Jornalismo do centro do mundo

A candidata Chirley Pankará em campanha nas ruas de São Paulo. Foto: Isabella Finholdt

Chirley senta nos degraus da PUC de São Paulo e pede seu cachimbo para fumar depois de uma palestra com estudantes numa noite fria de uma quinta-feira de setembro. Está à vontade na faculdade em que fez seu mestrado em Educação, antes de ingressar no doutorado em Antropologia na Universidade de São Paulo. Ela, registrada como Chirley Maria de Souza Almeida Santos, é uma das milhares de nordestinas que migraram para o estado de São Paulo em busca de trabalho nos anos 1990, num  momento em que a qualidade de vida em sua cidade minguava.

Nascida numa aldeia em Floresta, no estado de Pernambuco, carrega os sobrenomes de milhões de brasileiros da base da pirâmide na certidão de nascimento. Mas é com uma designação familiar mais poderosa que ela estará na cédula de votação nas urnas eletrônicas, no próximo dia 2 de outubro: Chirley Pankará, uma das 30 candidaturas indígenas no Brasil que querem tomar a linha de frente na política brasileira em 2022, trazendo o nome de seus parentes.

A candidata pelo PSOL concorre a uma vaga de deputada para a Assembleia Legislativa dentro do Estado que talvez mais tenha dizimado seus ancestrais na história brasileira. Os indígenas de São Paulo, então Piratininga, começaram a ser sequestrados no século 16 por homens brancos que não tinham dinheiro para comprar escravizados africanos. Delegaram a bandeirantes, os jagunços da época, a tarefa de capturar indígenas e os submetiam ao trabalho escravo para a exploração de minérios. Para completar a violência, ainda tomavam as suas terras. O resto da história já é conhecida. Os bandeirantes foram alçados a heróis, com estátuas, museus e o nome de rodovias em homenagem a seu heroísmo. Até a casa do governador ganhou o nome de Palácio dos Bandeirantes. Mas São Paulo não conseguiu apagar suas raízes indígenas, e hoje há milhares deles vivendo no Estado.

Chirley Pankará distribui panfletos às vésperas da eleição. Foto:

Chirley, assim como outros indígenas que se candidatam nestas eleições por São Paulo, decidiu fazer o caminho de volta na história para resgatar um pedaço da alma do seu povo, apagada no Brasil. E a melhor maneira de fazê-lo é disputar um espaço de poder nas eleições deste ano para interferir nas políticas públicas que contemplem essa população ignorada pela grande massa de paulistas. “Vamos descolonizar São Paulo”, diz a candidata, durante um encontro com intelectuais num teatro no centro da capital paulista, dias depois da candidatura ser oficializada em meados de agosto.

Ao seu lado, Sonia Guajajara, liderança que concorre a uma vaga de deputada federal por São Paulo, e tem ajudado a divulgar a campanha da companheira Pankará. “A gente se une e se reúne para fortalecer os povos indígenas e assegurar nossos direitos”, diz Chirley, que chegou a São Paulo em 1998, quando buscava novas oportunidades para ajudar a sua família indígena, que ficou em Floresta. Seca, crise econômica e a falta de reconhecimento de suas terras colocaram dificuldades que ela, a irmã mais velha de dez, viu-se impelida a superar.  Instalou-se em Mauá, na grande São Paulo, na casa de parentes.

O primeiro trabalho que conseguiu foi como empregada doméstica, apesar de ter cursado magistério em sua cidade natal. Para ela, era o início de uma jornada de aprendizado numa terra em que outros indígenas do Nordeste já vinham migrando. “Eu já sentia o peso da invisibilidade por ser nordestina”, reflete. Sendo indígena, o peso era dobrado. Seu espírito inquieto e aberto, no entanto, lhe ajudou a enxergar novas perspectivas e foi abrindo portas.

Desde o primeiro emprego, abraçou todas as oportunidades em seu caminho, incluindo uma bolsa de estudos para a faculdade de pedagogia em Mauá. “Uma universidade acabava de ser inaugurada e ofereceu bolsas a quem se interessasse. Eu fui”, lembra ela, que chegou a flertar com o curso de enfermagem por influência de sua vó, Mãe Bó, que trabalhava com ervas medicinais em sua aldeia. Por oito anos, dirigiu a escola de educação infantil do povo Guarani na aldeia do Jaraguá, para ficar próxima de sua cultura. Ali, onde vivem mais de 700 indígenas, viu de perto a realidade difícil dos indígenas em São Paulo, que querem estudar a própria língua, com suas referências específicas de formação escolar. Sentiu também como o Estado mais rico consegue alijar os povos originários, que vivem sob a constante ameaça de perder seu território.

A última pesquisa disponível no IBGE mostra que em 2010 havia 40.000 indígenas no Estado, dos quais 3.000 vivem em aldeias, em regiões periféricas do Estado. São dados muito defasados, explica o antropólogo Emerson Guarani, que sugere um número maior não só pelo crescimento ocorrido na última década, mas porque muitos indígenas ficam apartados  de serviços como o censo. “A retirada de territórios indígenas e a maneira como o Estado olha para nós acabou criando ilhas”, diz o professor, lembrando que o objetivo do Estado sempre foi integrar indígenas ao contexto urbano.

É essa realidade que a candidata de 48 anos quer ajudar a transformar, caso seja eleita. Chirley já fez uma parte desta caminhada política ao ser eleita, com outras 8 pessoas, para um mandato coletivo na assembleia legislativa de São Paulo em 2018. Entre elas, a atual candidata a deputada federal Erika Hilton e a jornalista negra Monica Seixas, que encabeçava a chamada Bancada Ativista.

O grupo obteve 149.844 votos na eleição passada, o décimo melhor desempenho para deputados estaduais no Estado. “Fui codeputada, mas não transitava no plenário, ficava na elaboração de projetos”, explica Chirley, enquanto caminha com seu cocar na cabeça fazendo campanha num viaduto da zona oeste de São Paulo. Mesmo atuando nos bastidores da Assembleia, trabalhou por 7 emendas que contemplavam as comunidades indígenas. Emplacou também um projeto importante, a inserção do Agosto Indígena no calendário oficial do Estado, com um mês inteiro dedicado a atividades relativas aos povos originários. Uma iniciativa a princípio simples, mas que coloca em debate a invisibilidade dessa população.

Chirley almeja colocar os indígenas na agenda do Estado em todas as áreas em que podem ser contemplados. De escolas indígenas que respeitem o conhecimento e o ensino das suas línguas, à prioridade em saúde e cotas para educação e emprego. Quando as terras de sua aldeia em Floresta começaram a ser reconhecidas pela Funai, em 2003, a população recebeu um posto de saúde e uma escola, o que movimentou a economia local, gerando emprego e renda para os indígenas. É essa integração que Chirley espera para os povos originários de São Paulo. Mas sua atuação não se limita aos indígenas. A pauta da periferia, e das mulheres, é o que a incentiva em sua jornada. “Todos aqueles que sofrem desigualdade”, diz ela. E uma mulher poderia também falar pelos homens? “Os homens já passaram séculos fazendo leis para a gente, agora a gente pode fazer leis que os contemplem”, disse aos estudantes da PUC na palestra em que falou ao lado da deputada federal Samia Bonfim, candidata a reeleição.

Trilhar um caminho solo como candidata não é fácil. A começar pela verba disponível de 15 mil reais para a sua campanha eleitoral. “Se contar advogado e material de campanha, já vai tudo”, diz. Sem recursos próprios para investir, ela conta com outro capital poderoso que se multiplicou no período: a empatia de outras mulheres que concorrem a essa eleição para uma vaga de deputada federal. Entre elas, as candidatas Sonia Guajajara, Sâmia Bonfim e Erika Hilton, que se prontificaram a fazer dobradinhas no material de campanha, divulgando o nome de Chirley Pankará junto ao delas. Incluem, ainda, a colega em toda sorte de eventos para que ela se apresente como opção de deputada estadual a seus eleitores. Tendo mais recursos disponíveis, as candidatas a deputada federal ajudam a amplificar a exposição de Chirley.

O indígena Makko, do povo Karao Jaguaribara. Foto: Isabella Finholdt

Outros voluntários abraçaram a campanha, como os indígenas Makko, do povo Karao Jaguaribara, e Isabela Kariri, que vieram do Rio de Janeiro para ampliar os esforços de Chirley. Não importa se vêm de famílias indígenas diferentes. Fortalecer uma irmã é fortalecer a toda a comunidade, inclusive aquelas que estão mais vulneráveis hoje, na Amazônia.

De suas credenciais para o cargo, uma das que mais a candidata Pankará gosta de lembrar é o fato de ser neta de Maria Divina, a Mãe Bó, uma parteira, rezadeira e artesã do povo indígena Pankará na cidade de Floresta. Fez o parto da mãe de Chirley sozinha, e depois ajudou os 10 filhos dela a nascerem. “Quando penso nela, lembro como ela era resistente, como era amável com todos, acolhedora, sempre disponível a ajudar as pessoas”, comenta. Mãe Bó, que se encantou em 2020, aos 89 anos — expressão usada por alguns povos indígenas para falar de alguém que já partiu — influenciou os passos e as escolhas de Chirley enquanto missão de vida. “Estava sempre de coração puro para receber as pessoas. Muitos que ficavam doentes iam ficar na casa dela”, lembra. “Talvez por isso eu tenha seguido esta trajetória política, de pensar no outro, no coletivo”, diz Chirley.

Foi por vocação que começou a participar de movimentos pelos direitos indígenas e pela conservação da natureza, assim como projetos sociais dedicados aos mais vulneráveis. “Eu sei o que é insegurança alimentar, porque eu já vivi isso”. diz. “Agora eu quero ajudar os demais a não passarem pelo mesmo”.

A candidata quer fortalecer a caminhada das mulheres indígenas que começou com Joenia Kapichana, da Rede Sustentabilidade, eleita deputada federal em 2018, e também com Sonia Guajajara, que foi vice na chapa à presidência da República de Guilherme Boulous pelo PSOL naquele ano. Sonia e Boulous conquistaram pouco mais de 600 mil votos, menos de 1% do total, mas garantiram espaço e projeção. Agora, querem chegar a Brasília como parlamentares. É lá que a Guajajara quer estar, ao lado de Joenia, para fazer frente aos ruralistas, unindo-se também às deputadas e deputados ligados aos movimentos negros, feministas e sem-terra. Chirley mira a assembleia paulista, onde pode ser mais uma flecha no coração do racismo bandeirante.

 

Chirley Pankará durante ato de campanha no Minhocão, em São Paulo. Foto: Lela Beltrão.

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA