Jornalismo do centro do mundo

Reflexos luminosos do céu nas águas de um rio na Terra Indígena Yanomami, no estado de Roraima. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

— Fátima, para onde vão os Yanomami quando morrem?

— Para o hutu mosi.

— E onde fica o hutu mosi? Você já foi pra lá?

— Eu já fui pra lá em sonho. O hutu mosi fica no céu, parece longe, mas é perto. É bonito, há muita fartura, os Yanomami sempre dançam, cantam, as mulheres e os homens viram moças e rapazes, estão sempre enfeitados. Todos vivem felizes no hutu mosi.

— Como podem viver felizes se estão mortos?

— O corpo morre, mas a imagem se transforma em pore. São pore, mas ainda vivem.

A imagem que se transforma em pore quando a pessoa morre é a parte da pessoa que desprende do corpo quando ela sonha. Na língua Yanomami, se diz pei utupë. Se traduz como a imagem que todos os seres possuem dentro de si. Utupë também pode ser um reflexo, uma sombra. Assim, a imagem que se vê no espelho é um utupë, da mesma forma que uma foto, uma imagem que se vê na TV.

Para que um Yanomami possa morrer, é preciso que todas as partes que compõem a pessoa sejam destruídas.

— O que vocês, brancos, fazem quando morre um parente?

— A gente enterra.

— Vocês colocam seus mortos debaixo da terra?? Vocês deixam ele apodrecer sozinho?? Como podem fazer isso??

— É assim que a gente faz com os nossos mortos. Às vezes a gente crema, igual vocês, Yanomami, fazem.

— E o que vocês fazem com as coisas que eram do morto?

— A gente deixa para os nossos filhos.

— Como vocês são capazes de deixar as coisas dos mortos para os que estão vivos? Dessa forma, os vivos ficarão olhando para essas mercadorias e não conseguirão esquecer os mortos, e irão sofrer. Vocês, brancos, são mesmo outra gente!!

Estes foram alguns dos diálogos que tive com Fátima, uma mulher Yanomami de 40 anos, com quem convivi e aprendi muito sobre o mundo do povo que segura o céu. O assombro de Fátima vem do fato de que as coisas do morto possuem a marca do morto, e, portanto, geram tristeza e nostalgia naqueles que ficam. Dentro do pensamento Yanomami, é preciso realizar a separação entre os mortos e os vivos, e tudo o que remete ao morto deve ser apagado, algo que ocorre ao longo de sucessivos e complexos rituais funerários que podem durar anos.

A imagem faz parte do morto, assim como seu nome. Por isso, quando alguém morre, o nome não deve ser pronunciado, pois chamar é trazer para perto, e é preciso estabelecer distância dos mortos, é preciso esquecê-los, para que possam ir definitivamente para o hutu mosi, e para que os vivos possam seguir vivendo.

Tudo o que pertencia ao morto precisa ser destruído. É por isso que a imagem, que é parte constituinte e fundamental da pessoa Yanomami, é algo tão precioso e precisa ser tratada com cuidado. É por essa razão que os Yanomami pediram, dias atrás, que a foto onde aparece uma velha mulher em estado de desnutrição severa fosse apagada. Ela faleceu, mas no pensamento Yanomami ela não pode morrer enquanto sua imagem permanecer nesse plano e reanimar nos vivos a dor de sua ausência.

Davi Kopenawa, xamã e líder político Yanomami, sabe que sua imagem vai permanecer mesmo após a sua morte. Abriu essa concessão com a consciência de que era preciso levar para o mundo a situação que os Yanomami estavam vivendo durante o fim da década de 1980 e início de 1990, quando houve a primeira corrida do ouro. Sim, essa tragédia já aconteceu antes, mas nunca na escala em que está acontecendo agora.

As imagens capturadas pela fotógrafa Claudia Andujar também tiveram que percorrer o mundo para dar testemunho do que foi a tragédia da construção da rodovia Perimetral Norte, na década de 1970 – e, mais tarde, na explosão do garimpo, nos anos 1980. A foto do missionário da Consolata Carlo Zacquini, em que aparecem mulheres com rostos pintados de preto segurando cabaças, estampada na capa dos principais jornais do mundo em 1993, são mulheres em luto. Nas cabaças estão as cinzas de seus mortos, que foram assassinados no massacre de Haximu, considerado o primeiro crime de genocídio reconhecido pela justiça brasileira: 16 Yanomami, crianças, adultos e velhos foram brutalmente assassinados por um grupo de garimpeiros.

Essas imagens tiveram que vir à tona e percorrer o mundo para que os napë pë (brancos) pudessem ter a dimensão da tragédia humana que os Yanomami estavam vivendo. Neste ano, fará 30 anos do genocídio de Haximu e a tragédia novamente se repete, mas dessa vez os registros fotográficos dão prova do que acontece no meio da floresta. Nós, povo da mercadoria, como pontua Davi Kopenawa, também somos o povo da imagem, e é por meio dela que podemos constatar a calamidade que os Yanomami estão vivendo.

Se os relatos viessem sem as imagens dilacerantes publicadas em SUMAÚMA, que depois proliferaram por todos os lados nas redes sociais, certamente não causariam o necessário impacto que tiveram. Nós, napë pë, só cremos naquilo que vemos, e por isso as imagens são tão importantes. Mas, porque precisamos da imagem, os Yanomami hoje morrem sem poder morrer. Do lado de lá da floresta Yanomami, a imagem também tem o seu lugar. Para os parentes que ficam, é impossível lidar com a dor da perda do morto sabendo que parte da pessoa continuará presente no mundo dos vivos, reavivando neles a lembrança daquele que é preciso esquecer.

No início da pandemia, mães Sanumä perderam seus bebês, que foram enterrados na cidade de Boa Vista, sem o seu consentimento e com um falso diagnóstico de covid-19. Essas mães voltaram para suas comunidades sem seus filhos, não apenas porque eles morreram, mas porque seus corpos não puderam ser chorados, para que o luto pudesse se realizar. A separação entre vivos e mortos não foi possível.

A dor de não poder destinar aos seus mortos o devido tratamento funerário, porque falta o corpo, ou parte do corpo – sua imagem – não é uma especificidade dos Yanomami. Nós, napë pë, também temos nossos ritos. Para as famílias das três pessoas que ainda não foram encontradas na tragédia de Brumadinho ou para as famílias que tiveram seus parentes e amigos “desaparecidos” pela ditadura empresarial-militar (1964-1985), existe um vazio que não pode ser preenchido, um luto que não cessa, porque os corpos não foram encontrados e seus mortos não puderam ser devidamente chorados.
Os Yanomami fazem um esforço permanente para esquecer seus mortos, sabendo que, quando morrerem, todos vão se encontrar no hutu mosi, um lugar muito melhor onde viverão felizes. Como diz Fátima, “são pore, mas ainda vivem”. A ideia de apagar os mortos da memória pode parecer estranha para nós, napë pë, que registramos tudo, e que fazemos questão de não sermos esquecidos, sobretudo após a nossa morte.

Mas se há algo que os Yanomami não esquecem são aqueles que mataram seus mortos. Nenhuma morte é natural, ela é sempre causada por um outro, que vem de fora. As 570 crianças Yanomami que morreram nos últimos quatro anos não morreram à toa, sem razão. Elas foram mortas por uma política deliberada do governo Bolsonaro. Sim, foi genocídio, e dessa vez não haverá anistia.


Hanna Limulja é antropóloga e indigenista. Trabalha com os Yanomami desde 2008, tendo atuado em ONGs no Brasil e no exterior, como Comissão Pró-Yanomami (CCPY), Instituto Socioambiental (ISA), Wataniba e Survival International. É autora do livro O Desejo dos Outros — Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami (Ubu, 2022).

Vista aérea da aldeia Demini, na Terra Indígena Yanomami, no Amazonas. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

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