos que prometem evitar o desmate, a principal certificadora é a Verra, multinacional com sede em Washington, nos Estados Unidos.

Cada crédito equivale a 1 tonelada de carbono que deixou de ser emitida. Neste ano, o preço internacional do crédito gerado por desmatamento evitado tem ficado entre 2 e 3 dólares. Os recursos obtidos com a venda desses créditos no mercado não regulado são considerados um pagamento pelo “serviço ambiental” de manter a função das florestas de retirar o carbono da atmosfera por meio da fotossíntese. Serviço ambiental é toda atividade que recupera, aprimora ou preserva uma função da natureza vital para sua sobrevivência e a do planeta.

O negócio do carbono é defendido por muitos como uma solução “verde”, moderna, que une o capitalismo à proteção da natureza. Seus defensores acreditam que garantir que a floresta seja mais lucrativa conservada do que destruída é a única maneira de impedir que biomas como a Amazônia cheguem ao ponto de não retorno, momento que se aproxima rapidamente. O mercado também entendeu que essa é uma boa oportunidade para quem quer continuar a lucrar com atividades que provocam a crise climática. Não por acaso, as corporações que produzem ou usam intensivamente combustíveis fósseis, como as de petróleo e gás e de aviação, são as maiores compradoras de créditos no mercado voluntário. No caso das petrolíferas, “compensar” emissões é também uma forma de driblar a pressão por um acordo internacional que as obrigue a reduzir a produção.

Floresta em área do Pará: evitar a degradação da vegetação nativa pode gerar créditos de carbono. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

Para uma parcela das organizações não governamentais, o mercado do carbono é mais uma brecha encontrada pelo capitalismo para incorporar novas áreas de exploração e lucrar com a devastação que ele próprio provocou. Acostumadas com todo tipo de assalto colonizador a suas terras e modos de vida, lideranças de povos originários e tradicionais temem ser enganadas e receber apenas migalhas. Ambientalistas expressam dúvidas sobre a integridade dos créditos – isto é, se eles correspondem a uma redução real da emissão de gases-estufa. Além disso, como o valor dos créditos é mais alto onde a floresta está mais ameaçada, há o temor de que possam ocorrer desmatamentos programados para aumentar o potencial dos lucros.

Entre tantas controvérsias, a corrida do carbono se acelera. Para piorar, os nomes e as siglas típicos da área são feitos para deixar a maioria de fora do debate. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva precisa agir com rapidez e energia para coibir ilegalidades nesse mercado, mas acabou de ter o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e o Ministério dos Povos Indígenas desmatados de funções e órgãos estratégicos pelo Congresso. Para enfrentar esse tema urgente e mostrar o que acontece hoje na Amazônia, SUMAÚMA entrevistou mais de 30 pessoas, de agentes do mercado de carbono a ambientalistas e lideranças de povos originários.

‘Grilagem verde’, a nova fronteira da bandidagem amazônica

A pedido de uma organização não governamental que desejava examinar o tema do ponto de vista dos direitos das comunidades afetadas, a advogada Juliana Miranda, que trabalha com direito ambiental no escritório Hernandez Lerner & Miranda Advocacia, de Brasília, coordenou um estudo no qual levantou todos os projetos no Brasil que haviam feito o pedido de registro na Verra, a empresa certificadora de créditos de carbono. Ela encontrou 11 projetos no país totalmente sobrepostos a terras públicas de uso coletivo, isto é, territórios indígenas, unidades de conservação concedidas a comunidades e assentamentos rurais. Nem todos os 11 projetos incluem em sua documentação a informação de que ocupam essas áreas dos governos.

A partir dos nomes dos empreendimentos, de sua localização e de seus proponentes, um cruzamento de informações feito por SUMAÚMA identificou, na lista de 11, dois projetos na região de Apuí, no sul do Amazonas, em que empresas privadas afirmam ser donas de terras que aparecem nos mapas de três unidades de conservação estaduais e de um assentamento federal. Isso significa que particulares podem estar tentando vender carbono em três terras públicas protegidas para a conservação da floresta e uma quarta destinada à reforma agrária.

Também estão incluídos, nessa lista de 11, quatro empreendimentos suspeitos de grilagem de terras estaduais na cidade paraense de Portel; um projeto em reservas extrativistas federais na Ilha de Marajó, também no Pará, que é contestado na Justiça Federal por associações comunitárias que afirmam ter sido lesadas, caso revelado pela Agência Pública em 2021; e um projeto que teve o registro pedido em 2009 pela Associação Metareilá, dirigida por Almir Surui, da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, e acabou interrompido quando disputas internas entre os Surui Paiter levaram ao aumento do desmatamento.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

A amostra é um indicativo de como a bagunça fundiária na Amazônia, fortemente comprometida pela apropriação de terras públicas por particulares, e a falta de normas para projetos em áreas de uso coletivo põem em questão a viabilidade dos negócios de carbono. O engenheiro florestal Francisco Melgueiro precisou encarar o problema logo que assumiu, em 2 de maio, a Coordenação-Geral de Gestão Ambiental da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ele diz que em princípio não é contra projetos de carbono em terras indígenas: “Se forem feitos de forma correta, podem ajudar a promover a sustentabilidade financeira dos territórios”.

No entanto, Melgueiro tem pedido “calma” às associações antes de assinarem contratos. “Hoje chegam com o bolo pronto e não discutem repartição de benefício, e isso pode gerar conflito na comunidade”, argumenta. “Muitas vezes chegam com o estoque de carbono calculado, e a equação que usam é para um bioma diferente, um erro técnico gravíssimo”, pondera. O dirigente da Funai se refere ao uso de metodologias para calcular os créditos que levam em conta parâmetros internacionais, e não os dados específicos de florestas brasileiras.

Melgueiro reconhece que a carência de recursos torna as propostas atrativas. “Há um discurso de que nós, da Funai, estamos atrapalhando. Mas não queremos barrar nada, e sim fazer de forma correta e que não prejudique os próprios indígenas”, esclarece. Na sua avaliação, todos os contratos já assinados terão que ser revistos enquanto o governo prepara uma proposta para acabar com o vazio legal.

A Funai tem conhecimento, segundo ele, de ao menos 16 acordos com associações que representam terras indígenas. Integrante de grupos de trabalho do Ministério Público Federal sobre comunidades tradicionais e agroecologia, o procurador Daniel Luis Dalberto descreveu “uma verdadeira avalanche de contratos, assinados e em trâmite, que foram encaminhados à Funai e ao ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] para análise e eventual validação”.

Reivindicando terras públicas para lucrar com carbono

Como esse mercado não é regulado, o número total de acordos fechados no Brasil para a venda de créditos de carbono é desconhecido. Os contratos encontrados no estudo coordenado por Juliana Miranda não representam a totalidade existente no país porque eles só entram na base de dados da Verra quando é pedido o registro do projeto. Ainda assim, até março deste ano apareciam 89 projetos no Brasil na categoria AFOLU – sigla em inglês de Agricultura, Floresta e Outros Usos da Terra –, a imensa maioria declarando ocupar terras particulares. Dos 89 projetos, 69 estavam na Amazônia, dos quais 56 tinham disponível o mapa da área que ocupavam.

Isso permitiu que os dados fossem confrontados com informações federais e estaduais sobre a localização de unidades de conservação, assentamentos, territórios quilombolas, terras indígenas e florestas públicas não destinadas, isto é, que não foram concedidas a nenhuma comunidade ou empresa e por isso são alvos preferenciais de grilagem. Com essa comparação, o estudo identificou os 11 projetos que coincidem com áreas de uso coletivo: seis no Pará, três no Amazonas e dois em Rondônia. Encontrou também outros 22 parcialmente sobrepostos a terras públicas, o que sugere “situações de potenciais conflitos fundiários”. Esses não foram detalhados no estudo porque ainda “requerem uma análise caso a caso”.

Na lista de 11, os dois projetos que ficam em Apuí, região sob forte pressão de desmatamento no Amazonas, ainda estão em fase de obtenção do registro na Verra. Um deles é o Boa Fé, que abrange uma área de 432,7 mil hectares e foi proposto pela NRD Desenvolvimento de Recursos Naturais e pela Ecológica Assessoria. O próprio projeto apresentado à certificadora internacional Verra diz que “81% de sua área está localizada dentro de três áreas protegidas”: a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Aripuanã, a Reserva Extrativista Guariba e a Floresta Estadual do Aripuanã. Todas são parte do Mosaico de Unidades de Conservação do Apuí, formado por nove reservas estaduais criadas em 2005.

Sócio da NRD, André Manfredini diz que toda a área da fazenda Boa Fé é reconhecida como “particular”. Ele enviou duas certidões que mencionam o registro de um “título definitivo” de propriedade da fazenda em 1912 e decretos de criação de unidades do Mosaico que excluem terras privadas “cujas propriedades se comprovarem nos termos da lei”. Manfredini afirma que houve um acordo com o estado para preservar integralmente a floresta que cobre a fazenda. Alega ainda que não há populações tradicionais residentes e que o projeto seria uma forma de pagar pelo custo de manutenção da mata, assediada por madeireiros e pelo garimpo ilegal. “Aqui 1 hectare com floresta vale 700, 800 reais. Uma área desmatada chega a 3 mil reais por hectare”, diz. Com o projeto, ele acredita poder gerar créditos correspondentes a 50 milhões de toneladas de carbono – ao preço de 2 dólares, eles renderiam 100 milhões de dólares (ou perto de meio bilhão de reais) ao longo de 30 anos.

Queimadas em Apuí, no Amazonas, região sob forte pressão do desmatamento, onde um projeto de carbono está em área já protegida por lei. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

Um plano de gestão do Mosaico de Unidades de Conservação do Apuí, encomendado pelo governo do Amazonas e publicado em 2010, menciona seis títulos privados reconhecidos na área das unidades de conservação e diz que, além deles, “existe ainda uma certidão de 1912”. O plano não indica o que fazer em relação a essa certidão. Especialistas na questão fundiária na Amazônia consultados por SUMAÚMA acreditam que a fazenda Boa Fé, se de fato reconhecida, deveria ter sido desapropriada – ou que as unidades de conservação deveriam ter sido redimensionadas. Indagada, a Secretaria do Meio Ambiente do Amazonas não informou se tem conhecimento do empreendimento e se o aprovou.

O segundo projeto em Apuí em registro na certificadora internacional Verra chama-se Samaúma e aparece sobreposto a terras federais do Projeto de Assentamento Agroextrativista Aripuanã-Guariba, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O empreendimento foi proposto pela Terra Vista Gestora de Recursos e pela empresa Ituxi Administração e Participação. O empresário Ricardo Stoppe aparece como dono da área de 71,8 mil hectares. Na apresentação à Verra, os proponentes admitem que “bases de dados públicas apontam a existência de um projeto de assentamento rural sob a autoridade do Incra que se sobrepõe à área do projeto”. Dizem, porém, que o terreno é formado por duas fazendas que teriam títulos definitivos desde 1933. O projeto traz cópias de documentos do próprio Incra que comprovariam a titularidade particular das fazendas e afirma que a sobreposição é “indevida”, o que “exigiria sua retirada dos limites” do assentamento e o “respeito à propriedade privada”.

A reportagem tentou contato com os responsáveis pelo projeto, pelos e-mails e telefones que constam no documento, mas não teve resposta. O Incra ainda não informou se tem conhecimento do negócio nem se reconhece a propriedade privada da área. Como no caso anterior, esse reconhecimento implicaria a desapropriação ou o redimensionamento do assentamento para que o projeto pudesse ir adiante dentro da legalidade.

Batendo à porta de indígenas e beiradeiros

Um dos projetos – da lista de 11 sobrepostos a áreas de uso coletivo – tem publicidade na página da internet de sua proponente, a empresa Biofílica, que atua no mercado voluntário ou não regulado desde 2008. O projeto obteve o registro na Verra em 2016 e incide em terras da Reserva Extrativista Rio Preto-Jacundá, uma unidade de conservação estadual de 94,2 mil hectares em Rondônia. O empreendimento, diz sua página na Verra, é uma parceria entre a Biofílica e a associação de moradores da reserva, com o apoio do Conselho Executivo das Reservas Extrativistas do Vale do Anari.

A Biofílica tem outro projeto que não aparece entre os 11 e se tornou alvo recentemente de uma contestação do procurador do estado do Pará, Ibraim Rocha. Ele disse a SUMAÚMA que um empreendimento de carbono da Biofílica com a Jari Celulose inclui terras que a Justiça reconheceu como públicas em 2012. Segundo Rocha, essa área – chamada de fazenda Saracuruna pela Jari e de gleba Arraiolos pelo estado – seria destinada a comunidades tradicionais. Plínio Ribeiro, CEO da Biofílica, afirma que “não há qualquer disputa” envolvendo o projeto e que a área em questão “é classificada como privada desde 1856, tendo sido adquirida pelo Grupo Jari em 1948”.

Outro projeto na lista de 11 é o Juma, situado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma, uma área estadual no Amazonas. Elaborado pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS), organização privada sem fins lucrativos resultante de uma parceria entre o governo do estado e o Bradesco, foi o primeiro empreendimento no Brasil a certificar créditos de carbono por desmatamento evitado para venda no mercado voluntário, em 2008.

O Juma está sendo atualmente recertificado na Verra, segundo Victor Salviati, superintendente de Inovação e Desenvolvimento Institucional da FAS. Salviati afirma que a renda das 388 famílias (1.910 pessoas) que vivem na área teria aumentado seis vezes desde 2008, três vezes mais do que a das populações de outros dez projetos da instituição que não usam créditos de carbono. “Os investimentos angariados fizeram com que a gente investisse em educação e bioeconomia, agregando valor ao açaí, à castanha, à banana”, diz.

Há ainda na Verra um projeto que aparece sobreposto à Terra Indígena Kararaô, à Estação Ecológica Terra do Meio e à Reserva Extrativista Rio Xingu, no Pará. Esse não foi em frente. Proposto pela Global Serviços de Engenharia em 2016, continua no estágio “em desenvolvimento”, o primeiro de um processo de várias etapas até o registro. No site da Verra, a área é descrita como “a maior floresta nativa privada” do Brasil, com 3,5 milhões de hectares. O projeto apresentado à certificadora foi elaborado pela WMF Energy, empresa com escritórios no Brasil, na Inglaterra e na Alemanha.

Alexandre Rosa, fundador da WMF Energy, afirmou a SUMAÚMA que foi contratado para fazer o projeto e nunca foi pago. Segundo ele, o empreendimento era um investimento do fundo americano Pinnacle, que contratou a Global Serviços de Engenharia para gerir o projeto. Essa empresa, por sua vez, teria tentado obter uma concessão para uso das terras públicas e não conseguiu. No site da Verra não há contatos da Global e existem várias companhias com o mesmo nome no Brasil. Rosa diz que sua empresa não faz negócios no mercado voluntário.

Pessoas que conhecem o negócio do carbono dizem que, assim como nesse caso, muitos empreendimentos contam com financiamento do exterior, mas atuam no Brasil por meio de intermediários. Os reais financiadores não aparecem.

Se o governo não regular, a bagunça vai aumentar

Brenda Brito, pesquisadora associada do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), explica que muitas denúncias de “grilagem verde” têm ocorrido no Pará porque nos últimos dez anos o estado cancelou uma série de títulos de grandes áreas que não conseguiram comprovar sua legalidade. Ela cita o caso do município de Portel. No final de janeiro, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade paraense cancelou 219 Cadastros Ambientais Rurais (CARs) e suspendeu outros 735 vinculados a contratos de carbono. O CAR, um registro eletrônico autodeclaratório, foi criado pelo Código Florestal de 2012 e é obrigatório para todos os imóveis rurais, mas não serve para comprovar a propriedade da terra. No entanto, como revelou a agência de notícias Intercept Brasil em novembro último, foi usado para pedir o registro na Verra de quatro projetos suspeitos de usarem indevidamente terras públicas na região, todos ligados ao mesmo empresário, o americano Michael Greene.

A reportagem do Intercept foi baseada num estudo do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais, que diz apoiar as lutas de indígenas e camponeses. O trabalho mostrou que, dos 714 mil hectares abrangidos pelos quatro projetos em Portel, 200 mil estavam sobrepostos a terras de assentamentos extrativistas estaduais. Greene, segundo o estudo, chegou a presidir a Associação de Ribeirinhos e Moradores de Portel, que foi fundada em São José dos Campos, em São Paulo, e estava envolvida em um dos projetos. Uma das empresas de que o americano é sócio, a Agfor Empreendimentos, assinou dois dos 16 contratos com associações indígenas de que a Funai tem conhecimento. Greene, na época da denúncia, negou que houvesse ilegalidade nos seus negócios em Portel.

A pesquisadora do Imazon pondera que, “se a terra é privada e legalizada do ponto de vista fundiário”, não cabe intervenção das autoridades. Quando se trata de áreas públicas, porém, a situação é totalmente diferente. “Não é questão de regular o mercado voluntário em si, mas de estabelecer que tipo de relação comercial pode ser feita”, diz Brenda Brito. Isso inclui definir o papel de instituições como a Funai, o Incra e o ICMBio nas negociações com as empresas e também as prerrogativas que os acordos devem garantir aos indígenas, às populações tradicionais e aos assentados da reforma agrária.

No Ministério Público Federal, a 6ª Câmara abriu consultas para elaborar uma Nota Técnica sobre o assunto, das quais o procurador Daniel Luis Dalberto participa. Ele já trabalhou em Rondônia e, embora hoje esteja lotado no Rio Grande do Sul, foi procurado por líderes indígenas de três terras na Amazônia com dúvidas sobre propostas de carbono. Questionado sobre o que seria necessário para que esses acordos fossem juridicamente válidos, Dalberto diz que, “no mínimo”, eles deveriam ser precedidos do Plano de Gestão Territorial e Ambiental, nas terras indígenas, do Plano de Manejo, nas unidades de conservação, e dos protocolos de consulta, em ambos os casos.

O procurador também defende a ideia de que instituições como a Funai e o ICMBio devem participar dos contratos, “seja porque são terras da União com usufruto exclusivo dos indígenas, seja porque a Funai tem o dever legal de realizar as políticas públicas e defender os direitos dos indígenas, e do mesmo modo porque as unidades de conservação têm propriedade da União, com direito de uso sustentável às comunidades”.

O gigante que desistiu em nome da ‘reputação’

O episódio da Carbonext, a empresa que mais gera créditos de carbono por desmatamento evitado no Brasil, mostra como é complicado se mover nesse mercado. Fundada em 2010, a Carbonext recebeu em 2022 um aporte de 40 milhões de dólares (cerca de 200 milhões de reais) da petrolífera britânica Shell. A empresa informou ter 17 projetos em andamento, cinco dos quais registrados na certificadora Verra.

Os projetos foram desenvolvidos com 70 proprietários de terras, que em muitos casos se juntam para aumentar a área oferecida, e com uma associação quilombola – diferentemente de outras comunidades tradicionais, os quilombolas recebem o título coletivo de propriedade de suas terras. Nos empreendimentos em terrenos privados na Amazônia, seus proprietários abrem mão de desmatar os 20% da floresta que, segundo o Código Florestal, poderiam derrubar para criar gado ou abrir plantações – é o que se chama no setor de “evitar desmatamento planejado”. Segundo a Carbonext, seus projetos conservam 1,6 milhão de hectares de florestas.

A empresa começou a negociar com associações indígenas e comunitárias no ano passado. Em troca do desenvolvimento dos projetos, ficaria com 30% dos créditos de carbono – segundo ela, é a mesma comissão cobrada dos proprietários privados. No Pará, além dos Kayapó, assinaram “compromissos de parceria” com a Carbonext comunidades de sete das 12 reservas extrativistas marinhas da região do Salgado, no norte do estado. Em Mato Grosso, os parceiros foram os Cinta Larga da Reserva Roosevelt e os Arara da Terra Indígena Arara do Rio Branco. No Amazonas, os Munduruku da TI Coatá-Laranjal. Em Rondônia, a Associação Metareilá, dos Surui Paiter.

Como fez com os Kayapó, o MPF no Pará também abriu procedimentos administrativos sobre negociações da Carbonext com as associações do povo Tembé da TI Alto Rio Guamá e das reservas do Salgado. Neste último caso, a provocação partiu das próprias associações, que em carta aos procuradores acusaram o ICMBio de bloquear um acordo – o órgão federal, em sua resposta, sugeriu que a Carbonext teria redigido a carta. A Procuradoria do ICMBio havia considerado o contrato ilegal, inclusive uma cláusula que dizia que a empresa planejaria as atividades de vigilância e manutenção do território, ainda que sua realização ficasse a cargo das comunidades. Segundo a Procuradoria, isso seria invadir uma atribuição do poder público.

O contrato com os Tembé não chegou a ser assinado. Como os Surui, os Tembé tinham uma experiência frustrada anterior: em 2009, a etnia anunciou um acordo com a empresa C-Trade, que lhe acenava com 1 milhão de reais ao ano pela venda de créditos de carbono, mas a promessa não se realizou.

Janaina Dallan, engenheira florestal que é cofundadora e CEO da Carbonext, diz que a decisão de desfazer os contratos foi tomada para preservar a empresa, que chamou a Funai e a Defensoria do Pará para testemunhar o distrato com os Kayapó. “Entendemos que havia muito risco de exposição reputacional, porque a sociedade ainda não entendeu o benefício que é o crédito de carbono para essas comunidades. Tinha também muito risco regulatório e até de integridade física”, afirma Janaina. “O mercado está tão em ebulição que tem gente fazendo muita coisa atrapalhada.”

Segundo Luciano Corrêa da Fonseca, cofundador da Carbonext, equipes da empresa foram “ameaçadas diretamente” pelo garimpo. “A gente debateu fortemente, mas entendeu que não há maturidade [para as iniciativas]”, afirma. O empresário se queixa de “tentativas do Estado de restringir” e de “ONGs que tentam minar” o desenvolvimento dos projetos.

Almir Sanches, diretor de compliance e comunidades tradicionais da Carbonext, que liderou as negociações com os Kayapó, endossou as críticas. Sanches, que foi procurador federal e trocou o Ministério Público pelo mercado de carbono, criticou o que chamou de “paternalismo” do governo em relação aos indígenas, que segundo ele “desrespeita” a autonomia dos povos originários. Disse ainda que a consulta prévia, “dependendo da maneira que for encarada, pode ser paralisante para as comunidades”, travando seu processo de decisão. O convite para a viagem a São Paulo, em dezembro do ano passado, segundo ele, atendeu a um pedido dos indígenas, que relataram ter sido enganados antes por empresas-fantasmas.

A SUMAÚMA, Almir Surui, líder dos Surui Paiter, disse que o contrato com a Carbonext foi desfeito “porque ia demorar muito”. “Tem que ser construído com responsabilidade, segurança jurídica”, afirmou. O projeto que Almir iniciou em 2009 demorou quase quatro anos para ficar pronto. Com assessoria técnica da organização não governamental Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), chegou a vender créditos à Natura e à Fifa na Copa do Mundo de 2014. Mas acabou naufragando devido a divergências dentro da terra indígena.

Almir Surui, liderança dos Surui Paiter, que enfrentou divergências internas por conta de um projeto de carbono. Foto: Sergio Suruí/Midia Ninja

Mais tarde, a descoberta de uma mina de diamantes na Terra Indígena Sete de Setembro levou ao aumento do desmatamento e inviabilizou o projeto. “Foi cancelado por briga interna, governança, e manipulado por algumas instituições que são contra esse modelo. Diziam que o projeto de carbono era vender floresta, mas não é”, argumenta a liderança indígena. Hoje, ele busca alternativas numa terra onde afirma faltar “habitação, educação, saúde, assistência técnica para a produção, quase tudo”. Em sua aldeia, construiu uma pousada e começou um projeto de etnoturismo, apoiado pelo Fundo Amazônia, do governo federal. “Está dando certo, mas a gente precisa atualizar o diagnóstico do território e decidir quais serão os projetos do futuro”, diz.

Na época de sua implementação, o projeto de carbono na TI Sete de Setembro sofreu oposição do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Como outras organizações, o Cimi é contra um negócio que daria a empresas “licença para poluir”, ao compensar suas emissões, e distorceria as relações não capitalistas dos indígenas com o meio ambiente, ao submeter sua vida a regras determinadas por uma empresa. A ONG Terra de Direitos, que também é crítica do mercado de carbono, publicou uma cartilha sobre o tema na qual ressalta que os contratos interferem diretamente “no uso, na gestão e no poder sobre o território”. As cláusulas desses acordos, continua o texto, podem limitar as formas de cultivo, de construção de casas, de aproveitamento da vegetação nativa e de outras atividades comunitárias. “As obrigações de ambas as partes podem interferir nos modos de vida tradicionais”, alerta a organização, que presta assessoria jurídica contra violações de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Em meio à controvérsia, Mariano Cenamo, do Idesam, a organização que assessorou Almir no projeto de 2009, defende as iniciativas de crédito de carbono para impulsionar alternativas econômicas na Amazônia. “É utopia acreditarmos que somente atividades de comando e controle vão conseguir sustentar a redução do desmatamento a longo prazo”, argumenta Mariano. “Se isso não for complementado por programas de geração de prosperidade, de uma economia baseada na floresta, que vai substituir a economia baseada no desmatamento, não sustentaremos.”

O Idesam tem um programa para aumentar a produção de café orgânico em um assentamento do Incra em Apuí. Captou 11 milhões de reais com investidores e pagará a eles em créditos de carbono. A ideia, segundo Mariano, é passar de 90 para 300 famílias envolvidas até 2026. “A pressão para o desmatamento subiu tanto em Apuí que vimos que não eram suficientes só o plantio de sistemas agroflorestais e a geração de renda com o café”, afirma. “Então passamos a agregar à remuneração dos produtores o pagamento por serviços ambientais, pelo desmatamento que eles se comprometem a evitar.”

Lucrando com o aquecimento global

Esta é a segunda onda do mercado de carbono voluntário (ou não regulado) na Amazônia. A primeira foi na década de 2010, depois da definição, pela Organização das Nações Unidas (ONU), do instrumento conhecido como REDD+, sigla de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação de florestas. O REDD+ abriu a possibilidade de remuneração pela manutenção da mata ou pelo reflorestamento em países em desenvolvimento. Pensado para pagamentos a governos, acabou sendo transferido também para o mercado voluntário.

A expansão atual foi impulsionada por uma nova combinação de fatores. O primeiro foi a conclusão, em 2021, na 26ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, em Glasgow, na Escócia, das negociações sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris, que trata da crise climática. Esse artigo prevê o estabelecimento de um mecanismo global de registro de créditos de carbono. Quando o Artigo 6 estiver regulamentado, ele permitirá que um país “venda” a outro o que ultrapassar a sua meta de corte de emissões dos gases do efeito estufa. Permitirá também o uso de certificados de redução de emissões gerados por projetos do setor privado para abatimento de metas oficiais. Mas, diferentemente do que ocorre hoje com os créditos do mercado voluntário, para valerem esses projetos precisarão ser aprovados pelo governo do país em que estão sediados.

O segundo fator que contribuiu para a expansão do mercado voluntário é o fato de que 90% dos países já se comprometeram a compensar todas as suas emissões de gases do efeito estufa até 2050 ou 2060. Com isso, setores altamente poluidores começaram a correr para comprar créditos no mercado voluntário, na operação conhecida como “offset”.

Finalmente, no caso brasileiro, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) aprovou leis, normas e instruções que estimularam o mercado voluntário, sem nenhuma relação com planos oficiais de descarbonização ou combate ao desmatamento. Na época, ministros apregoavam a ideia de que esse mercado poderia captar bilhões de dólares mantendo a floresta em pé, numa espécie de terceirização das obrigações do governo. Para estimular o negócio, até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou, em 2022, duas chamadas públicas para a compra de créditos de carbono no mercado voluntário, uma de 10 milhões de reais e a outra de 100 milhões de reais.

A combinação desses três fatores provocou um alvoroço inédito no Brasil. Além do investimento da Shell na Carbonext, o banco Santander comprou em 2022, por um valor não divulgado, 80% da empresa WayCarbon. Em 2021, a Ambipar, multinacional brasileira de gestão ambiental, havia comprado a Biofílica. No mesmo ano, desenvolvedoras de projetos de carbono criaram a Aliança Brasil NBS, sigla em inglês de “soluções baseadas na natureza”, que afirma ter como objetivo desenvolver boas práticas no setor. Ela reúne 24 empresas e organizações sem fins lucrativos e é presidida por Janaina Dallan, da Carbonext.

Surgiram ainda empresas que transacionam créditos de carbono como investimento, como uma ação com a qual se pode especular no mercado, e não necessariamente para compensar emissões. “Para um mercado imaturo como o nosso isso é ruim, porque o crédito existe para um propósito: fazer a transição para uma economia de baixo carbono”, diz Janaina.

E o clima, como fica?

Área de queimada no município de Apuí, Amazonas, nova fronteira em aceleração do desmatamento. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real

Entre os especialistas no enfrentamento da crise climática, a disputa por estoques de carbono na Amazônia levanta a discussão sobre a contribuição do mercado voluntário para de fato reduzir as emissões brasileiras.

O REDD+ é um instrumento usado em vários formatos. Abriu caminho, por exemplo, para a criação, em 2008, do Fundo Amazônia pelo governo federal. Ele recebe doações que representam uma compensação pelo desmatamento evitado no país até 2012, antes que a destruição das florestas voltasse a crescer. Paralisado sob Bolsonaro, o fundo foi reativado por Lula e recebeu novas promessas de verbas da Alemanha, dos Estados Unidos, do Reino Unido e da União Europeia. Ainda que o desmatamento tenha aumentado, essas promessas traduzem “boa vontade” em relação ao novo governo, explica Adriana Ramos, da direção do Observatório do Clima, que reúne cem organizações da sociedade civil.

No modelo do Fundo Amazônia, o desmatamento evitado é contado em quilômetros de floresta já conservados e convertido em créditos de carbono para efeito contábil, mas esses créditos não são comercializados. No mercado voluntário, a metodologia é diferente. Em vez de levar em conta o desmate já evitado, ela é baseada numa projeção do desmatamento que ocorreria se o projeto não existisse. Por isso, quanto mais ameaçada uma área, mais créditos ela pode gerar – não é à toa que a maioria dos empreendimentos fica no arco do desmatamento, que vai do sul do Pará em direção a oeste e onde se concentram os maiores índices de destruição da floresta. A região de Apuí, no sul do Amazonas, é uma nova fronteira de desmatamento que tem se acelerado nos últimos anos.

Shigueo Watanabe, pesquisador do Instituto ClimaInfo, traça uma comparação. “Se faço um projeto no meio do arco do desmatamento de 1 hectare e se faço na mesma área, na fronteira com a Colômbia [onde a floresta está conservada], o volume de crédito de carbono é completamente diferente. No arco do desmatamento, o risco é alto e vou ganhar um alto volume de créditos. Se estou num lugar longe de garimpeiros, madeireiros, não vou ganhar nada porque o risco de desmatamento daquela área é zero”, explica. “Ou seja, se eu sou dono de um projeto de REDD e quero ganhar 30 anos de créditos de carbono, tenho que torcer para os meus vizinhos continuarem desmatando nos próximos 30 anos. É perverso”, critica ele.

Shigueo trabalhou com mercado de carbono no setor de energia e hoje integra um dos comitês técnicos da empresa Gold Standard, que emite créditos para projetos energéticos, mas não de REDD+. Para ele, a métrica de quilômetros não desmatados, usada pelo Fundo Amazônia, é mais razoável. “Não interessa quanto carbono tem na floresta, interessa que não é para cortar floresta porque provoca o aquecimento global”, diz. Ele acha que faria mais sentido se os projetos de carbono fossem voltados para o reflorestamento: “Não é plantar pínus e eucalipto, é pegar uma área, isolar e deixar o mato crescer. Isso, hoje, não dá renda nenhuma, não há receita que você ganhe ajudando a floresta a crescer outra vez”.

Em janeiro, a certificação da Verra de créditos por desmatamento evitado foi questionada por estudiosos que a analisaram, a pedido do jornal britânico The Guardian. Eles concluíram que 90% desses créditos não representavam uma redução adicional da emissão de gases do efeito estufa – isto é, uma queda além da que poderia existir se não houvesse o investimento no projeto de carbono. Quando isso acontece, não há nenhum benefício para o clima, já que as empresas que compram os créditos não estão de fato compensando o carbono que emitem.

Plínio Ribeiro, da Biofílica, diz que a reportagem do Guardian provocou a queda no preço dos créditos vendidos por sua empresa. Ele contesta os estudos citados no jornal britânico, mas admite que é preciso “tropicalizar” os cálculos usados nos projetos. Segundo afirma, a Verra está desenvolvendo uma nova metodologia para a certificação de créditos de projetos que evitam o que o mercado chama de “desmatamento não planejado” – no caso brasileiro, é o desmatamento ilegal, aquele fora do autorizado no Código Florestal. A empresa, acrescenta, contratou especialistas para desenvolver cálculos específicos para os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Rondônia.

O governo Lula, sob a coordenação do Ministério da Fazenda, já tem o rascunho de um projeto para a criação de um mercado regulado do tipo cap and trade, como o existente na União Europeia, na Coreia do Sul e em partes da China. Nele, haverá um limite (cap) de emissões para indústrias ou usinas de energia que lançam mais do que 25 mil toneladas de carbono por ano na atmosfera. As empresas que ultrapassarem seu limite poderão comprar (trade) créditos das que reduzirem suas emissões além do obrigatório. A proposta deverá ser apresentada em agosto, não se sabe se como um substitutivo de algum dos três projetos sobre o assunto que tramitam no Congresso ou como um projeto de lei do Executivo. Há um lobby do agronegócio para entrar no mercado regulado com créditos gerados por projetos que evitam o desmatamento. Com isso, eles ganhariam um selo de credibilidade e seu valor subiria.

Lula rodeado por lideranças indígenas e ambientais na COP27, em 2022. Governo federal tem o desafio de regular com urgência o mercado de carbono. Foto: Ricardo Stuckert

João Paulo de Resende, assessor especial do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que, pela proposta do governo, as empresas que tiverem suas emissões limitadas no mercado regulado poderão comprar um percentual ainda não especificado de créditos gerados por projetos de conservação de florestas e de reflorestamento do mercado voluntário. Para serem aceitos, esses créditos terão que ser registrados oficialmente e seguir metodologias de certificação aprovadas pelas autoridades. A previsão, porém, é que o registro oficial demore dois anos para ser implementado depois da aprovação da lei. Hoje, apesar de o país ter como meta replantar 12 milhões de hectares de mata nativa, o mercado voluntário não trabalha com reflorestamento porque o resultado demora muito mais a aparecer.

Como antecipou o jornal Valor Econômico, é na proposta para um mercado regulado que o governo incluirá artigos a fim de estabelecer garantias para os povos indígenas e comunidades tradicionais no comércio de créditos de carbono. Essas garantias deverão contemplar a obrigatoriedade da consulta livre, prévia e informada, a definição de uma regra para a repartição e a gestão do dinheiro obtido e a anuência dos órgãos responsáveis por terras públicas. Além disso, segundo a proposta, essas populações deverão ser indenizadas caso terceiros usem seus territórios para projetos de carbono.

O que vale ou não num mercado regulado é importante porque, se o crédito for vendido a uma empresa no exterior, o país onde fica essa empresa, em tese, poderá usá-lo para alcançar sua meta nacional de redução de emissões. Nesse caso, o Brasil terá que fazer o chamado “ajuste correspondente”, isto é, não usar aquela redução ao contabilizar seu desempenho em relação à meta que estabeleceu.

Os estilhaços da expansão do negócio do carbono e a criação do mercado regulado são apenas dois dos temas com que o Brasil precisa lidar para evitar o colapso da floresta e cumprir a meta de reduzir suas emissões em 50% até 2030, tomando como base o ano de 2005. São muitas tarefas para uma área do governo que teve seus instrumentos de gestão sucateados, sofre pressão interna e acaba de ter seu poder reduzido por um Congresso hostil, no qual os interesses do agronegócio e da Faria Lima, avenida de São Paulo que é símbolo do mercado financeiro, frequentemente se aliam.

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que acaba de lançar a versão atualizada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), terá ainda que atualizar a Política Nacional sobre Mudança do Clima. Prepara também a implementação da lei de pagamento por serviços ambientais, que foi aprovada sob Bolsonaro, mas não regulamentada. A legislação é importante para estimular a bioeconomia e responder às demandas dos povos da Amazônia. Ana Toni, secretária do Clima do ministério, questiona: “Os indígenas precisam ter alguma remuneração pelo trabalho impressionante que já fazem. A pergunta é: o mercado de carbono de desmatamento evitado é o melhor instrumento ou pode haver outros?”.

A controvérsia é mais uma que se soma às tantas questões emergenciais que envolvem a aceleração da floresta rumo ao ponto de não retorno. Crimes como a grilagem, irmã do desmatamento, estão sempre passando por uma renovação de seus expedientes para que seus autores possam continuar se apropriando de terras públicas e lucrando com a destruição. Para os povos-floresta, o que tem para já, urgente, é enfrentar a segunda e mais forte onda dos que alguns analistas chamam de “caubóis do carbono”. Hoje, enquanto a regulação não vem, eles se equilibram entre a frustração com promessas mirabolantes e o medo de levarem a pior outra vez.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty e Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

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