Choquei, Parente é a fonte de “babados” indígenas do momento. A bio no Instagram entrega tudo: fofoca, memes e luta. A página é inspirada em um canal mais conhecido nas redes sociais, o Choquei, esse apenas destinado a fofocas dos famosos convencionais, em geral brancos. Choquei, Parente é a página dos indígenas famosos, das “celebridades ancestrais” ou “parentes influencers”. Se você não está no Brasil 2023, te explico que “parente” é a palavra escolhida pela atual geração de indígenas brasileiros para chamar quem reconhecem como indígenas. Todo mundo é parente, exceto quem não é.
Trabalho com povos indígenas desde janeiro de 2013. E estava faltando uma fonte de humor nesse novo cenário da política indígena brasileira. Choquei, Parente fala da fofoca boa, sabe? Aquela capaz de explicar a treta – quem brigou com quem, quem beijou quem, quem traiu quem –, fazer gargalhar e já encaminhar pra uma amiga curiosa. E a página fala com memes. Para o bem ou para o mal, essa é a forma como boa parte dos brasileiros, indígenas ou não indígenas, se informa. Choquei, Parente é feita por indígenas que preferem o anonimato e virou febre entre os parentes em Brasília.
Por que conto tudo isso? Porque nos últimos dias do ano o stories da Choquei, Parente estava bombando. Enquetes atrás de enquetes para eleger os melhores indígenas do ano em categorias: filmmaker, estilista, modelo, atriz, cantora, ativista, influencer indígena, liderança, liderança jovem, símbolo LGBTQIA+. No meio da disputa pelo título de melhor do ano, havia também as enquetes de torcida para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumprisse a promessa feita durante a visita dele ao último Acampamento Terra Livre, mobilização anual que acontece há 18 anos em Brasília. Na ocasião, o ainda candidato Lula prometeu criar um ministério dos povos originários chefiado por uma pessoa indígena.
Enquetes, memes e declarações polêmicas apimentavam a disputa depois da vitória de Lula. Um dos memes na timeline é o print de uma publicação do escritor Daniel Munduruku em seu Twitter: “Acho um tiro no pé do movimento indígena a nomeação de @GuajajaraSonia para ministra. Acho que o Brasil indígena ganharia mais com o seu jeito aguerrido de ser na Câmara Federal. De qualquer forma, torço por seu sucesso. Em tempo: preferia @JoeniaWapichana“.
Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Raoni Metuktire também manifestaram apoio à advogada Joenia Wapichana, que não se reelegeu como deputada federal pela Rede Sustentabilidade, em Roraima. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), maior organização indígena da Amazônia, se posicionou em defesa da primeira indígena a advogar no Brasil. A maior organização do sul do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), também publicou nota pedindo que Joenia fosse nomeada ministra, mas os comentários na página da Choquei, Parente e as enquetes no stories mostravam que Sonia Guajajara, do PSOL, recém-eleita deputada federal com mais de 150 mil votos em São Paulo, tinha força e uma torcida babadeira.
Joênia Wapichana, ex-deputada federal, primeira indígena a advogar no Brasil e recém-nomeada presidenta da agora rebatizada Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Foto: Mídia Ninja
Lula poderia ter anunciado suas escolhas às pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas na COP27, em novembro do ano passado, mas preferiu não fazer e abriu margem para o nome de Joenia ser projetado – ainda que tudo apontasse para Sonia. Até porque Joenia é da Rede Sustentabilidade, mesmo partido de Marina Silva e Randolfe Rodrigues, nomes até então bastante cotados para ocupar ministérios onde dificilmente caberiam três de uma sigla tão pequena. Randolfe, coordenador da campanha de Lula, recebeu a liderança do governo no Congresso. Marina foi confirmada no Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Com a demora, calculada ou não, Lula causou desconforto e criou um clima de rivalidade desnecessário num movimento que, de forma bastante unificada, o apoiou durante a campanha. Eu vivi em Altamira entre 2013 e 2015, durante os governos de Dilma Rousseff, e pude acompanhar a ruptura dos movimentos sociais como estratégia dos governos do PT para impor a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. É impossível não sentir um frio na espinha ao ver o partido, mais uma vez, por descaso ou falta de cuidado, provocar rivalidades entre as duas principais lideranças indígenas do país, no momento sensível em que o movimento indígena vai colocar, de forma inédita, os dois pés no governo central.
Fora da Choquei, Parente, os ânimos no movimento indígena ficaram acirrados. A saída diplomática partiu da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A entidade reuniu sua coordenação e encaminhou a Lula uma lista tríplice de indicados ao ministério: Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba.
Lula ainda não era presidente quando falou pela primeira vez de um Ministério dos Povos Indígenas. Foi no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, em abril de 2022. Joênia Wapichana e Sonia Guajajara estavam na plateia. Foto: Mídia Ninja
Quem testemunhou Lula falando pela primeira vez sobre o inédito ministério tinha poucas dúvidas de que, caso existisse, ele seria liderado por Sonia. A primeira vez em que o agora presidente falou sobre criar o Ministério dos Povos Indígenas foi no dia 12 de abril de 2022, no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Para que o evento não fosse cancelado durante a pandemia que matou parte dos anciões indígenas, em 2020 e 2021 ele foi realizado pela internet. Em 2022, o público presencial voltou e foi naquele momento que Lula teve a ideia. Ele estava olhando diretamente para Sonia.
Era uma retomada importante da mobilização. Lembro que muita gente acreditava que os indígenas não deveriam realizá-la, por receio da violência policial do governo Bolsonaro e da pandemia, mas elas (e eles) fizeram uma baita marcha mundial das mulheres e um acampamento com mais de 5 mil pessoas sem ninguém ferido ou preso e com muita repercussão internacional.
Naquela manhã do dia 12 de abril, Lula receberia algumas lideranças indígenas num café da manhã e, à tarde, iria até o acampamento. Foi o que aconteceu. No palco, antes de falar, Lula ouviu alguns indígenas que disputaram eleições e que também estavam no palco. Sonia Guajajara falou por último – e durante 11 minutos.
“Nós estamos aqui apresentando ao Brasil e ao mundo a retomada. O tema do acampamento é retomar o Brasil, demarcar territórios e aldear a política. Porque não é mais possível que tenhamos 513 deputados e apenas uma mulher indígena [Joenia Wapichana].
Nós queremos alguém que retome nossa participação nos espaços de controle social para a construção de políticas públicas desse país. Nós queremos uma secretaria de saúde indígena fortalecida. Nós não aguentamos mais ver crianças sendo sugadas por dragas de garimpo ilegal.
Nós não queremos participar apenas quando você ganhar, nós queremos começar agora a participar do projeto da construção de um novo Brasil.
É por isso que nós decidimos em 2022 lançar uma bancada indígena. É uma bancada do cocar, uma bancada indígena que vai destituir de vez a bancada ruralista.”
Não aparece nos vídeos disponíveis na internet, mas naquele momento indígenas Kayapó estavam de braços cruzados, olhando de cara feia para ela. Sonia então levou o rio Xingu para sua fala.
“Estamos aqui, prontos para que não haja mais uma Belo Monte no seu governo, presidente Lula. Não precisamos de mais Belo Montes.”
Lula, que usava um enorme colar de miçangas com uma arara desenhada, acompanhou Sonia com os olhos e pareceu concordar balançando a cabeça.
Sonia segue: “Não precisamos de Belo Sun, que vai extrair o ouro de nosso território.
Por muito tempo nós não aceitamos presidir a Sesai, mas agora nós queremos. Não podemos deixar que essas instituições fiquem a serviço do governo. Nós devemos assumir, sim.
Nós queremos também assumir ministérios. Nós somos capazes, sim, de assumir todas as políticas indígenas deste país.”
Lula sorri. E Sonia continua.
“É por isso que nós estamos aqui, com mais de 30 candidaturas indígenas, porque nós não vamos mais permitir um Brasil sem nós.”
Sonia abraça Lula.
Sobre Belo Monte e Belo Sun, Lula respondeu (não respondendo): “Ninguém fez mais do que fizemos”. E seguiu: “Agora vocês me deram uma ideia. Ora, se a gente criou o Ministério da Igualdade Racial, se a gente criou o Ministério da Pesca, por que a gente não pode criar o ministério para discutir as questões indígenas? Não vai ter branco como eu ou uma galega como a Gleisi Hoffmann. Terá que ser um índio ou uma índia. Vão falar, vão dizer: ‘Ah, mas gastam muito. É preciso diminuir os ministérios’. Na verdade, o que eles não querem é que a sociedade esteja participando ativamente”.
A realização presencial do Acampamento Terra Livre em Brasília em abril de 2022 foi uma retomada importante da mobilização indígena. O ATL promoveu o debate de pautas importantes, protestos pacíficos e teve repercussão internacional
Muita gente comemorou a fala de Lula. E muita gente ficou preocupada. A maioria dos indígenas não parou de celebrar nas redes sociais, mas escutei preocupações de indigenistas que, de alguma forma, contribuíram para a construção do arcabouço da política indígena. Isso porque, no passado, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) já abarcou toda a política indígena. A década de 1990 foi atravessada pela luta pela descentralização: saúde, educação, proteção e demarcação com orçamento e políticas próprias.
A descentralização começou em 1996, com o decreto 1775, que regula a demarcação de Terras Indígenas. Três anos mais tarde foi a vez da saúde. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena foi criado em 1999, por um projeto de lei de autoria do deputado federal Sérgio Arouca, que ficou conhecido como Lei Arouca. A lei define que o subsistema está sob a responsabilidade do governo federal e manda criar Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No Brasil, hoje, há 34 DSEI(s) divididos por ocupação geográfica das comunidades indígenas – e não necessariamente por limites dos estados. Sua estrutura de atendimento conta com unidades básicas de saúde indígenas, polos base e Casas de Apoio à Saúde Indígena, chamadas Casai, onde os indígenas que vivem em aldeias se hospedam enquanto fazem os tratamentos nas cidades.
Em 2002, o Ministério da Saúde criou a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) e, em 2010, finalmente, foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um órgão autônomo para a saúde indígena, com orçamento próprio. Esta foi a secretaria entregue ao terceiro nome da lista tríplice da Apib. Weibe Tapeba, indicado pelos indígenas do mar, os indígenas do nordeste e que, historicamente, tem discordâncias com os indígenas da Amazônia. Por isso, não toparam apoiar nem Joenia e nem Sonia e acabaram levando a mais importante secretaria da saúde indígena, subordinada ao Ministério da Saúde.
Desde que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assinou o decreto 1775, ruralistas tentaram contestá-lo diversas vezes ao longo dos anos. Mas em 2009, durante o julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o decreto foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal e contestá-lo já não foi mais possível. Ele estabelece que a primeira fase para a demarcação começa na Funai, com a formação de um grupo de trabalho formado por antropólogos, que vão estudar a área e delimitar o tamanho e o desenho que a terra indígena precisa ter para que o povo, ou os povos que ali habitam, consigam continuar a viver segundo seus costumes. Se o povo caça, precisa ter área para caça, se o povo pesca, precisa ter acesso ao rio ou ao mar, áreas de roça para povos agricultores, a delimitação precisa levar em consideração seus cemitérios e locais sagrados.
Quando esses estudos são finalizados, o presidente da Funai avalia e assina o relatório circunstanciado, nome esquisito, mas que significa um relatório detalhado sobre todas as informações daquela terra indígena. Esse relatório é publicado no Diário da União e do estado onde a terra está localizada. A partir daí abre-se um período de 90 dias chamado “contraditório”. Nessa fase, estados e municípios em que se localiza a área sob demarcação e demais interessados podem se manifestar contra a demarcação, apresentando à Funai provas, como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, na tentativa de conseguir indenização ou demonstrar vícios no relatório, impedindo que o processo prossiga.
Passado esse prazo de 90 dias, o presidente da Funai encaminha o relatório ao Ministério da Justiça, para que o ministro assine a portaria declaratória e encaminhe ao presidente da República, para que ele publique um decreto reconhecendo os limites da terra indígena. Após a assinatura do decreto, a terra indígena pode ser registrada em cartório.
Explico tudo isso para que seja possível entender a divisão de poderes e também a disputa. Para a demarcação, a hierarquia que vigora atualmente é esta: presidente da Funai, ministro da Justiça e presidente da República. Hoje, a avaliação informal da Apib é de que há ao menos 13 Terras Indígenas na gaveta do presidente da República sem nenhuma pendência. Circula entre os grupos indígenas que essas demarcações serão assinadas por Lula ainda em janeiro, como uma primeira demonstração de que o Brasil mudou.
Já o que pode acontecer na tramitação das demais terras, que envolvem disputas muito mais complicadas para a frente ampla que elegeu Lula – e que estão em etapas anteriores – ainda é uma incógnita.
A Medida Provisória que cria o Ministério dos Povos Indígenas não deixa claro se a portaria declaratória, anteriormente fixada no Ministério da Justiça, será repassada integralmente para o Ministério dos Povos Indígenas. O artigo 42 da MP de Lula, publicada no dia 1 de janeiro, traz como competência do Ministério dos Povos Indígenas a política indigenista, o reconhecimento, a garantia e a promoção dos direitos dos povos indígenas; o reconhecimento, a demarcação, a defesa, o usufruto exclusivo e a gestão das terras e dos territórios indígenas; o bem viver dos povos indígenas, a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato; os acordos e tratados internacionais, em especial a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que, entre várias garantias, determina que as populações indígenas sejam consultadas sobre o uso, a gestão e a conservação de seus territórios.
Em resumo: toda a estrutura de demarcação seria levada para o novo ministério, mas ainda será preciso detalhar como isso vai acontecer. A migração para o Ministério dos Povos Indígenas faz todo sentido, mas parte das lideranças e indigenistas teme abrir um flanco para ataques, ao alterar o marco legal e substituir um decreto já aprovado pelo STF. Joenia Wapichana, a nova presidenta da Funai (rebatizada agora como Fundação Nacional dos Povos Indígenas), recomenda prudência. “Cabe ao presidente [Lula] decidir. Acredito que [por enquanto] o decreto 1775 não irá mudar, então permanecem os mesmos procedimentos de demarcação de terras indígenas”.
A deputada do PT Juliana Cardoso, indígena do povo Terena, também prefere que a estrutura não migre para o Ministério dos Povos Indígenas num primeiro momento: “A demarcação ainda deve ficar no Ministério da Justiça. Isso deve ser visto com um pouco mais de atenção, cuidado, porque a minha preocupação é que qualquer mudança que você faça em uma tramitação que já tem uma estrutura, que só cuida das demarcações, possa eventualmente ser usada para dificultar o processo”.
Há razões fortes para trabalhar por uma transição segura. Uma delas é o fato de que, com frequência, as fases de demarcação são alvo de judicialização. Quando a Funai divulga o resultado dos estudos, por exemplo, pode surgir um fazendeiro dizendo que parte da área é dele, entrar na justiça e o processo ficar anos em tramitação. Ou a presidência da Funai finaliza os estudos e manda para o Ministério da Justiça e um grileiro tenta impugnar. Ou seja, mesmo com um robusto arcabouço legal, as contestações surgem e podem prolongar por anos ou mesmo décadas os processos. O receio é abrir o flanco para que um novo marco legal se sobreponha a um decreto já revisado pelo STF e consolidado na prática e, assim, promover uma enxurrada de judicialização, atrasando ainda mais demarcações que já ficaram paralisadas por quatro anos de bolsonarismo. Há territórios indígenas não demarcados em situação de crise humanitária, o que demanda pressa para que os processos paralisados avancem e a Constituição seja cumprida.
A deputada eleita Célia Xakriabá e o advogado Luiz Eloy Terena na posse do presidente Lula em Brasília. Terena será secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Foto: Maíra Erlich/SUMAÚMA
A ministra Sonia Guajajara já se prepara para as batalhas que virão. Escolheu como secretário executivo do Ministério uma das maiores autoridades em direitos indígenas, Luiz Eloy Terena, advogado e pós-doutor pela Escola de Estudos Sociais de Paris. Protagonista de uma das comunicações de genocídio indígena movidas contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, Eloy está bastante acostumado a defender povos em diferentes ações de demarcação, regiões e contextos. É natural do Mato Grosso do Sul, estado conhecido por ter muita terra na mão de poucos fazendeiros e o exemplo mais brutal de omissão histórica do Estado em relação à demarcação. Lá também vive a etnia Guarani Kaiowá, que abriga a maior população indígena do Brasil, cerca de 80 mil pessoas, em situação de violência, abusos e indignidade. A luta dos Guarani Kaiowá é marcada por uma série de assassinatos de suas lideranças, vítimas de conflitos com posseiros, grileiros e fazendeiros da região, situação agravada por decisões judiciais desastrosas.
Tudo indica que Eloy Terena será a pessoa de confiança da ministra para compor os quadros e desenhar a estrutura do novo ministério. Ele liderou ações impetradas pela Apib nos últimos 4 anos, como a ADPF 790, primeira ação judicial analisada pelo STF com autoria de uma organização indígena, inaugurando o cumprimento do artigo 232, da constituição: “Os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Até então as ações indígenas eram assinadas por partidos políticos ou organizações indigenistas. Levou 32 anos, a idade de Eloy, para o Brasil materializar um artigo vital para os povos indígenas.
No Twitter, Eloy já anunciou que o ministério deverá contar com 3 secretarias e 7 departamentos, um deles o departamento de demarcação territorial. A estrutura foi desenhada no Grupo de Transição e contou com a presença de dezenas de indígenas de todo o país.
Eloy e Sonia trabalham juntos desde a primeira hora do ano. O Ministério dos Povos Indígenas foi abrigado no sétimo andar do prédio do Ministério da Economia. A nova presidente da Funai e a nova ministra dos Povos indígenas também se reuniram todos os dias da primeira semana de governo.
A nova ministra e a nova presidenta: Sonia Guajajara celebra ao lado de Joênia Wapichana o dia histórico da ocupação indígena na Funai. Foto: Mario Pimentel/AFP
Joenia e Sonia nunca foram melhores amigas, não dividem o mesmo partido e poucas vezes aparecem sorrindo juntas em fotos. Mas o Brasil indígena avançou a passos largos cada vez que elas se uniram nos últimos 4 anos. Foi assim quando Bolsonaro tentou colocar a Funai na pasta da pastora evangélica Damares Alves, então ministra da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos de seu governo. Foi principalmente a força dessas duas lideranças indígenas, juntas, que segurou a Funai no Ministério da Justiça. Foi também assim quando Joenia defendeu Sonia, atacada pelo general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro. Heleno a perseguiu de todas as formas e chegou a publicar nas redes sociais que veria Sonia na cadeia.
No dia histórico da ocupação indígena na Funai, segunda-feira, 2 de janeiro de 2023, Sonia sentou-se ao lado direito de Joenia. Afirmou: “Tinha muita gente que falava por aí que a história da lista tríplice da indicação da Apib, com o nome do Weibe, com o nome da Joenia e com meu nome, representava uma fissura no movimento indígena. Nós três estamos aqui nessa mesa ocupando os espaços mais estratégicos da política indigenista brasileira”. Joenia retribuiu: “Eu agradeço a parentíssima [nomeação criada pela deputada eleita Célia Xakriabá aos excelentíssimos parentes]. Vou chamar ela só de parentíssima agora e a gente ainda vai conversar muito”.
A emoção do cacique Raoni, maior referência do movimento indígena brasileiro, protagonista na retomada da Funai, pareceu selar a rivalidade e prenunciar melhores tempos. Tempos em que os indígenas falam e os servidores escutam, os indígenas decidem e os servidores executam.
Visitei o prédio do Ministério dos Povos Indígenas no dia 3 de janeiro. Ainda na portaria encontrei a nova presidenta da Funai, Joenia Wapichana. Antes de me cumprimentar, ela já foi reclamando: “Estou indignada com o orçamento da Funai. Não tenho dinheiro pra compor uma equipe. Como eu posso chamar um assessor para assumir tamanha responsabilidade ganhando 5 mil reais, em Brasília, onde qualquer aluguel é 3, 4 mil reais?”
A reclamação faz sentido e é compartilhada por muitos outros órgãos. Os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), que podem ser ocupados por qualquer servidor ou pessoa externa ao serviço público, não sofrem reajuste desde 2015. Mas houve reajuste de 6% nos aluguéis em Brasília só no último ano.
Por enquanto, placas improvisadas feitas com adesivos identificam as portas de acesso ao ministério. Muitas salas estão em reforma. No térreo, encontrei um grupo Kayapó e outro dos Xavante. Cada qual com suas pastas de documentos e demandas na ponta da língua. Sonia Guajajara passou aquele dia atendendo as delegações que vieram de toda parte para cumprimentar a nova ministra e, claro, cobrar ajuda.
Na semana passada, ao assinar a diplomação, ela segurava a caneta em uma mão e um maracá – instrumento musical que os brancos chamam de chocalho – na outra. Não era apenas mais um ornamento. Maracá Emergência Indígena foi o nome do festival online organizado pelas mulheres em agosto de 2020 para promover ações de enfrentamento à pandemia em territórios indígenas.
O governo Bolsonaro perseguiu e tentou criminalizar Sonia pelo evento. Em 30 de abril de 2021, ela foi intimada a depor na Polícia Federal por calúnia, difamação e propagar fake news contra o agora ex-presidente. Corta para 2023, Maracá virou documentário e está no ar, Sonia é ministra dos Povos Indígenas e assina a diplomação com um maracá na mão. Não é pequeno o significado. Seu partido, o PSol, no primeiro dia do ano já pediu a prisão preventiva de Bolsonaro. A ação está no STF e é baseada na disseminação de fake news a respeito das urnas eletrônicas e em seu apoio aos atos golpistas.
Há quem tente dizer que Sonia é apenas uma celebridade, e não uma liderança, devido ao imenso apoio que recebe da classe artística. De Leonardo DiCaprio a Felipe Neto, passando por Caetano Veloso e Pabllo Vittar, todos apoiaram sua candidatura à deputada federal. Sonia não se abala. Segue com olhar firme e sereno, batom vermelho, salto alto. Sabe que a política vai sempre tentar desqualificar, deslegitimar, manipular e desestruturar mulheres na tentativa de que elas se calem, se encolham, se submetam ou se retirem.
Sonia sabe onde estão suas raízes. Raoni, quando a encontrou em um hotel antes de subir a rampa com o presidente, segurou seu rosto entre as mãos e disse: “Aprendi a ser bravo com você”. Ao chegar em qualquer lugar em Brasília, ela é recebida com um caloroso “Olê, olê, olê, olá, Sonia, Sooooonia”.
Por causa dos ataques terroristas de 8 de janeiro, a posse da parentíssima, que aconteceria no dia 10 de janeiro, com a presença de Lula, precisou ser adiada. As mulheres indígenas e negras, nascidas na luta, deram um jeito, se aldearam e se aquilombaram. Junto à nova ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, Sonia Guajajara tomará posse nesta quarta-feira, 11 de janeiro, em uma cerimônia fechada, por segurança e falta de espaço. Mas o evento será transmitido ao vivo nas redes sociais das duas ministras. Choquei, Parente!